segunda-feira, abril 30, 2018

A ARTE DE SER PROFANO DE FERNANDO SPENCER

A ARTE DE SER PROFANO DE FERNANDO SPENCER – O vídeo A arte de ser profano (1999), do cineasta e jornalista Fernando Spencer (1927-2014), traz o pastoril profano em Pernambuco, na figura do Velho Xaveco (Antonio Coutinho, Bezerros –PE), um ferroviário aposentado, compositor, percussionista e ex-forrozeiro que desenvolve atividades com o pastoril profano, autor dos álbuns Eu já fui bom nisso (1991) e Pacu pequeno, pacu grande (1995). O vídeo conta com fotografia de Elias Valadares, Iluminação de Gilmar Luiz Ferreira, edição de Tuca Maia, roteiro e direção de Fernando Spencer, narração de Renato Phaleaente, assistência de produção de Walter Carneiro. Veja mais aqui.


A LITERATURA DE JOSÉ ARLINDO GOMES DE SÁ


PRELÚDIO EM BREVE EMBALADA ARMORIAL

- O dia é limpo quando o astro incandescente
Alumia o passo da gente
Que vai cedo pro roçado.
Cantando as mágoas no roteiro da estiagem
Sem faltar com a coragem
No aço quente do machado.
- E nas veredas acende as cores fortes do Pajeú
Mata a sede com imbu
E a fome com bode e farinha.
Termina a jornada no aboio triste da tarde
Que na goela seca arde
Como se tivesse espinha.
- A cantiga reacende e mais tarde continua
Quando à noite chega a lua
No compasso da serenata.
Abrem as janelas com os acordes das fantasias
E só encerram as cantorias
Quando a aurora desata.
- E o tempo escorre na cadência do meu rio
O ano passa o desafio
De mais uma dor consumida.
Se quer saber venha na seca com o sol vivo
Talvez assim fique cativo
Da embalada dessa vida.

CANÇÃO DO AMOR DITOSO DO RIO DO PAJÉ

Tudo que amamos
No rio do reino quente
Tem o sopro do vento norte
Que bafeja as vertentes pedregosas
Da cosmogônica Serra do Arapuá
E roça de leve os rostos lanhados pelo tempo.
Tudo que temos
No espaço incandescente do Sertão
É a estrela variável e companheira aquecendo
Com a esperança, o amor e a fé
Corpos trançados por centelhas ocres
Que não se desalentam com o chão por despertar.
Em tudo sentimos
O gosto adusto da terra terrosa.
No rio dos poços alumiados pelos sonhos
O sentimento telúrico de encantação
Amanhece nas veredas ribeirinhas do Pajeú
E anoitece na paz do luar que banha as calçadas.
(Poemas extraídos  da obra Águas do Pajeú: poema dos pejeuzeiros – Recife, 2002)


