Desenho de Roberto Magalhães
Rogel Samuel é poeta e escritor amazonense. Quer dizer, poeta, romancista, cronista, webjornalista e colunista do Blocos On Line. Também é professor aposentado adjunto doutor do Departamento de Ciência da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Confira a entrevista que ele concedeu ao Guia de Poesia - O diferencial humano.
LAM - Rogel, quando foi e como se deu o
encontro entre o amazonense filho de francês com brasileira e neto de rico
comerciante da borracha com as artes, notadamente a Literatura?
Primeiro
é bom saber: nasci pobre e não vi a riqueza de Maurice Samuel. Nasci na
decadência. Você nem imagina com quem comecei: foi com Camões... Num livro
didático de infância havia um trecho da Elegia que começa assim:
"Poeta
Simónides, falando ? co capitão Temístocles, um dia..."
O trecho diz:
Oh ! lavradores bem-aventurados !
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados !
dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.
não vêem o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.
O trecho diz:
Oh ! lavradores bem-aventurados !
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados !
dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.
não vêem o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.
E por aí
vai. Eu fiquei muito impressionado. Até hoje tenho emoção com a simplicidade
dos versos, a evocação. Foi Camões quem me despertou, veja só. E depois, Manuel
Bandeira. Li menino. O texto de Camões está no nosso blog.
Depois
ganhei uma antologia, que até hoje considero a melhor: «Obras primas da poesia
universal», de Sergio Milliet. Editora Martins. Esgotada.
LAM - Quais as influências da infância e
adolescência marcaram a formação dos primeiros versos, primeiros escritos,
considerando a publicação do seu primeiro poema num jornal nessa fase da sua
vida?
Sim,
comecei a escrever nos jornais de Manaus muito cedo, com 16, 17 anos. Naquela
época era assim. Os jornais estavam abertos. Mesmo para o que não prestava. Eu
me lembro de uma página muito curiosa de «O jornal do comércio», órgão dos
Diários Associados em Manaus, de 16 de abril de 1961, em que há um conto meu
chamado «Sofia», ao lado um novo poema de Drummond, em baixo havia uma crônica
de Guilherme Figueiredo e no rodapé um artigo de Sergio Milliet, intitulado «O
dia amanheceu cantando». Eu tinha 18 anos. O jornal era dirigido por Felipe
Daou, ainda vivo. Aquele pessoal era mesmo irresponsável.
GP - Apesar de escrever seus versos desde a
adolescência, você, pelas suas publicações, começa com Crítica da Escrita, em
1979. A poesia ficou de lado ou o professor que se impunha? Este é o resultado
de seus estudos e trabalhos na universidade?
Quando
me mudei para o Rio, em 1961, publiquei muito pouco. Lembro-me de artigo no
«Correio da manhã», que não tenho, e pouca coisa mais. Eu estava mal
acostumado: em Manaus você vinha com o original e punha na mesa do editor. No
dia seguinte aquilo era publicado com destaque. No Rio, havia um clube fechado.
Eu tive as portas abertas para a televisão, através do irmão de uma amiga de
Manaus que dirigia a parte comercial da TV Rio, onde trabalharam na mesma
época, creio, o Bôni e o Valter Clark. Trabalhei na redação muito pouco tempo e
larguei. Era à noite, eu tinha faculdade de manhã. Burrice, talvez. Virei
professor. Não procurei mais os jornais, não sou bom vendedor de mim mesmo.
GP - Um fato, eu conheci você primeiro pelo
"Manual de teoria literária" na época em que eu fazia Letras, por
volta de meados da década de 80, por ai, salvo engano. Hoje esta obra está já
com 14 edições. E também, depois, o agradabilíssimo "O que é Teolit?".
Como se encontrava o poeta enquanto professor?
Não se
encontrava. Eu fui fazer letras porque era assim que eu supunha ser a formação
do escritor. Um dia um amigo meu, o Nathanael Caixeiro, que fazia traduções, me
apresentou ao pessoal da Vozes. Assim nasceu o "Manual de teoria
literária". Anos depois, publiquei ali os três volumes de «Literatura
básica». Foram livros com vários autores, que coordenei. Um dia mandei um
projeto para os «Primeiros passos», da Brasiliense. O projeto era um livrinho:
«O que é teoria literária». Depois de várias tentativas, o livro não saiu,
porque invadia o conteúdo de outros títulos. Acabou sendo publicado pela Marco
Zero, na época pertencente ao Marcio Souza, como "O que é Teolit?".
