PRELÚDIO
EM BREVE EMBALADA ARMORIAL
- O dia
é limpo quando o astro incandescente
Alumia o
passo da gente
Que vai
cedo pro roçado.
Cantando
as mágoas no roteiro da estiagem
Sem faltar
com a coragem
No aço
quente do machado.
- E nas
veredas acende as cores fortes do Pajeú
Mata a
sede com imbu
E a fome
com bode e farinha.
Termina a
jornada no aboio triste da tarde
Que na
goela seca arde
Como se
tivesse espinha.
- A
cantiga reacende e mais tarde continua
Quando à
noite chega a lua
No compasso
da serenata.
Abrem as
janelas com os acordes das fantasias
E só
encerram as cantorias
Quando a
aurora desata.
- E o
tempo escorre na cadência do meu rio
O ano
passa o desafio
De mais
uma dor consumida.
Se quer
saber venha na seca com o sol vivo
Talvez assim
fique cativo
Da embalada
dessa vida.
CANÇÃO
DO AMOR DITOSO DO RIO DO PAJÉ
Tudo que
amamos
No rio
do reino quente
Tem o
sopro do vento norte
Que bafeja
as vertentes pedregosas
Da cosmogônica
Serra do Arapuá
E roça
de leve os rostos lanhados pelo tempo.
Tudo que
temos
No espaço
incandescente do Sertão
É a
estrela variável e companheira aquecendo
Com a
esperança, o amor e a fé
Corpos trançados
por centelhas ocres
Que não
se desalentam com o chão por despertar.
Em tudo
sentimos
O gosto
adusto da terra terrosa.
No rio
dos poços alumiados pelos sonhos
O sentimento
telúrico de encantação
Amanhece
nas veredas ribeirinhas do Pajeú
E anoitece
na paz do luar que banha as calçadas.
(Poemas
extraídos da obra Águas do Pajeú: poema
dos pejeuzeiros – Recife, 2002)
UMA
HISTÓRIA DE AMOR SERTANEJO
[...] Quando o vaqueiro Cristóvão montado no
pedrês estancou o cavalo na beira do rio, seriam talvez cinco e meia da tarde.
[...] Ergueu a cabeça, apurou a vista e no horizonte próximo à sua esquerda o
sol já tinha se escondido e o deixara o clarão avermelhado iluminando o que
restava do dia. Cristóvão herdara muito do temperamento do pai, o vaqueiro
Amâncio. Da mãe, Mariazinha, apenas a mansidão, que só se manifestava em raros
dias chuvosos. Era um desses homens destemidos que enfrentam desafios para
retirar o mel ou o primeiro suco, mesmo que o resto do fruto fosse riqueza ou
utilidade para muitos. No seu jeitão simples, direto e decidido tinha palavras
breves e bem colocadas. Contava histórias curtas, todas verdadeiras, que lhe
aconteciam e que sempre deixavam algum ensinamento de vida de homem livre que
levava e para quem parava para ouvi-lo nas conversas das barracas de feira que
gostava de frequentar. [...]. Marilena era uma moça com pouca iniciativa, mas
se dedicava a qualquer tarefa com entusiasmo juvenil quando uma de suas amigas
tomava a liderança de algum movimento social. Foi assim que se revelou
excelente bordadeira, mesmo sem nunca ter mostrado qualquer pendor, quando sua
prima Lucivânia pediu para ajuda-la na confecção do enxoval de casamento e do
primeiro filho. Resolvia todas as coisas na hora, sem pestanejar e depois das
serenatas que lhe dedicavam os rapazes da cidade, costumava afirmar que
acordava sempre com a impressão que tivera naquela noite uma aventura heroica,
sendo ela um objeto de desejo em meio a uma disputa, uma epopeia. O amor é um
jogo de muitas forças, que lhe requeria muito equilíbrio para controlar as
emoções muito fortes que giravam em torno dela. Nunca se conhece a razão de um
amor. [...] E uma notícia estava espalhada nas ruas, nas esquinas, nos bares e,
sobretudo, no ambiente carregado de tensão da casa de Marilena: - O vaqueiro
Cristóvão roubou a filha do coronel! A velha dona Iaiá, que já entrara em muito
tempo pela casa dos sessenta, desmaiou com todo o peso do seu corpanzil no
cimento liso da sala de visitas da casa assobrada ao ler o bilhete de despedida
deixado pela filha do meio (dias depois, corria o boato que a moça tinha
perdido a virgindade; e que diante do caráter antiquado e intransigente dos
pais, não tivera outra alternativa a não ser aquela fuga). O coronel Clodomiro
não resistiu ao impacto da vergonha: caiu ali mesmo e morreu fulminado por um
colapso cardíaco. Dona Iaiá, que fraturou os ossos do braço e coxa direitos,
viveu o resto dos seus dias na sua cama imperial e faleceu dois anos depois
numa tarde chuvosa de relâmpagos e trovões. Cristóvão e Marilena ganharam o
mundo. Anos depois, veio a notícia do Pará. Não se sabe o motivo pelo qual dos
dois não tiveram filhos. O vaqueiro morreu numa discussão com um sócio, pelo
controle de uma área de garimpagem em um daqueles rios quase inacessíveis da
Amazônia. A donzela enlouqueceu e terminou escravizada no bordel mantido pelo
assassino. [...].
