Imagem: não sei quem bateu essa foto, mas sou
eu na pedraria do rio Pirangi – Palmares – PE.
ALGUMAS DO CÉLIO CARNEIRINHO
Célio Carneirinho – o Célio Carneiro de
Siqueira -, era o mais quieto, sossegado e de venta aprumada da patota toda da
gente. Como cada um da gente tinha seu pantim, o de Célio era sair com as
tiradas inteligentes, curtir bossa nova com uma cara de chiclete Ploc e jeitão
de John Lennon, caladão mas certeiro na horagá. Parece que ele se guardava ou
se economizava para dar rasteira na gente que compunha duas ou três músicas por
dia e falava demais. Ele não, só arrematava!
Como eu já dissera noutra, era da dupla Gulu
& Carneirinho o sucesso mais retumbante entre a gente: Leonor. E isso deixava ele todo pavoneado: não havia rodada de
birita, conversa jogada fora, petas e patranhas soltas, que não cantássemos
todos juntos esse grande sucesso!
O nosso principal divertimento além de
livros, muita música e biritada às fumaçadas muitas, era dar umas caminhadas
até Água Preta pela estrada de São Manoel, dar umas voltas boas por Pirangi e
sair por aí.
Um dia lá depois de coçar muito saco e se
encher de tédio no meio do mormaço da tarde, a gente assuntou de ter com o
poeta e alfaiate Raimundo Alves de Souza. Corria o maior boato de que ele era
pai de Vinicius de Morais e a gente queria tirar a prova dos nove. Peguei um
volume duma coleção que tinha a foto de Vinicius, um gravador embaixo do sovaco
e fomos bater lá na dele na Rua Nova. Ele nos recebeu cordialmente, mas meio
assim porque o negócio dele era ficar na janela soltando cantada para as
moçoilas passantes, apesar de segurar um dreno e não ter mais idade para mandar
ver. Nesse dia atrapalhamos esse seu afazer já no alto dos seus noventa e três
anos. Apesar da idade, ele recitava poemas de cor e contou da sua vida.
Inclusive que tivera vinte e três filhos, dois deles jamais vira. Aí disse: -
Um deles é engenheiro ou arquiteto lá pras bandas de Brasília.... -,
entreolhamo-nos e como o boato de Vinicius era forte, pensamos na hora: - Será
que esse homem é pai também do Niemeyer? Nada. O poeta contou amiudado de
muitas e todas a respeito de mulheres, o que era verdade. Todo mundo dizia que
ele fora um verdadeiro Don Juan estraçalhando a vida de muita donzela. Foi
quando entrou Vinicius no papo. Ele não desmentiu e contou uma história de que
uma distinta senhora se apaixonara por ele no Recife e dali rolou tudo. Quando ela
soube que ele já era casado, chamou uns capatazes e mandou matá-lo... ela era
duma família ricaça de usineiros de Alagoas. Um tiro de espingarda acertou-lhe
o braço, conseguindo-se livrar do tiroteio. Contou-nos que tempos depois, um
granfino de Minas Gerais deitou-lhe admoestações para ele não abrir o bico acerca
do namorico e que o mesmo assumiria seu filho num casório no Rio de Janeiro. Acrescentou
ele que um seu amigo Zezinho Quaresma lhe dissera tratar-se de Vinicius de
Morais e que o mesmo já sabia que era filho único de um pai de muitos filhos. E
o velho tinha filho como praga mesmo e tudo brigado de ferro e fogo em Palmares
e por esse mundão. Quando ele começou a dizer o nome dos filhos, a panelada
começou a cair na cozinha. Baques de coisas lá pra dentro deu-nos a
desconfiança de que a esposa dele lá dentro não estava gostando do papo, coisa
que ele tratou logo de dar um fim e de quase botar a gente pra fora, depois de
recitar uns dez sonetos de sua própria lavra, cada um melhor que o outro.
Procuramos depois os filhos dele e cada vez que chegávamos, bastava falar o nome
dele pra porta bater na cara da gente. O poeta Juarez Correya foi tirar isso a
limpo e depois publicou na revista Poesia que ele editava no Recife, dando
conta da paternidade do poetinha. Anos depois conseguimos que os familiares
entrassem numa trégua e por iniciativa de um dos netos dele, as Edições Bagaço
pôde publicar seus poemas em livro.
