Desde pequena ela começou a
olhar o rosto das pessoas, não olhava o todo, mirava os olhos mais tempo do que
o nariz, a boca, as orelhas, as sobrancelhas, de alguns, as rugas e toda sorte
de expressões. Durante tantas décadas, passou a ver palavras nos lugares de
cada traço, hoje lê com tamanha facilidade às pessoas que, sabe quando são de
vera ou quando mentem, se são boas ou más, se olham as estrelas ou preferem ler
os letreiros das ruas, distingue os que cedem às dores, esmorecem, plantam seus pés nos solos seguros, temem a fome
e o frio, criam raízes resistentes que partem suas asas, que os impede de voar.
Reconhece a uma grande distância, os que compreendem o tempo e a velocidade, ri
com aqueles que vivem suas intensidades. Às vezes, ela fecha os olhos porque
consegue ver as duas coisas, em uma só pessoa. Com os olhos cerrados, chora.
revestir
de aço cada veia
desviar o rastro, na terra escrito
retirar da boca, o beijo
gravar na carne, a ponta de cada dedo
rasurar a pele do desejo, a lembrança do grito
devolver o tempo, onde a imaculada ideia, persiste
pensamento antigo
sobressalto nuvioso
que vela a liberdade e desiste
temulento olhar cerrado
sem ar, repetido eretismo
descobrir os rios, as pontes, os montes
e a neblina dos poros macios
tarde da manhã, raios e coriscos
noite atrelada ao sono breve dos amantes
desviar o rastro, na terra escrito
retirar da boca, o beijo
gravar na carne, a ponta de cada dedo
rasurar a pele do desejo, a lembrança do grito
devolver o tempo, onde a imaculada ideia, persiste
pensamento antigo
sobressalto nuvioso
que vela a liberdade e desiste
temulento olhar cerrado
sem ar, repetido eretismo
descobrir os rios, as pontes, os montes
e a neblina dos poros macios
tarde da manhã, raios e coriscos
noite atrelada ao sono breve dos amantes
a espera
reúne estrelas mortas
sempre falta algo macio na dor
quando morro
cessa o músculo
que fecha os olhos de deus
sempre falta algo macio na dor
quando morro
cessa o músculo
que fecha os olhos de deus
Era apenas um segredo dentro
do outro, como sua fotografia, Senhora A. e, ainda assim, parecia uma guerra,
uma corrida, uma multidão enfurecida. Mastigar e engolir os sonhos alheios,
soltar flores de ferro e morte sobre outras terras, é algo deselegante e
desolador, não acha? Não há ponto de chegada para a ambição daqueles
indivíduos, é uma fome imensa, desconhecem os dias de silêncio e êxtase que
algumas reflexões nos concedem. Farejam os metais, as jóias e a película que os reveste nos dias de festa, seguem as carruagens e
se empoam, às pressas, fingindo que não possuem escamas e que suas línguas
bífidas são inofensivas. Minha querida Senhora A., porque às vezes, nos
sentimos como bebês envoltos no sono gelado da eternidade? Sim, nós que
respeitamos seu voo último, enviamos um abraço da cidade murada que habitamos,
e de onde quase não saímos.
Nada do oculto daqueles breves dias, da
escuridão que fizera seu corpo despencar e o impelira a arremessar na
horizontalidade do verso, o peso que antecedera o riso do bom afeto, está
distante de si. Fora uma vigília ébria, uma surpresa inaugural saber-se próxima
dos territórios da beleza, talvez tenha ouvido algo parecido, jamais palavras
de vera. Dias estranhos, repito, exílio e diálogo (sem pressa), sopro e fome,
escuros e futebol, páginas e saliva, líquidos olhares. Merecia exatos trinta
dias naquele lugar até que o sonho e a vida, no perpétuo movimento, partissem e
a lembrassem que seguir é, sobretudo, fechar os olhos na maciez da solidão.
Ali, não era um corpo diante do outro, eram invenções de liberdade, quase
impossíveis.
