sexta-feira, março 29, 2019

SURTOS & POEMAS, DE AGLAÉ GIL



Cavalo de antolhos

Vez por outra eu me surpreendo agindo como um cavalo de antolhos.
Eu me sinto desconfortável com os arreios que me dominam,
eu me revolto contra as mudanças de curso
a que eles me obrigam.

Como se eu fosse outra coisa, outra pessoa,
outra força - que não a minha -
que me impelisse a fazer o que não devo,
a sofrer o que mais não posso,
a desejar o que não me cabe.

Minha fúria, é, então,
a marca que me condena.

Agora que começo a entender isso, talvez seja
mais fácil conhecer essa mulher
que me sorri ali, no espelho,
e, assim, me livrar dos antolhos,
dando lugar a um animal liberto,
que se concede um galope soberano.

Pela doçura de algum amor

Eu pedi que trouxessem as palavras mais duras que pudessem encontrar.
Elas me foram servidas  em um daqueles dias em que se tem fome apenas de
doçuras, mas, ainda assim,
eu sabia que precisava me alimentar de algum amargor.
Salivei e esperei.
Ao redor, havia um mundo de dizeres outros que não meus.
E pensamentos molhados de água com sal.
As palavras, duras, amargas, pediam para ser engolidas em seco,
antes que me fosse permitido qualquer outro sabor.
Virei o tempo, ventei vontades.
E verti o caldo delas todas.
Minhas e suas.
Para depois, poder me fartar de algum amor.

Apocalipses

Vou me lembrar de você mesmo depois
da lua encarnada
do céu escarlate,
das veias abertas
da ampulheta quebrada, cacos espalhados pelo céu.
Vou me lembrar de você.
O que mora na alma fica.
Tatuado em silêncio e oração.

Poesia e só

Não adianta. Poesia para mim é estado de espírito, é rasgo na alma, é palavra nascida naquele oceano em que a lua se lava.
Não adianta. Não meço palavras, escrevo o que sinto, pulo as cercas convencionais, dou uma banana para os provincianos.
Poesia não nasceu em mil e alguma coisa. Nasceu muito antes do tempo, talvez tenha surgido na grande explosão. Virou pó de estrelas, caiu sobre o Everest e veio parar em quem não faz questão de aprisionar sons.
Porque poesia mesmo, poesia, ali, no duro, não é de ninguém.
Anda solta e voa. Passarinha de si.

A vida é mulher. Luas

Ainda é lua cheia e o que me diz?
Sair para azarar os homens nos bailes da melhor idade?
Tentar aprender danças de salão e fingir que de um tempo que não é nosso se tem saudade? Sentar à mesa de um bar qualquer em companhia da cerveja que não fica velha apesar de 'choca'.
Ainda é lua cheia. E o que se quer?
Abrir os braços diante do mar e rejuvenescer?
Brincar com os netos, reaprender?
Soar trombetas? Desaparecer?
Novela das nove para se irritar?
Abraçar o corpo amante, beijar na boca, gozar?
Andar à toa, brigar na trilha. Vociferar?
Ainda é lua cheia. O que me diz? O que lhe falta para se sentir feliz?
Parir estrelas?
Conhecer Paris?
Saltar pedras em rios?
Cantar Bethânia, Gal, Elis?
Ou fazer um mea culpa  ouvindo Marisa cantar “Bem-que-se-quis”?
Agora, lua minguante.
E o que se quer?
Receber a vida todos os dias, mesa posta, cama feita.
Beijar o riso dela, riso como o seu.
Riso em cascata. Mulher.
O banho de todos os mares. O sangue de todos os óvulos.
É. É lua minguante. E o que se quer?
Viver a vida, do jeito que a vida quiser.

A teia

Há toda essa teia. Não sei se fui eu quem a teceu, mas acho bem provável, até.
Porque os dias foram se formando em elos e eu os peguei com as mãos crispadas. Depois, não sei.
Quando voltei, vi esta teia ali, diante e adiante. Muda. Estática.
A nada comeu, ainda. Não há insetos ou afetos mortos. Não há vento.
Ainda que eu queira - e quero com uma força imensa - me entremear ali, não posso sair de minha moldura, onde sou o retrato daquilo que sobrou de mim.
Depois do sono ao qual me entreguei ou para o qual fui lançada.
Depois de meus quereres sem nexo.
Depois de meus amores sem sexo.
E esta paixão, quem sabe última, fica assim, sem graça e sem futuro.
Eu a desejar a teia, imensa, bela, agora brilhando à luz de um raio teimoso de sol em plena noite. Eu a desejar ser dela como jamais fui de alguém.
E ainda assim imóvel. Ainda assim pequena.
Presa à moldura envelhecida de meus cinquenta e tantos anos absolutamente nus.