(Extraído
da obra As viagens do Pajeú: crônica de um rio – Vanguarda, 1997).
MINHA
TERRA, MINHA GENTE, MEU BARRO
Descendo da linhagem de um rio poético, cosmogônico
e pelejado com boiadeiros. A família tia um recanto consagrado na esquina
universal dos encontros, por onde o rio jorrava incumbências. Em sua serenidade
navieira e pajeuense, minha mãe cuidava de embalar na rede abridora do
amanhecer os sonhos dos filhos do Pajeú e do Navio. As origens de água e de lua
já estavam seduzidas nas areias do reino abrasado. Refolhado nas grotas dos
riachos, cresci entre a gente humilde e as veredas que levam ao âmago da terra.
Por gosto de pisar descalço, apreciava permanecer alumiado ao relento dos ipês
e mulungus e ouvir a sanfoninha dos canoeiros na travessia do chão ribeirinho. E
aquelas permanências amontoando folhas, que se transformavam no borralho dos
caminhos da serra do Arapuá, fascinando ideias nas letras da escola, cedo
descobri que todas as palavras seguiam os passos do coração do rio, fluíam entre
os riacho de mel e viajavam nas asas das aves de arribação. [...] A terra,
minha gente, meu barro, o canoeiro à espera das trovoadas, as pedras do rio
refletindo o sol, a rede que range no torno de imburana, a luz amarelo-ocre do
carrascal, a paz melancólica da tarde que se esvai e a noite tépida da
serenata! Ah, belos amores sem fim e sem meios entre os poços e o sol, refeitos
pela aurora do Pajeú! Areias de minha vida ribeira, os olhos ainda cheios de
verde da momentânea lembrança das águas barrentas, neste desertão todo
recortado de ais. Canção solene, lúcida, dorida... Por que sinto minha voz
embargada? Canoeiro, atravessemos o rio de águas mornas como um sinal de
ardente sina e conduzi-me agora, onde gira a flor do vagaroso desejo, da
silenciosa saudade entre as dores que nos estremecem! Ó peso da vida, dai-me a
voz do coração na grande estiagem dos velhos dias terrenos, antes de morrer na
solidão das veredas pajeuenses! Mas no desconcerto das coisas inacabadas, já
comecei a cantar as natências das terras florestanas para robustecer os seus
encantos. [...];
Extraído
da obra Andanças do Pajeú: poesia e prosa (Coqueiro, 2014).