O alvoroço da matilha, o buraco cavado no
chão, um céu mais sertanejo que iluminado por torres vãs e, um tropeço que a
fez descobrir que tinham razão aqueles que insistiam em dizer que faltava um
parafuso em seu corpo. "Dizem que ela tem um parafuso a menos",
certamente pelo acaso dos vagalumes, pelos dados que giravam e ela se
envergonhava sempre que caíam a seu favor. Aprendera a lição, faltava abraçar o
cavalo e enlouquecer. Deparou-se com a incomunicabilidade, estava ali, dedos, punho, pernas e pés avariados, quando soube
alguns dias depois que teria que parafusar os ossos, que os estilhaços de vidro
estavam migrando para se alojarem nos recônditos da dor, postou-se diante das
lâminas como se fosse um personagem de Voltaire. Seria esse o parafuso que lhe
faltava? Reconheceu novamente o limite, não avançaria em um tipo de leveza que
a faz arremesso de abismo. Todos podiam pensar qualquer coisa que quisessem,
que ela possuía mais de sete irmãs e, sendo a sétima podia ser uma bruxa, uma
borboleta negra, o gato de Poe, a serpente (inexistente) dos textos bíblicos,
até mesmo que é uma mulher só, o que parece demasiadamente perigoso à essa
altura do caminho. Sobre essa última tessitura de sua existência deve-se à
verdade que carrega no olhar, às recusas por razões antigas, ao fato de
colecionar palavras, ao singular percurso de liberdade que empreendeu até aqui,
pela delicadeza dos gestos, por soprar suas dores ao vento e por ajustar e
aproximar tudo o que se reparte e chora. O destemor havido desde os dias
primeiros, a fez voar pelas minúsculas frestas dos sonhos, colada às pontas dos
dedos. Recolheu às palavras, imagens e ninhos de olhos abertos diante do mar.
Escrever, soltar as borboletas que engoli,
faço isso por causa dele. É amor e viagem das grandes. Daqui a pouco nada mais
será, apenas as outras páginas escritas, noutro tempo, por outro amor. Então a
palavra é grandiosa diante dos jogos estranhos do viver. Guardarei no
unguentório, as derradeiras lágrimas. Esperarei passar o período das chuvas e
farei um lerão de mandrágoras, penso nisso desde quando ele era menino.
Um dia, ele vai entender o que há do outro
lado dos próprios muros. Ou será sempre o menino cuidado (pela mãe simbólica),
que não precisará, sequer crescer ou saber que para si, o amor (há muito), foi
feito barricada, muro, cerca, gaiola, cela, perda, cápsula, cadeado e, como ele
disse, "porto seguro". Desconhece a força das vagas furiosas quando
cobram seus domínios, violentas, arrancam as âncoras, afundam as naus, espalham
os corpos à deriva. Impiedosamente, a vida o lembrará
que aquilo que propus não era apenas a matéria do desejo, também era a matéria
do sal, do equilíbrio delicado do viver: aprender a surfar nos devires, não
temer a fúria das águas, correr os riscos necessários ao olhar. Agora é com ele
e a tábua das marés. Sei que nem isso ele é capaz de saber, arriscar saltos do
penhasco e tecer asas durante o vôo. Seus olhos estão vendados, obedece o tempo
e o percurso traçados para si. Nunca saberá sobre o frio na barriga, próprio
dos que voam.
Hei de montar estratégias de guerra para o
salvamento urgente desse amor. Daquilo tudo que foi vivido: o desejo
irrealizado de ser e fazer o outro livre, de cantar e dançar, continua suspenso
sobre minha cabeça. Móbile, espada, piano ou apenas uma sombra imaginária, numa
dor pendular, quase uma hipnose ou lágrima terçã. Um dia nada mais será. Queria
que esse dia fosse hoje.
Aquilo que ainda é amor, dói e resiste ao
sumiço instântaneo, às fórmulas, mezinhas, conselhos, à desaparição. Porque é
tanto, desdobra-se e se quer inocente como uma lâmina, se quer o tempo todo,
intenta escapulir por entre palavras estranhas usadas no meu ser-tão. Desse
amor, não falo apenas sobre a saudade, imensa, mas sobre as conchas do mar,
sobre o umbigo do meu mundo, sem falar na impossibilidade da mentira quando
estávamos, um diante do outro, em silêncio. Jamais nos tocamos, nunca mais nos
perdemos desde o susto primeiro. Ele consegue, com grande esforço, mentir para
si mesmo, ele acreditou na fraqueza, na fome, na gratidão tirana, no pecado e
no medo. Eu tentei avisar sobre a impermanência, sobre a liberdade e segurar
suas mãos. Sei que a saudade não é só minha. O amor sente-se sozinho.