UMA HISTÓRIA DE AMOR SERTANEJO

[...] Quando o vaqueiro Cristóvão montado no pedrês estancou o cavalo na beira do rio, seriam talvez cinco e meia da tarde. [...] Ergueu a cabeça, apurou a vista e no horizonte próximo à sua esquerda o sol já tinha se escondido e o deixara o clarão avermelhado iluminando o que restava do dia. Cristóvão herdara muito do temperamento do pai, o vaqueiro Amâncio. Da mãe, Mariazinha, apenas a mansidão, que só se manifestava em raros dias chuvosos. Era um desses homens destemidos que enfrentam desafios para retirar o mel ou o primeiro suco, mesmo que o resto do fruto fosse riqueza ou utilidade para muitos. No seu jeitão simples, direto e decidido tinha palavras breves e bem colocadas. Contava histórias curtas, todas verdadeiras, que lhe aconteciam e que sempre deixavam algum ensinamento de vida de homem livre que levava e para quem parava para ouvi-lo nas conversas das barracas de feira que gostava de frequentar. [...]. Marilena era uma moça com pouca iniciativa, mas se dedicava a qualquer tarefa com entusiasmo juvenil quando uma de suas amigas tomava a liderança de algum movimento social. Foi assim que se revelou excelente bordadeira, mesmo sem nunca ter mostrado qualquer pendor, quando sua prima Lucivânia pediu para ajuda-la na confecção do enxoval de casamento e do primeiro filho. Resolvia todas as coisas na hora, sem pestanejar e depois das serenatas que lhe dedicavam os rapazes da cidade, costumava afirmar que acordava sempre com a impressão que tivera naquela noite uma aventura heroica, sendo ela um objeto de desejo em meio a uma disputa, uma epopeia. O amor é um jogo de muitas forças, que lhe requeria muito equilíbrio para controlar as emoções muito fortes que giravam em torno dela. Nunca se conhece a razão de um amor. [...] E uma notícia estava espalhada nas ruas, nas esquinas, nos bares e, sobretudo, no ambiente carregado de tensão da casa de Marilena: - O vaqueiro Cristóvão roubou a filha do coronel! A velha dona Iaiá, que já entrara em muito tempo pela casa dos sessenta, desmaiou com todo o peso do seu corpanzil no cimento liso da sala de visitas da casa assobrada ao ler o bilhete de despedida deixado pela filha do meio (dias depois, corria o boato que a moça tinha perdido a virgindade; e que diante do caráter antiquado e intransigente dos pais, não tivera outra alternativa a não ser aquela fuga). O coronel Clodomiro não resistiu ao impacto da vergonha: caiu ali mesmo e morreu fulminado por um colapso cardíaco. Dona Iaiá, que fraturou os ossos do braço e coxa direitos, viveu o resto dos seus dias na sua cama imperial e faleceu dois anos depois numa tarde chuvosa de relâmpagos e trovões. Cristóvão e Marilena ganharam o mundo. Anos depois, veio a notícia do Pará. Não se sabe o motivo pelo qual dos dois não tiveram filhos. O vaqueiro morreu numa discussão com um sócio, pelo controle de uma área de garimpagem em um daqueles rios quase inacessíveis da Amazônia. A donzela enlouqueceu e terminou escravizada no bordel mantido pelo assassino. [...].
(Extraído da obra As viagens do Pajeú: crônica de um rio – Vanguarda, 1997).


MINHA TERRA, MINHA GENTE, MEU BARRO

Descendo da linhagem de um rio poético, cosmogônico e pelejado com boiadeiros. A família tia um recanto consagrado na esquina universal dos encontros, por onde o rio jorrava incumbências. Em sua serenidade navieira e pajeuense, minha mãe cuidava de embalar na rede abridora do amanhecer os sonhos dos filhos do Pajeú e do Navio. As origens de água e de lua já estavam seduzidas nas areias do reino abrasado. Refolhado nas grotas dos riachos, cresci entre a gente humilde e as veredas que levam ao âmago da terra. Por gosto de pisar descalço, apreciava permanecer alumiado ao relento dos ipês e mulungus e ouvir a sanfoninha dos canoeiros na travessia do chão ribeirinho. E aquelas permanências amontoando folhas, que se transformavam no borralho dos caminhos da serra do Arapuá, fascinando ideias nas letras da escola, cedo descobri que todas as palavras seguiam os passos do coração do rio, fluíam entre os riacho de mel e viajavam nas asas das aves de arribação. [...] A terra, minha gente, meu barro, o canoeiro à espera das trovoadas, as pedras do rio refletindo o sol, a rede que range no torno de imburana, a luz amarelo-ocre do carrascal, a paz melancólica da tarde que se esvai e a noite tépida da serenata! Ah, belos amores sem fim e sem meios entre os poços e o sol, refeitos pela aurora do Pajeú! Areias de minha vida ribeira, os olhos ainda cheios de verde da momentânea lembrança das águas barrentas, neste desertão todo recortado de ais. Canção solene, lúcida, dorida... Por que sinto minha voz embargada? Canoeiro, atravessemos o rio de águas mornas como um sinal de ardente sina e conduzi-me agora, onde gira a flor do vagaroso desejo, da silenciosa saudade entre as dores que nos estremecem! Ó peso da vida, dai-me a voz do coração na grande estiagem dos velhos dias terrenos, antes de morrer na solidão das veredas pajeuenses! Mas no desconcerto das coisas inacabadas, já comecei a cantar as natências das terras florestanas para robustecer os seus encantos. [...];
Extraído da obra Andanças do Pajeú: poesia e prosa (Coqueiro, 2014).