Publiquei mais 2 livros por conta própria: «Crítica da escrita» 1981; e «O
Amante das Amazonas», 1992. Hoje tenho dois livros na praça. O «Novo manual de
teoria literária» (Petrópolis, Vozes, 2002. 158p), que está em 3 a edição,
livro só meu, atualizado com as modernas teorias. E «O amante das amazonas»
(Belo Horizonte, Itatiaia, 2005, 164 p.), que não é só a 2 a edição, mas é um
livro revisto. Além disso, houve «A linguagem e a idéia no discurso poético»
(Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 1978, dissertação de Mestrado) e «A
reconstrução da subjetividade no grande sertão» (Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, 1983. 290 p., tese de Doutorado, nunca publicada).
Como
professor dei todo tipo de aula: para escolas particulares pobres do primeiro e
segundo graus, cursinhos, no subúrbio, em escolas de ricos, no estado, no
município, em faculdades particulares.
Para
sobreviver dava aula de manhã, de tarde e de noite. Fui professor de latim.
Estudei na UFRJ, no Rio de Janeiro, onde fui aluno de Alceu Amoroso Lima,
Matoso Câmara, Afrânio Coutinho, Anísio Teixeira. Fiquei uns 10 anos sem
publicar, nesse período. Depois, ingressei por concurso na UFRJ, fiz mestrado e
doutorado. E me aposentei. Hoje só escrevo.
GP - O poeta aparece publicado só em 90 com
"Poemas" e depois com "120 poemas". Fala dessa experiência
e resultados desses projetos.
«Poemas»
foi uma bela edição artesanal. Os «120 poemas» é um folheto impresso, tenho até
hoje. Eu nunca parei de escrever poesia, desde a adolescência até os meus
atuais 63 anos. Mas nunca consegui ter confiança no que fazia. Acho que o poeta
tem de ser um louco irresponsável e não se avaliar muito. Estou pensando em
colocar todos poemas num site, ou publicar em livro.
GP - Como escritor, eu vi o seu "O
amante das amazonas", um livro interessantíssimo que li de um fôlego só e
onde você mistura ficção e realidade com uma narrativa bem gostosa. Este livro
inclusive recebeu sua segunda edição recentemente. Fala do processo de criação,
expectativa e resultados com este seu projeto?
Foram
dez anos de trabalho, mais de 100 livros lidos e dez versões. Mesmo essa
segunda edição foi revista. O livro tem aquilo que você viu, é um mar de
estórias em torno daquele Palácio construído no meio da selva. Primeiro fiz uma
pesquisa, entrevistei pessoas que ainda se lembravam dos fatos. Li cerca de 100
livros. Depois, devido ao excesso de informações fiquei perdido. Aí resolvi
contar para um gravador. Depois de ouvir muitas vezes, voltei a narrar no
gravador. Então fiz as várias versões escritas, quase dez. Há algo de romance
policial ali, além de ficção científica.
Quanto
ao processo de criação... bem, é melhor escrever do que ler um romance. Ao
escrever um romance você tem todas as possibilidades do mundo. Porque o mundo
não existe, ali: você tem de criá-lo.
Tenho
vários projetos. E vários livros escritos na gaveta. Meu único problema é que
escrevo muito devagar e trabalho muito o texto. Como nunca fico satisfeito
acabo criando várias versões do mesmo livro e perco muito tempo. Tudo meu leva
vários anos para sair e a vida é curta. Mas cada livro ganha uma técnica especial
só dele.
A minha
«obra» literária publicada, aos 63 [na época] anos de idade, é muito pequena. O
que eu mais publiquei foram contos e crônicas. Recentemente voltei para os
livros maiores.
LAM -
Rogel, além de professor aposentado, poeta e escritor, você também é
webjornalista e escreve regularmente para sites e portais da Internet. Fala,
então, da importância da Internet na difusão do seu trabalho.
Vejo na
Internet o futuro da literatura. Liberta o escritor da grande media, dos
editores. O escritor logo encontra seus leitores ali. Estou publicando minha
próxima novela ali, na Internet. Não passo sem Internet. Entro na Internet
várias vezes ao dia. Meu mundo hoje é o mundo da Internet.
GP - Qual a avaliação que você faz desse
veículo Internet na relação do escritor com o leitor? E desta com o trabalho
impresso e frente a frente com o leitor?
Gosto da
Internet porque esta média me levou a retomar o que eu poderia chamar de meu
público e minha obra. Escrevi uma centena de artigos em jornais impressos, e muito
mais na Internet. Penso que o livro vai-se tornar cada vez mais caro, e a web
será o grande veículo do futuro. Para a música também. Eu gostaria de ver o
Ministério da Cultura disponibilizar toda a obra de Villa Lobos em mp3, mesmo
pagando ele os direitos autorais. Porque é muito difícil ouvir certas coisas.
Hoje sou um escritor da rede. Se você colocar meu nome num site de busca vai-me
encontrar.