Nunca soube o que era um irmão. Estava
grudada à minha pele, a palavra "única", principalmente pela
conjunção de realidades que tocaram mais à liberdade do gesto do que à mentira
do lençol tingido, à omissão do hímem rompido, esse século dezoito que
aprisiona o meu amor, a estrada perigosa, os cursos das páginas díspares, era,
então, estrangeira essa palavra, que desapartava, que me fazia voltar sozinha
quando os meus vizinhos viviam apinhados de gente à mesa, podendo brincar e conversar até dormir. Restou-me o pensamento, um
peixe de plástico, de letras escritas (como àrvores) nas paredes, buscando as
páginas dos livros, sonhando o abrigo mínimo. Às sobras da solidão entrecortada
pelos relógios do trabalho, da escola, dos sonhos distintos, dos finais de
semana no clube - espaço, que minha casa tornava-se, através da hospitalidade,
também era o mais feliz e justo lugar da estranheza. O mais belo jardim, onde
um ateu amanhecia digno e cuidadoso, nos cumprimentando. Àquela liberdade,
aqueles dias, todos os outros que seguem à coragem de morrer de amor, mortes
antigas e recorrentes, são minhas lanternas e minhas bóias. Meu destemor
olhando os outros olhos. Todos os outros olhos que brotam do meu solo natal. Eu
queria apenas aprender a rir, serena, diante do mar do olhar do meu amor.
Decidi caminhar sozinha por um bairro antigo,
cheio de casas, com algumas vilas iguais à vila que ele se hospeda, observar as
pessoas comuns, aqueles rostos mirando o vazio da manhã, homens se movimentando
como ele se movimenta, mulheres carregando feixes de ilusões nas costas, nos
ventres, delirando na estabilidade dos casamentos sustentados por hábitos
devotos, teia de desamor e mentira. Eu os vi naquelas expressões ressequidas de
imaginação, os acompanhei, apressando os meus
passos, fugindo daquela visão triste, desprovida da beleza que me alimenta.
Voltei carregada da consciência de ter inventado a grandeza no outro, aquela
que ele talvez não tenha ou reconheça em si. Percorri uma grande distância,
soltando no caminho, a memória da dor. Eu não pertenço à miudeza daquela vida,
da insuportável solidão que o abriga, do abandono da dignidade, por um teto,
uma mãe simbólica e um pão. Nunca seria feliz com a escassez do sensível, lugar
onde ele fez sua morada.
Eu coloquei nos teus olhos, o assunto que
virou ponte, que sobrevoou a sala de estar, que esvaziou os sentidos e às tuas
dívidas e culpas. Apenas esqueci de cortar as cordas, trazer as chaves, retirar
o lago que miras sem cessar. Esqueci que um dia, eu me distraí e achei que eram
de açúcar tuas palavras e teu coração. Foram quase trezentos dias, arremessados
ao mar. Cada gesto, olhar, clivagem perversa, cada saudade minúscula, ora
perde-se de vista, afunda, afoga-se em si, indica tantas distâncias que busquei
esconder em outro vocabulário, mesmo assim, era quase impossível o diálogo. O
naufrágio é o que posso te deixar de herança, aquilo que me pedias diariamente.
Uma das coisas mais importantes que aprendi
foi a viver tendo a perpétua coragem de incinerar a dor. Também foi preciso
saber não ruminar o passado.
Acordar, no luto dos dias, naquele espaço
imenso que se alarga veloz, quebrando os ossos, engolindo areia, chorando os
olhos que brotam da cegueira do outro. O tempo foi o melhor regalo, a
delicadeza abordando a crueldade seca dos gestos, as minhas mãos e todo o meu
corpo, mirando o abismo sem graça dos seus dias. Ele não viu o clarão primeiro.
Nunca conseguiu ler as palavras escritas na minha carne. Hoje ele não existe
mais comigo. Seguirá o tempo do homem comum, que mais parece os segundos que
antecedem à morte. Aquilo que o acaso dispôs, ele não entendeu, ele não é um
herói.