A MULHER NO CAMPO

[...] Ela nasceu aqui mesmo, por trás da aba da serra, em um sítio cheio de fruteiras, de uma família simples. [...] Com um sorriso que não se apaga – nunca a vi sem aquele sorriso – ela explica que ainda tem muito o que aprender com a natureza, mas que seu segredo, aquilo que a impulsiona é a vontade de viver a cada instante, sem pensar no que passou ou no que virá, basta o agora. – É só vivendo o presente que podemos amar os outros! Essa descoberta foi feita nos primeiros anos em que o Frei Damião vinha fazer sua romaria, quando ela percebeu que “tudo é amor de Deus, mesmo as dificuldades”. [...] – Nunca tive dificuldade com meus pais, minha família, em casa ou no trabalho da roça. Mas procurando amar cada um como gostaria de ser amada. A primeira experiência que tive nesse sentido foi no sitio do vizinho, que vivia a viuvez de quase dez anos. Ao chegar, vi toda casa suja. Não era minha tarefa limpá-la, mas fiz por amor. E senti uma grande paz. Depois desse episódio, seguiram-se muitos outros, pequenos gestos que a fizeram descobrir, aos poucos, uma nova maneira de viver, que a deixava sempre mais encantada com o dom da vida. [...].
(Extraído da obra O sorpo do vento da aba da serra – Coqueiro, 2009).


O POETA SE APRESENTA

Nasci no Reino Abrasado
Bem no meio do Estado
Que fica daquele lado
Onde se cultiva o imbu
Minha terra tem cultura
De reza e de benzedura
Gente bonita, gente pura
Que ama o rio Pajeú.

GEMIDOS DA TERRA

É quando a seca aumenta
Que o sertanejo enfrenta
Sua criação sedenta
Comendo até mandacaru
A situação é muito triste
Que a gente sofre e assiste
O boiadeiro que resiste
À falta d’água do Pajeú.

O CANTADOR

É firme, forte, inteira
Na varanda, na praça na feira
Essa voz tão brasileira
Sertaneja assim como o beiju
Constrói belas emoções
Distribuindo as ilusões
Para reforçar os corações
Com as cordas do Pajeú.
(Poemas extraídos do cordel O rio e a cidade – Cadernos Pajeuenses I – Coqueiro, s/d)


CANTORIA EM CHAMAMENTO

Prestem atenção, que o pano vai ser aberto!
Venham todos, venham logo para mais perto!
Vamos decantar a vida desse Reino Abrasado,
Sonhos de lume e paz, deserto de amor sagrado!
Chamem o sol e os odores do seu nascimento!
Deixai-o que repouse nos braços do sentimento!
Um rio forrado com frutos para sonhar!
E um candeeiro aceso que me possa acordar!
Um riacho de encantos que a gente quer ter
E braços longos nas roças que nos façam crescer.
E assim desvelar os olhos, encontrar a vida
E amar com o amor de areias incandescidas!
(Poema extraído da obra Recital do Serão do Rio Pajeú e do Riacho do Navio –Universitária, 2002).


A PELEJA DE JOÃO MÃOZINHA E BIU DO PIFE

João Mãozinha:
Cumpade Biu do Pife
Meu foguete é medonho
O pife soa bonito
Do fogo, porém faço sonho

Biu do Pife:
Eu sempre vivo risonho
Com meu pife encantado
E seu foguete clareia
Meu som pelo arruado

João Mâozinha:
Se não tive soltado
Minhas lágrimas no céu
Ninguém lhe daria aceno
Com a aba do chapéu

Biu do Pife
Eu sei que seu fogaréu
Ilumina o céu do Pajeú
Mas o pife afinado
Tem o canto do uirapuru

[...]