GP - Você mantém na rede um sítio pessoal
onde publica seus trabalhos literários, livros e, ainda, apresenta um diretório
de autores. Qual a proposta deste diretório?
A
princípio era uma antologia de vários autores. Tem vários anos. Tentei fazer um
site de literatura de qualidade, porque na época não havia. Há livros inteiros.
Há clássicos ali, e livros raros. Meu site tem muita música clássica, em midi.
Fui o primeiro a publicar autores amazonenses da Net. Tenho colunistas. E
escritores cativos. A grande poetisa portuguesa Maria Azenha às vezes me manda
de Lisboa um poema acabado de escrever.
GP - Qual a avaliação que você faz da atual
Literatura brasileira?
Há muita
gente boa, mas a divulgação não se dá na grande media. Acho que os grandes
poetas do presente só serão conhecidos daqui a muitos anos. Os grandes
ficcionistas brasileiros jovens ainda não confiam na Internet. Conheço uma boa
escritora que tem 5 excelentes romances para publicar. Eu disse para ela:
publique na Internet. Mas o pessoal tem medo de perder a autoria. O que é um
medo sem fundamento. Mesmo o livro impresso pode ser copiado. E é muito difícil
encontrar um editor. E, sendo editado, é muito difícil vender o livro. É muito
difícil fazer chegar o livro nas livrarias. Tudo é muito difícil na vida de um
escritor. Eu escrevo há 40 anos, sei disso. Alguns tem sorte, fazem sucesso
fácil. Mas o sucesso fácil pode ser enganoso. Mesmo os que fizeram muito
sucesso um dia podem cair no esquecimento, depois. Eu poderia citar vários
casos. Entretanto, o escritor tem de ter sucesso de alguma forma, isto é,
público. Nós escrevemos para alguém. A não ser que seja um escritor que se
julgue um gênio tal que escreva para o futuro. Um louco. A atual literatura tem
muita gente boa. Em cada estado brasileiro você encontra uns 10 bons
escritores, nem sempre eleitos pela media. Os grandes jornais só privilegiam a
literatura estrangeira. Mas estão perdendo prestígio para a Internet. Os
estudantes universitários só pesquisam pela Internet, não pelos jornais. Eles
são os nossos grandes leitores, hoje. Você precisa ver como o Canadá promove os
seus escritores. Nas livrarias eles estão na frente. Portugal os divulga no
mundo. O governo espanhol mantém uma verba especial para a «nova poesia». O
governo alemão compra parte da edição de todo escritor alemão, para incentivar.
Há uma verba para a aposentadoria dos escritores. Nas bibliotecas, a consulta a
escritores alemães é paga. Muitos governos se orgulham de seus escritores. O
Brasil nada faz. Aqui o escritor não tem prestígio. Se você está em Paris e
alguém pergunta: «O que você faz?», responda «Sou escritor». Será olhado com muito
mais respeito.
GP - Como professor aposentado, você acha que
a universidade tem cumprido o seu papel na formação dos que ali chegam e se
tornam graduandos?
Algumas
universidades de bom nível, talvez. Mas o bom aluno independe da Universidade.
A universidade mudou muito. Está em crise.
GP - Como viajante, quais são seus planos?
Fale de suas viagens.
Sim, sou
um viajante nato. Gastei tudo que tinha em viagens, inclusive o fundo de
garantia. Fui 2 vezes à Austrália, 3 vezes ao Nepal, várias vezes à Europa,
várias vezes aos USA e ao Canadá. Foram viagens de longa permanência, sozinho.
Certa vez fique 2 meses e meio no Nepal. Ou 2 meses no interior da Austrália.
Creio que fui 17 vez ao exterior e viajei muito pelo sertão e pelo interior do
Amazonas. Viajei de carro, trem, barco. Hoje estou mais devagar. Falta energia
física. Além disso o mundo está em guerra... Lembro-me que, logo após a 11 de
setembro, fui a Los Angeles: fui examinado pela polícia várias vezes no
caminho. Um amigo meu estava no Oriente e de repente se viu no meio de uma
guerra! Passei sobre o Iraque depois da primeira guerra do golfo e vi os campos
de petróleo em chama. Estive no Aeroporto do Paquistão e me impressionou aquele
país. Hoje é um pouco perigoso viajar como sempre fiz, sozinho. Além disso, há
assaltos até em Paris.
GP - Quais os projetos que Rogel Samuel têm
em mente por realizar?
Estou
trabalhando em «A história dos amantes», que está saindo na Internet, em
http://www.blocosonline.com.br/home/index.php É um texto antigo, todo re-escrito.
Conta a vida de jovens na década de 60, sob a ditadura militar.
Entrevista
concedida em 2002 para o Guia de Poesia – O diferencial humano. Veja mais Rogel
Samuel aqui, aqui e aqui.