A MULHER
NO CAMPO
[...] Ela nasceu aqui mesmo, por trás da aba
da serra, em um sítio cheio de fruteiras, de uma família simples. [...] Com um
sorriso que não se apaga – nunca a vi sem aquele sorriso – ela explica que
ainda tem muito o que aprender com a natureza, mas que seu segredo, aquilo que
a impulsiona é a vontade de viver a cada instante, sem pensar no que passou ou
no que virá, basta o agora. – É só vivendo o presente que podemos amar os
outros! Essa descoberta foi feita nos primeiros anos em que o Frei Damião vinha
fazer sua romaria, quando ela percebeu que “tudo é amor de Deus, mesmo as
dificuldades”. [...] – Nunca tive dificuldade com meus pais, minha família, em
casa ou no trabalho da roça. Mas procurando amar cada um como gostaria de ser
amada. A primeira experiência que tive nesse sentido foi no sitio do vizinho,
que vivia a viuvez de quase dez anos. Ao chegar, vi toda casa suja. Não era
minha tarefa limpá-la, mas fiz por amor. E senti uma grande paz. Depois desse
episódio, seguiram-se muitos outros, pequenos gestos que a fizeram descobrir,
aos poucos, uma nova maneira de viver, que a deixava sempre mais encantada com
o dom da vida. [...].
(Extraído
da obra O sorpo do vento da aba da serra – Coqueiro, 2009).
O POETA
SE APRESENTA
Nasci no
Reino Abrasado
Bem no
meio do Estado
Que fica
daquele lado
Onde se
cultiva o imbu
Minha terra
tem cultura
De reza
e de benzedura
Gente bonita,
gente pura
Que ama
o rio Pajeú.
GEMIDOS
DA TERRA
É quando
a seca aumenta
Que o
sertanejo enfrenta
Sua criação
sedenta
Comendo até
mandacaru
A situação
é muito triste
Que a
gente sofre e assiste
O boiadeiro
que resiste
À falta
d’água do Pajeú.
O
CANTADOR
É firme,
forte, inteira
Na varanda,
na praça na feira
Essa voz
tão brasileira
Sertaneja
assim como o beiju
Constrói
belas emoções
Distribuindo
as ilusões
Para reforçar
os corações
Com as
cordas do Pajeú.
(Poemas
extraídos do cordel O rio e a cidade – Cadernos Pajeuenses I – Coqueiro, s/d)
CANTORIA
EM CHAMAMENTO
Prestem atenção,
que o pano vai ser aberto!
Venham todos,
venham logo para mais perto!
Vamos decantar
a vida desse Reino Abrasado,
Sonhos de
lume e paz, deserto de amor sagrado!
Chamem o
sol e os odores do seu nascimento!
Deixai-o
que repouse nos braços do sentimento!
Um rio
forrado com frutos para sonhar!
E um
candeeiro aceso que me possa acordar!
Um riacho
de encantos que a gente quer ter
E braços
longos nas roças que nos façam crescer.
E assim
desvelar os olhos, encontrar a vida
E amar
com o amor de areias incandescidas!
(Poema
extraído da obra Recital do Serão do Rio Pajeú e do Riacho do Navio –Universitária,
2002).
A PELEJA
DE JOÃO MÃOZINHA E BIU DO PIFE
João
Mãozinha:
Cumpade
Biu do Pife
Meu foguete
é medonho
O pife
soa bonito
Do fogo,
porém faço sonho
Biu do
Pife:
Eu
sempre vivo risonho
Com meu
pife encantado
E seu
foguete clareia
Meu som
pelo arruado
João
Mâozinha:
Se não
tive soltado
Minhas lágrimas
no céu
Ninguém lhe
daria aceno
Com a
aba do chapéu
Biu do
Pife
Eu sei
que seu fogaréu
Ilumina o
céu do Pajeú
Mas o
pife afinado
Tem o
canto do uirapuru
[...]
João
Mãozinha:
Feio é
não reconhecer
Que em
toda festa
Meu trabalho
é bonito
E nenhuma
dúvida resta
Biu do
Pife:
Os
tamarindos de Floresta
Se enfeitaram
de alegria
Do empate
dessa peleja
Voltaremos
noutro dia
(Extraído
do cordel A peleja de João Mãozinha e Biu do Pife – Cadernos Pajeuenses II - Coqueiro,
s/d.)
JOSÉ ARLINDO GOMES DE SÁ – José Arlindo Gomes de Sá é médico, poeta,
contista e cordelista, membro titular da Sociedade Brasileira de Médicos
Escritores (SOBRAMES – PE), e autor de diversas obras. Veja mais aqui.