João Mãozinha:
Feio é não reconhecer
Que em toda festa
Meu trabalho é bonito
E nenhuma dúvida resta

Biu do Pife:
Os tamarindos de Floresta
Se enfeitaram de alegria
Do empate dessa peleja
Voltaremos noutro dia
(Extraído do cordel A peleja de João Mãozinha e Biu do Pife – Cadernos Pajeuenses II - Coqueiro, s/d.)


JOSÉ ARLINDO GOMES DE SÁ – José Arlindo Gomes de Sá é médico, poeta, contista e cordelista, membro titular da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES – PE), e autor de diversas obras. Veja mais aqui.



CONGRESSO MATÉRIA- PRIMA

CONGRESSO MATÉRIA- PRIMA – Acontecerá entre os dias 10 e 13 de julho de 2018, na Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), em Portugal, o VII Congresso Internacional Matéria-Prima: práticas das Artes Visuais no ensino básico e secundário - VII Congresso Matéria-Prima, 2018, com o objetivo de lançar desafio aos professores e investigadores em ensino das artes visuais, de partilhar novas perspectivas operacionais de desenvolvimento curricular com focagem nos seus resultados concretos. A proposta do evento está voltada ao tema geral do ensino das artes, perspectivas e exemplos do terreno, pretendendo criar um espaço de partilha de experiências com resultados de trabalhos desenvolvidos em unidades de trabalho e respectivas reflexões sobre o sucesso, avaliação, adequação. Trata-se, portanto, de cruzar olhares entre os profissionais experimentados, os investigadores em práticas pedagógicas e em desenvolvimento curricular e os alunos do mestrado em Ensino das Artes Visuais (UL) que ensaiam apoios nas experiências educativas. Maiores detalhes aqui.


quinta-feira, abril 26, 2018

DANCE NO LIMA 2018

DANCE NO LIMA 2018 – Acontecerá entre os dias 25 e 27 de maio de 2018, às 19hs, no Teatro Lima Penante/NTU, na Rua João Machado, 67 – João Pessoa – Paraíba, o Dance no Lima, com o objetivo de promover apresentações de dança em todos os seus estilos e tendências com o objetivo de difundir e estimular a diversidade, a pesquisa e a produção em dança, incentivando a reflexão sobre temas atuais na área visando ainda a criação de plateia. Maiores informações aqui.


