domingo, agosto 29, 2021

MANDÍBULA ELEATA DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

 

PARA CATIVAR A FEBRE (BÔNUS)

 

É tempo de anjos arruinados

As florias se acabaram.

O estoque de verdade baixou muito.

A realidade já não basta.

Viver não é mais conferir

Profundidade às atitudes e defeitos.

É tempo de cones tristes e ícones castos.

É chegada a hora da febre interior.

Os vertiginosos limites inultrapassáveis.

Leve unidade à concorrência do tempo.

Pela erosão da sina definitiva.

Toda pureza será proibida.

Não apague as máculas.

Todo desprendimento é ridículo.

Qualquer piedade é mal vista.

 

VISÕES NÃO FÍSICAS

 

Os retornos são eternos. Tudo é perpetuo recomeço.

A exceção da infância, menos a vida.

Escrever é afirmar a solidão, é encontrá-la à mão.

Bebê-la na página percorrê-la.

Escrever é solidário à solidão. Chamá-la à colação.

A escrita é uma forma de conversa com a solidão

Modo de escrevê-la retendo-a na lauda.

A solidão é o êxtase do absoluto

O fascínio do vazio vivo, pleno, árduo, intenso.

 

ALGUÉM

 

Alguém tem meus cílios leprosos

Alguém fechou-me as pálpebras velozes

As portas, as caixas, o futuro

Com ouriversarias falidas

Com pérolas crápulas

Ouros tolos

Esmeraldas perversas

Falsos marfins

Rubis devassos, ardis

Com safiras impuras

Alguém decorou meu ocaso

Com cor de tânato

Alguém demoliu meu nome

E ao pó entregou meu rosto, quem?

E alguém roubou os cálices

Dos lábios da náusea

Fez fulgir o abandono

Fez o vômito luzir. Quem?

 

DAMOR

 

Te amo como se aves fossem nuvens

Ou céu intenso pássaro

E o horizonte poleiro de luas emplumadas

Te amo como Deus ama o que criou

Como se as cinzas voassem ao léu de mim

O pó se arrependesse

E os sais da ressurreição crescessem

Te amo como cavalga a égua o cavalo

A cópula não é poluta.

 

NIHIL

 

Então não repito:

Esse romance (?) fala de nada e

Da vida totalmente sempre, amém.

Para nós (eu e o romance) o homem

É impossível, mas não impassível.

Também. Sulcos abre ele no chão

Pobre da modernidade tardia.

Tadinha.

Sob céu vagoroso

A safra de Hermes caolho colho.

Repudio o vômito

E a voz da náusea.

Úmida ou não.

 

LEMBRANÇAS LASCIVAS

 

Seios esferas de doce saliva

Ancas redondas como o paraíso

Lua os olhos com que sonhava de dia e de noite

A cabeleira era semelhante à noite

Que enchia o quarto quando ela os soltava

É o que me lembro dela

E algo de outras da rua do Rangel

Ela tinha 49 anos... eu... 19

Esqueci o nome dela... não importa... era ela

Como quem ouvi 30 pores de sol... em frente da boite Mauá.

 

DITAME NOTURNO

 

A noite mãe é quem dita o poema.

Maternalmente, acolhe a palavra

O útero verbal é ameno.

Noite real e elementar.

Não só devora luz, abole luar

Única que aclara recônditos, revive-os, a fundo.

Inacessíveis recantos do ser lambe.

Só coração da esfinge é fiel a ela.

Que a almas perdidas se devota.

 

ADENDA

 

Eis eu, eis tu, és eu, és tu.

Ao esplendor dos símiles de Homero

Nada se igualha desde sempre.

A cada hexâmetro do homérico delírio

Da febre do grego fogo que criou a poesia

Uma taça duradoura e ébria

De vinho longo servi ao lábio.

 

DE NÓS

 

De ti conheço o rumo ausente

O silêncio

A vertigem imóvel

Um parnaso triste

Um árabe rio prata

Uma corrente de combalida

E o reversem do jogo findo

De ti conheço além da ausência

O remorso e a certeza de uma pausa

De mim sei que as ogivas do olvido pesam

E que a cobiça de ti é branca

Como cansaço.

 

RÁPIDA ETERNIDADE

 

Por alguns íntimos

(e pífios) segundos

Somos (ou fomos) eternos

Tu (leitor) e eu.

As leituras são eternas

Para sempre

Porque leem o por vir

E o para que

Por necessidade íntima

Ou acaso múltiplo.

 

ESSA VIDA

 

A vida, essa onde de espuma quântica

Tocata e fuga, sinfonia escura e úmida

Catre de albumina (esquizofrênica)

A vida, essa poeira cônica, onímoda

Grandiosa, infinitésima, plural e estúpida

Sopa espúria, acaso de gametas sem tino

Esse abre-te e fecha-te Sésamo

Átomo anímico, antro do espírito

A vida, esse falso alento químico, sapo ético e lábio

Proteica trama, hausto carnívoro

Essa renda de DNA e lenda

A vida, essa hábil teia que o esmo torce

Ocaso cria com seivas cavas, tece o tempo

E a cruenta morte desata de súbito

Num trânsito pontual e initerrupto

A vida, essa promíscua sopa

De fermentos dúbios essenciais nuas impuras

A vida, essa conjunção de alma e víbora

Essa tropa de manás lascivos

E verdades duras

A vida, essa cria de moneras

A dependência de moedas.

 


MANDÍBULA ELEATA – Poemas extraídos da obra Madíbula eleata – Poesia absoluta (Criarte, 2021), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é dividido em duas partes, Mandíbula e Eleata, e que traz o prefácio do próprio autor, Indo além da poesia, do poeta e professor Admmauro Gommes; Um novo olhar sobre Vital, do professor Wilson Santos; Perplexo poema Vital, de Zé Ripe; entre outros textos. Veja mais aqui e aqui.