Essa foi uma das muitas e tantas outras aventuras
nossas que caberia numa coleção de fascículos bem gordinhos duns cinquenta
volumes. A maior delas foi quando nos juntamos para irmos até a Serra da Prata,
de pé por Pirangi. Arrepara só! Acertado, não sei se sábado, domingo ou
feriado, só sei que saímos o dia amanhecendo eu, Ângelo, Gulu, Ozi, Ripe, Mauricinho
e Célio – não lembro de mais algum outro da trupe, com o maior alforje de
brebotes enlatados, bebida, cigarro, violão e muito papo. Quando chegamos no pé
da montanha já era meio dia e faltava muito pra gente chegar lá em cima e ver o
panorama. A primeira coisa que Célio reclamou foi: - Pra quê mesmo a gente
trouxe a porra desse violão? Nossa, estávamos cansados e até a roupa pesava. Célio
foi quem mais sofreu: usava uma calça jeans daquelas bem apertada, assim tipo
ele era manequim 46 e usava uma calça 38, deu pra entender, né? E o pior: o
saco do cara parecia inchado entre as pernas abertas. Um sufoco! Arranchamos embaixo
da primeira sombra que encontramos, esquentamos os quitutes e feijoada
enlatada, bebericamos e a conversa era uma só: vamos voltar de Rural, não dá
pra voltar a pé. Só que se ficava longe de Palmares, ainda tinha muita terra
pra Catende. Decidimos no palitinho e entoamos juntos o Trem das Alagoas de
Ascenso Ferreira: “Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar”. E
que vontade de chegar. Comemos poeira e estrada. Quase cinco horas da tarde foi
que achamos a dita Rural salvadora de todos os anjos e santos e améns e
voltamos aboletados morto de cansados pra Palmares. Viramos frase d´O Corvo de
Edgar Alan Poe: “Nunca mais!”.
Pra encurtar a história, vou provar pra vocês
porque o Célio era o mais famoso entre a gente. Como dissera, ele é um dos
autores do sucesso Leonor.
LEONOR
Nem mais Ipanema num chope no bar
Num fim de semana de papo pro ar
Quero ver como é, como é que vai ficar
Sem você comigo não dá pra levar
Sem o seu carinho não vou suportar
Leonor, você era a mais linda
Entre as flores do meu jardim sem flor
Amor, foi você tudo que eu tinha
Eu lhe perdi, foi culpa minha
Amor, amor, amor, só Leonor.
Depois, ele mandou ver noutra parceria: Pirangi, com Marco Ripe que hoje se
assina Marco de Olinda. Uma música lindíssima!
PIRANGI
Voltei pra rever o pedaço de mim
Que ficou por aqui
Ó Pirangi eu tentei me separar de você
Gosto de lembrar das tardes fagueiras
Que se iam ligeiras
Ó Pirangi eu tentei me separar de você
Mas aqui estou e quero abraçar tuas pedras,
Tua fonte, mergulhar em você e ficar.
Doutra feita, outra maravilhosa parceria que
acompanhou o sucesso de Leonor e Pirangi: a parceria dele com Zé Ripe, Mata Sul.
MATA SUL
Terra que o diabo vadeia
Mulher tira homem pra dançar
Coragem não existe nessa terra
Urubu quer uma cana pra chupar
A carniça está toda ocupada
Em contrato com tudo que é doutô
O pior é que a coisa sempre cai
Na mesa do trabalhador
Sim, sinhô
Sim, sinhô
Na mesa do trabalhador.
Essas três músicas são cantadas e gravadas
até hoje de tão maravilhosas que são. Célio só não teve muita sorte com uma
outra parceria: eu. E conto direitinho o porquê de não vingar. Seguinte: uma
sexta feira da paixão de mil novecentos e lá vai teibei, a gente se arranchou
na garagem lá de casa e depois de embeiçarmos uns dois botijões de vinho de
cinco litros (com mentira e tudo!), a gente achou de selar nosso pacto na
primeira parceria musical. Começamos a juntar acordes e a solfejar melodias
rascunhando uma letra que no fim deu uma balada até que da boa, só que a gente
estava meio bicado e havia baixado um santo tipo Roberto Carlos às avessas.
Apois foi. Fizemos, mangamos, rimos que só um da cara do outro e ficou. Ainda
sei de cor:
ANTIROMANCE
Ah, esse amor partido, sem gosto e sem cor
Na sua efígie de quadro borrado
Ah, essa dor que murmura
Resmunga terna e segura
Nosso ocaso na inércia do sonho
Ah, que as veredas do amor me corrói
Na insensatez da vergonha
Que me arrebata, me torce
E me põe desolado
Nessa caso meio inacabado
Quantas manhãs refletem o amanhã
E o sentido do gozo e da dor
É que o amor remexe e me trai
E me põe de cabeça pra baixo.
Acho que foi depois dessa que o arrependimento
bateu forte nele de resolver de uma hora pra outra tomar tento na vida. E foi, duma
vez só deu uma direção na vida: passou no concurso Banco do Brasil e no
vestibular de Direito. Por causa disso se avexou logo em noivar para nunca mais dar as caras no meio da gente. Formou-se, acho que já se aposentou
e deve estar gozando a vida num restaurante no litoral pernambucano, não sei
onde. Um dia desse nos encontramos em Maceió e ele taxativamente disse: - Não
tenho mais tesão nenhuma pra essas porras de música. Tô noutra e vamos nessa!
Saravá, amigo Célio & pro povo todo & meninada
que já deve estar tomando conta de tudo! Beijabrações.
Veja mais Passando a limpo.