segunda-feira, abril 30, 2018

A LITERATURA DE JOSÉ ARLINDO GOMES DE SÁ


PRELÚDIO EM BREVE EMBALADA ARMORIAL

- O dia é limpo quando o astro incandescente
Alumia o passo da gente
Que vai cedo pro roçado.
Cantando as mágoas no roteiro da estiagem
Sem faltar com a coragem
No aço quente do machado.
- E nas veredas acende as cores fortes do Pajeú
Mata a sede com imbu
E a fome com bode e farinha.
Termina a jornada no aboio triste da tarde
Que na goela seca arde
Como se tivesse espinha.
- A cantiga reacende e mais tarde continua
Quando à noite chega a lua
No compasso da serenata.
Abrem as janelas com os acordes das fantasias
E só encerram as cantorias
Quando a aurora desata.
- E o tempo escorre na cadência do meu rio
O ano passa o desafio
De mais uma dor consumida.
Se quer saber venha na seca com o sol vivo
Talvez assim fique cativo
Da embalada dessa vida.

CANÇÃO DO AMOR DITOSO DO RIO DO PAJÉ

Tudo que amamos
No rio do reino quente
Tem o sopro do vento norte
Que bafeja as vertentes pedregosas
Da cosmogônica Serra do Arapuá
E roça de leve os rostos lanhados pelo tempo.
Tudo que temos
No espaço incandescente do Sertão
É a estrela variável e companheira aquecendo
Com a esperança, o amor e a fé
Corpos trançados por centelhas ocres
Que não se desalentam com o chão por despertar.
Em tudo sentimos
O gosto adusto da terra terrosa.
No rio dos poços alumiados pelos sonhos
O sentimento telúrico de encantação
Amanhece nas veredas ribeirinhas do Pajeú
E anoitece na paz do luar que banha as calçadas.
(Poemas extraídos  da obra Águas do Pajeú: poema dos pejeuzeiros – Recife, 2002)


UMA HISTÓRIA DE AMOR SERTANEJO

[...] Quando o vaqueiro Cristóvão montado no pedrês estancou o cavalo na beira do rio, seriam talvez cinco e meia da tarde. [...] Ergueu a cabeça, apurou a vista e no horizonte próximo à sua esquerda o sol já tinha se escondido e o deixara o clarão avermelhado iluminando o que restava do dia. Cristóvão herdara muito do temperamento do pai, o vaqueiro Amâncio. Da mãe, Mariazinha, apenas a mansidão, que só se manifestava em raros dias chuvosos. Era um desses homens destemidos que enfrentam desafios para retirar o mel ou o primeiro suco, mesmo que o resto do fruto fosse riqueza ou utilidade para muitos. No seu jeitão simples, direto e decidido tinha palavras breves e bem colocadas. Contava histórias curtas, todas verdadeiras, que lhe aconteciam e que sempre deixavam algum ensinamento de vida de homem livre que levava e para quem parava para ouvi-lo nas conversas das barracas de feira que gostava de frequentar. [...]. Marilena era uma moça com pouca iniciativa, mas se dedicava a qualquer tarefa com entusiasmo juvenil quando uma de suas amigas tomava a liderança de algum movimento social. Foi assim que se revelou excelente bordadeira, mesmo sem nunca ter mostrado qualquer pendor, quando sua prima Lucivânia pediu para ajuda-la na confecção do enxoval de casamento e do primeiro filho. Resolvia todas as coisas na hora, sem pestanejar e depois das serenatas que lhe dedicavam os rapazes da cidade, costumava afirmar que acordava sempre com a impressão que tivera naquela noite uma aventura heroica, sendo ela um objeto de desejo em meio a uma disputa, uma epopeia. O amor é um jogo de muitas forças, que lhe requeria muito equilíbrio para controlar as emoções muito fortes que giravam em torno dela. Nunca se conhece a razão de um amor. [...] E uma notícia estava espalhada nas ruas, nas esquinas, nos bares e, sobretudo, no ambiente carregado de tensão da casa de Marilena: - O vaqueiro Cristóvão roubou a filha do coronel! A velha dona Iaiá, que já entrara em muito tempo pela casa dos sessenta, desmaiou com todo o peso do seu corpanzil no cimento liso da sala de visitas da casa assobrada ao ler o bilhete de despedida deixado pela filha do meio (dias depois, corria o boato que a moça tinha perdido a virgindade; e que diante do caráter antiquado e intransigente dos pais, não tivera outra alternativa a não ser aquela fuga). O coronel Clodomiro não resistiu ao impacto da vergonha: caiu ali mesmo e morreu fulminado por um colapso cardíaco. Dona Iaiá, que fraturou os ossos do braço e coxa direitos, viveu o resto dos seus dias na sua cama imperial e faleceu dois anos depois numa tarde chuvosa de relâmpagos e trovões. Cristóvão e Marilena ganharam o mundo. Anos depois, veio a notícia do Pará. Não se sabe o motivo pelo qual dos dois não tiveram filhos. O vaqueiro morreu numa discussão com um sócio, pelo controle de uma área de garimpagem em um daqueles rios quase inacessíveis da Amazônia. A donzela enlouqueceu e terminou escravizada no bordel mantido pelo assassino. [...].
(Extraído da obra As viagens do Pajeú: crônica de um rio – Vanguarda, 1997).