quarta-feira, abril 25, 2018

O CARA DE FOGO, DE JAYME GRIZ

O FANTASMA NEGRO DO BUEIRO DA USINA CUCAÚ – [...] Encontrado o dobrão de cobre, grande alvoroço da turma de trabalhadores e dos curiosos que apanhavam os trabalhos de derrubada da capela. Parou todo mundo de trabalhar e de ordem do cabo da turma, um sarará de Porto Calvo, que gritava mais para seus homens do que trabalhava, chegou por mãos de um preto um ferro-de-cova que por este passou a ser usado na escavação do lugar onde fora encontrada a moeda de cobre. A certa altura do trabalho do preto o ferro-da-cova bateu em qualquer coisa lá embaixo. Uma pedra ou um pedaço de ferro. Pareceu mais ferro do que pedra, pelo som da pancada. O preto estremeceu e parou no seu trabalho. Levantando a cabeça para os presentes, disse: - “É a botija!” E todos prorromperam em gritos: - “A botija! a botija!” E o sarará berrou: - “Quem não é da turma, fora daqui! Fora! Fica de longe!” Afastando-se os curiosos, prosseguiram os trabalhos. Foram arrancadas outras lajes em derredor do espaço escavado e depois, com o uso de pás, chegou-se finalmente ao ponto onde estava a coisa tocada pelo ferro-de-cova. O sarará fez parar os trabalhos e ele próprio desceu à escavação e examinou o que estava lá. E falou: “É uma caixa de ferro”. Outra vez prorromperam novos gritos: - “A botija! a botija!”. [...]. Trecho do conto O fantasma negro do bueiro da usina Cucaú, inserido na obra O cara de fogo (Museu do Açúcar, 1969), do poeta, jornalista, economista e folclorista Jayme Griz (1900-1981), analisado no artigo Lendas, crendices e abusões: alegoria e história em O Cara de Fogo, de Jayme Griz (Revista Entrelaces, Jan.-Mar, 2018, pelo bolsista PIBIC-CAPES do Departamento de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Ivson Bruno da Silva, sob orientação do professor João Batista Pereira, concluindo que: [...] Decerto, o conto de Jayme Griz ultrapassa as tentativas de ser enquadrado no âmbito dos pressupostos conceituais da literatura fantástica. A recorrência ao mito, ao folclore, à oralidade e ao mundo rural que o acolhe, além da singular e afetiva abordagem como ele transfigura o insólito, dificulta situá-lo nos condicionantes teóricos usualmente adotados para o estudo do gênero. Ao fim e ao cabo, permaneçamos com a essência do que suas histórias emulam: a capacidade de instituir a sabedoria por meio da memória e da tradição. Lembremo-nos de que os temas dos seus contos somos todos nós, são nossas histórias, mantidas vivas cada vez que são verbalizados repetidamente, necessitando sempre de quem as escute para não se perderem na escuridão dos tempos: “E como ouço ainda esses distantes ecos...”. Veja mais do artigo aqui e mais de Jayme Griz aqui e aqui.


segunda-feira, abril 23, 2018

ANA DE FERRO, A RAINHA DOS TANOEIROS

ANA DE FERRO, A RAINHA DOS TANOEIROS – O espetáculo Ana de Ferro - A rainha dos tanoeiros, produzido pelo Grupo Teatral Risadinha, texto da carioca Miriam Halfim, está com apresentações previstas para os próximos dias 28 e 29 de abril, no Teatro Marco Camarotti (Sesc Santo Amaro, rua Treze de Maio, nº 455), em Recife, unindo história e ficção conta a história do relacionamento vivido entre Ana de Ferro e Maurício de Nassau, no período holandês pernambucano. Maiores informações pelo fone (81) 3216-1728 ou aqui.

domingo, abril 22, 2018

BUROCRACIAL DE VITAL CORRÊA DE ARAUJO


sou poeta
nomeado por concurso
(conserva de vida letrada
para patíbulos da posteridade)
sou o timbre
da voz pública
carne de fé oficial
para a fome do porvir
cidadão da sinédoque
servo da sinecura
caneta do mando
e do mundo
soldado do estado puro
do lucro e da lírica
munido senso
do aço e do cívico
(cínico roedor
dos ossos do ofício)
sou poeta
tributário da lei
obedeço
às gramáticas da palavra
os poemas da pecúnia
fabrico poemas sentado
nas almofadas
dos gabinetes
ou nos corredores
sem alfombra
perdido
na sala de espera
da esperança
prisioneiro
do relógio de ponto
final.

MEMÓRIA DAS MÃOS

a viva solidão
penetra o corpo
extinto de espera
atiça a saudade
o longo frio da noite
nas agudas chamas
do silêncio
o sonho acende
lentamente
se esculpe a espera
da matéria
do mármore do tempo
rebentam
imagens de carícia
no seio selvagem
(memória
ou imaginação
das mãos?)

BUROCRATA EM ATO

burocrata à cata
de processos obesos
buscando
nos autos esconsos
a raiz das rubricas
a metafisica
dos indeferidos
e os sem (cem) efeitos
da decisão letal
de público executada
pelo diário oficial
dentro do prazo
conforme os ritos
da morte processual.