Retrato na retina

Às vezes a gente quer encontrar uma moldura perfeita para determinada gravura. É tão difícil, nada combina...nada parece construir redoma em torno de algo que se retém de belo...principalmente quando está somente gravado em nossas retinas.
Penso que é assim o que sinto agora.
Fiquei imaginando onde poderia guardar uma lembrança quase perfeita que tenho em mim, de um rosto amado.
É um retrato que gostaria de manter, sempre, na memória.
Aquele sorriso, talvez eu jamais veja novamente. Um sorriso de vida fluindo e de uma ternura sem fim.
Está aqui, gravado em minhas retinas, mas não importa o quanto eu procure ou faça, não consigo emoldurá-lo. Nem mesmo as flores do amor posso usar, pois elas agora me parecem cinzentas, caída, murchas. As pétalas se perdem à toa, tamanha sua fragilidade.
Não quero o vazio, contudo não posso retê-las, porque elas recebem de um vento frio o aviso para que se percam em nome da transformação precisa da natureza.
O mesmo vento castiga meu peito.
Dói menos, porém o vazio que se agiganta, assusta. Isso é tão estranho, diferente e distante de mim.
O relógio já dá as doze badaladas. A noite tem um silêncio que me pede o descanso.
O retrato guardado terá que esperar. Talvez eu o guarde mesmo, para sempre.
Até que ele, amarelado e gasto, nem me diga mais de quem é aquele sorriso.

O que faço?

O que faço de mim
que andei tristonha e
alegre pela vida
e escondi minha dor
pra fazer graça
das coisas disponíveis aos olhos do tempo?

O que faço da marca ajuizada
e enlouquecida
que vence o fantasma
quando eu apenas quero rir
e denegrir a ideia da morte?

Faço graça, de novo? Faço poesia?

Olho bem nos olhos do tempo.
Ele é quem faz graça.
E passa.
Eu faço poesia.
E passo também.
Ela fica.
Nos teus olhos, nas tuas marcas.
Pra sempre.

Tijolos amarelos

Hoje eu vi a estrada de tijolos amarelos em algum ponto do olhar da menina que passou e fez de conta que a vida tinha mais do que ciclones e pés-de-vento.
Era como ler poesia em plena luz de um dia quase todo azul, não fosse por aquele ponto de infinitude amarela nos olhos dela.
Compreendi que não importa a idade que temos, quem somos agora, qual o nosso nome e endereço: somos parte de algo muito maior e que faz todo o sentido quando juntamos as peças do quebra-cabeça, aos poucos, com vontade e capricho. Quando lemos a história escrita por nossos pares.
Somos um pouco de todos que já percorreram a própria estrada de tijolos amarelos, tenhamos 10, 20,30,40,50,60,70...anos.
Porque estamos na vida para viver e, neste mundo, para aprender a caminhar.

Eu

Essa fuga dos dias,
dos pensamentos,
da sensatez.
E eu a ficar,
reduzida a brisa marinha
e a pedra de rio.
Os olhos entreabertos
e lágrima escorrendo
em silêncio
em silêncio
em silêncio.
Esta vida comprida
e eu a lidar.
Mãos aguerridas
e alma poeta.
O sorriso boiando feito uma
meia lua no céu.


AGLAÉ GIL - Nasci em Curitiba, ano de 1960, em um mês de fevereiro antes do carnaval. Era uma manhã de sexta-feira. A paixão pela leitura desencadeou, penso eu, a paixão pela escrita, a que me lancei desde muito cedo, sob a atenção de meu pai, um leitor tão apaixonado quanto eu e que antes de eu saber ler e escrever, lia para os filhos, sempre à noite, quando nos reuníamos em torno da mesa de jantar. Eu ficava fascinada por aqueles mundos que ele trazia à tona, desvendava diante de nossos olhos. Geralmente, um mundo real, pois ele lia História Ilustrada, uma coleção lindíssima. Eu aprendia, quase me afogando com as informações que me vinham como uma claridade abençoada. História e Língua Portuguesa sempre foram as matérias preferidas. Ainda são temas de estudo para mim. Minha formação é em Letras-Português, com ênfase em Produção de Textos [pós]. Trabalho como revisora de textos há trinta anos, porque o trabalho do código de nosso idioma e a tessitura de frases, períodos e textos são para mim como tricotar uma longa manta de lã macia e de muita qualidade. Uma paixão. Eterna. Quanto à História. Bem, estudo muito e sempre, movida pelo prazer da pesquisa e pela sede de conhecimento. Essencial. Tenho apenas um livro publicado: “Memórias de uma Fruta Madura”, de 2015, uma coletânea de meus textos mais intimistas. Não sou afeita a rótulos. Conto pequenas histórias, escrevo poemas, fotografo a vida. Escrevo para me manter sã, para tecer aquela manta que mencionei antes. Gosto da sensação, porque sinto que com ela [a escrita, a manta] eu posso aquecer muitas almas irmãs. É isso. Veja mais aqui.