MINHA TERRA, MINHA GENTE, MEU BARRO

Descendo da linhagem de um rio poético, cosmogônico e pelejado com boiadeiros. A família tia um recanto consagrado na esquina universal dos encontros, por onde o rio jorrava incumbências. Em sua serenidade navieira e pajeuense, minha mãe cuidava de embalar na rede abridora do amanhecer os sonhos dos filhos do Pajeú e do Navio. As origens de água e de lua já estavam seduzidas nas areias do reino abrasado. Refolhado nas grotas dos riachos, cresci entre a gente humilde e as veredas que levam ao âmago da terra. Por gosto de pisar descalço, apreciava permanecer alumiado ao relento dos ipês e mulungus e ouvir a sanfoninha dos canoeiros na travessia do chão ribeirinho. E aquelas permanências amontoando folhas, que se transformavam no borralho dos caminhos da serra do Arapuá, fascinando ideias nas letras da escola, cedo descobri que todas as palavras seguiam os passos do coração do rio, fluíam entre os riacho de mel e viajavam nas asas das aves de arribação. [...] A terra, minha gente, meu barro, o canoeiro à espera das trovoadas, as pedras do rio refletindo o sol, a rede que range no torno de imburana, a luz amarelo-ocre do carrascal, a paz melancólica da tarde que se esvai e a noite tépida da serenata! Ah, belos amores sem fim e sem meios entre os poços e o sol, refeitos pela aurora do Pajeú! Areias de minha vida ribeira, os olhos ainda cheios de verde da momentânea lembrança das águas barrentas, neste desertão todo recortado de ais. Canção solene, lúcida, dorida... Por que sinto minha voz embargada? Canoeiro, atravessemos o rio de águas mornas como um sinal de ardente sina e conduzi-me agora, onde gira a flor do vagaroso desejo, da silenciosa saudade entre as dores que nos estremecem! Ó peso da vida, dai-me a voz do coração na grande estiagem dos velhos dias terrenos, antes de morrer na solidão das veredas pajeuenses! Mas no desconcerto das coisas inacabadas, já comecei a cantar as natências das terras florestanas para robustecer os seus encantos. [...];
Extraído da obra Andanças do Pajeú: poesia e prosa (Coqueiro, 2014).