INÍCIO DO EXPEDIENTE

o burocrata abre
o envelope da manhã
e lavra
no livro próprio o termo
de abertura do dia:
arruma-se na cadeira,
observa a agenda,
abre a gaveta, organiza
o edifício dos carimbos,
guilhotina uma pilha
de autos prioritários,
separa com sapiência
o expediente diário,
coloca no arquivo
os processos antigos,
indaga das notícias
do jornal oficial,
(antes de ler
a última edição
de seus despachos),
expulsa os resquícios de sol
do seu gabinete grave,
fecha as cortinas,
liga a sinfonia fria
do ar condicionado,
acende um cigarro,
repete o café,
cruza os sapatos:
começa mais um dia
burocrático.

LOJAULA

o objeto enjaulado
na vitrine
da loja
em colóquio mudo
com o olhar
selvagem
do consumidor
doente
em estado
de descrédito
preso
no lado de fora
da jaula
sem direito
de entrar
na loja
e consumir
o desejo do objeto
alojado
no lado de dentro
da jaula.

MÍTICA
A Edjar Powell

um galo grego
de canto escultural
que apanhe
o sol caído
da descuidosa mão
de Fídias e fabrique
num voo homérico
a mitologia no quintal.

POEMAFOME
(MÃO-POEMA)

um poema-soco
contra todas as sórdidas
formas da fome
contra todas as claras
fontes da fome
um poema-punho
contra todos os plenos
planos da fome
uma mão-poema
contra a face de flor
da fome
uma mão-poema
contra o pulmão frágil
da fome
uma mão-poema
em torno do esôfago
da fome
um poema-corpo
que seja
comida
para a sede
de ira
do homem-fome
um poema mão
à fome
um poema sim
ao homem
(sem fome).

A PALAVRA CALADA
A Luiz Carlos Guimarães


desfibra a palavra
quando cala
quando o caule
da árvore fala
que é vento
verbo e alicerce
anoitece
quando as selvas
todas são sugadas
e o trêmulo das folhas
proibido
quando os discursos
são lacrados
dentro das praças
sitiadas
e o som negado
aos ouvidos
e o grito cortado
na garganta
e o medo aberto
no meio abrupto
do dia
desfibra a palavra
quando a árvore da fala
e os frutos dos gritos
são demolidos
pelos silêncios vivos.

MORTO URBANO


os defuntos urbanos
jazem plácidos
inconclusos e confortáveis
estendidos
na sua morte
minuciosa
burocráticos
formolizados
imersos na tristeza
e na alfazema
entre flores sorridentes
com a etiqueta
da identidade inútil
espetada
nos pés em leque frio.

SEIOS

cumes de carne
sem metáforas
rijos
deuses redondos
para o culto
alpino
das mãos
pouso
da ave dos lábios
seres binários
de pele ágil
para a sede tátil
dos dedos
para a fome decimal
dos desejos
seios
sinuosos mistérios
róseos
abertas geometrias na carne
vivos cristais do desejo
que detonam
a claridade
adormecida no corpo
seios
formas carnais do instinto
que contêm o gesto
de tocá-los
e a sede
de bebê-los
instantâneos
seios de âmbar
e de espuma
seios de náilon
e de lua
seios de veludo
carmesins
seios que latejam
e gritam frenéticos
como pássaros impressos
no corpo amado
presos do desejo
de afagos
seios
canções de carne
que mordem a boca
e encantam a alma
da mão.


BUROCRACIAL – O livro Burocracial (Pirata, 1982), prêmio Escrita de Poesia (SP), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, é o segundo dos vários títulos publicados pelo autor que, conforme o poeta, advogado e artista plástico, Iran Gama, no prefácio da obra, assinala: [...] Burocracial é, pode-se dizer, um resumo biográfico, exposto por olhos de crase que se adentraram nos carimbos da vida, com todas as suas rorinas e até mesmo o sabor recente da novidade. Só que não é o resumo biográfico do poeta, cujos momentos, com êxtase, Vital Corrêa de Araujo apreendeu na exata dimensão da vida, do amor, da morte, e de toda a sua horizontalidade. [...]. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.