A MULHER NO CAMPO

[...] Ela nasceu aqui mesmo, por trás da aba da serra, em um sítio cheio de fruteiras, de uma família simples. [...] Com um sorriso que não se apaga – nunca a vi sem aquele sorriso – ela explica que ainda tem muito o que aprender com a natureza, mas que seu segredo, aquilo que a impulsiona é a vontade de viver a cada instante, sem pensar no que passou ou no que virá, basta o agora. – É só vivendo o presente que podemos amar os outros! Essa descoberta foi feita nos primeiros anos em que o Frei Damião vinha fazer sua romaria, quando ela percebeu que “tudo é amor de Deus, mesmo as dificuldades”. [...] – Nunca tive dificuldade com meus pais, minha família, em casa ou no trabalho da roça. Mas procurando amar cada um como gostaria de ser amada. A primeira experiência que tive nesse sentido foi no sitio do vizinho, que vivia a viuvez de quase dez anos. Ao chegar, vi toda casa suja. Não era minha tarefa limpá-la, mas fiz por amor. E senti uma grande paz. Depois desse episódio, seguiram-se muitos outros, pequenos gestos que a fizeram descobrir, aos poucos, uma nova maneira de viver, que a deixava sempre mais encantada com o dom da vida. [...].
(Extraído da obra O sorpo do vento da aba da serra – Coqueiro, 2009).


O POETA SE APRESENTA

Nasci no Reino Abrasado
Bem no meio do Estado
Que fica daquele lado
Onde se cultiva o imbu
Minha terra tem cultura
De reza e de benzedura
Gente bonita, gente pura
Que ama o rio Pajeú.

GEMIDOS DA TERRA

É quando a seca aumenta
Que o sertanejo enfrenta
Sua criação sedenta
Comendo até mandacaru
A situação é muito triste
Que a gente sofre e assiste
O boiadeiro que resiste
À falta d’água do Pajeú.

O CANTADOR

É firme, forte, inteira
Na varanda, na praça na feira
Essa voz tão brasileira
Sertaneja assim como o beiju
Constrói belas emoções
Distribuindo as ilusões
Para reforçar os corações
Com as cordas do Pajeú.
(Poemas extraídos do cordel O rio e a cidade – Cadernos Pajeuenses I – Coqueiro, s/d)


CANTORIA EM CHAMAMENTO

Prestem atenção, que o pano vai ser aberto!
Venham todos, venham logo para mais perto!
Vamos decantar a vida desse Reino Abrasado,
Sonhos de lume e paz, deserto de amor sagrado!
Chamem o sol e os odores do seu nascimento!
Deixai-o que repouse nos braços do sentimento!
Um rio forrado com frutos para sonhar!
E um candeeiro aceso que me possa acordar!
Um riacho de encantos que a gente quer ter
E braços longos nas roças que nos façam crescer.
E assim desvelar os olhos, encontrar a vida
E amar com o amor de areias incandescidas!
(Poema extraído da obra Recital do Serão do Rio Pajeú e do Riacho do Navio –Universitária, 2002).


A PELEJA DE JOÃO MÃOZINHA E BIU DO PIFE

João Mãozinha:
Cumpade Biu do Pife
Meu foguete é medonho
O pife soa bonito
Do fogo, porém faço sonho

Biu do Pife:
Eu sempre vivo risonho
Com meu pife encantado
E seu foguete clareia
Meu som pelo arruado

João Mâozinha:
Se não tive soltado
Minhas lágrimas no céu
Ninguém lhe daria aceno
Com a aba do chapéu

Biu do Pife
Eu sei que seu fogaréu
Ilumina o céu do Pajeú
Mas o pife afinado
Tem o canto do uirapuru

[...]

João Mãozinha:
Feio é não reconhecer
Que em toda festa
Meu trabalho é bonito
E nenhuma dúvida resta

Biu do Pife:
Os tamarindos de Floresta
Se enfeitaram de alegria
Do empate dessa peleja
Voltaremos noutro dia
(Extraído do cordel A peleja de João Mãozinha e Biu do Pife – Cadernos Pajeuenses II - Coqueiro, s/d.)


JOSÉ ARLINDO GOMES DE SÁ – José Arlindo Gomes de Sá é médico, poeta, contista e cordelista, membro titular da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES – PE), e autor de diversas obras. Veja mais aqui.