É preciso inventar, muito cedo, o lugar de
criar e de morrer. Fecho os olhos e careço de intimidade com as quinas das
paredes e dos móveis, numa configuração precisa, nada de buscar raízes, exceto
na atenção com o tempo, com os ângulos do tempo, raízes aéreas..
O lusco-fusco deve-se às razões várias. Não
quis acordar os iogues, que sabem ter a mãe por perto e ressonam de dar gosto.
Eu estava morta de saudades deles, nunca vi em nenhum humano essa dimensão da
alegria do reencontro. Verifiquei as orelhas e detalhes das patas, fiquei
surpresa porque estão gordinhos e saudáveis. Proust enfim, está um adulto! O
menino Tapacurá, virou corpulento e menos dependente de Celéste, menos
"ameninado" e espigado; encontrei um mancando, Branco, segundo Baía, um mártir, juntou-se "com os sonsos do
lugar", principalmente com o "desmaiado" Nietzsche, e brigaram
com um cão que tem o dobro do tamanho dos dois juntos, mas estão bem. Nasceram
dois filhotes que jurei não batizar, sabendo que o adiamento da castração de
Lalá daria nisso, são portanto responsabilidade minha. Se eu tivesse que
nomina-los, seriam Benjamin e Muirá-Ubi.
Delicadeza não foi ouvir que meu discurso é
extenso, sobre minha incurável prolixidade, meus cacoetes proustianos.
Delicadeza foi inventar uma linguagem para ele poder se comunicar sem morrer de
embaraço.
Há muitos anos, comecei a perceber a
importância do olfato nas relações de amor. Não aquelas besteiras do início dos
contratos, dos cheiros no cangote, dessa euforia desmedida e perigosa (essas
nem de perfume carecem, mas sempre se dão ao exagero). Prestei mesmo atenção a
um costume que me acompanha, há pelo menos quatro décadas, quando comecei a
namorar nos meados dos anos setenta. Todas às vezes que estava prestes a ir
embora de uma história de amor, o meu olfato reagia, aguçado, apressando à partida. Sempre que os amores
findavam, eu trocava imediatamente de perfume. Assim, desfilaram nessa
passarela da loucura, às mais apropriadas fragancias, para os narizes amados ou
desprezados. Como aditivo da saudade, bastava abrir a tampa de um frasco que
estávamos ali, eu, Proust, os amores, o esquecimento, os enredos da memória, os
meninos queridos. Esse cacoete passava por mim, eu passava por ele e, nunca
havia sido tão preciso como nesse último, afinal, nunca usei perfumes doces.
Dessa vez, há nove meses, busquei um buquê de rosas, as flores do japonês, com
um susto de intimidade, um abotoar de rosas murchas. Pois bem, quando percebi
que estava próxima do lugar da partida desse amor imenso, mudei hoje mesmo,
troquei imediatamente o que vaporiza meu corpo. Dessa vez, veio o amadeirado,
aroma que enfrenta batalhões, canhões e narizes indiferentes, que lança-se ao
tempo de mais de um sentido. Os melhores foram aquelas lavandas do inícios dos
80' que vinham com uma coisa que parecia farinha, vendidas nas lojas de
produtos naturais. O Rastro, que minha mãe-outra, Venância, guardava os frascos
(não gostou porque mudei), foi com a saudade de um garoto que envelheceu. Acho
que esse gesto era de grande fidelidade, afinal o que um homem sentia, o outro
não devia sentir, uma espécie de lealdade do olfato. Lembro-me dos dias
ripongas e dos oleosos patchulis, nessa época não havia muito rigor. Alguns
perfumes, que de tanto amor e delicadeza, eu pensava que estava usando
lança-perfume rodouro metálica, sempre me foi estranha a palavra
"inebriante" no olhar da paixão . Os masculinos que usei nas longas
relações, dividindo com os maridos, que coisa besta essa história do olfato,
brincando de marco histórico e findo. Sempre foi assim. Usei todos mas, alguns
perfumes não me lembro, nunca usei ninguém.
quem sabe de toda a verdade - detrás das
paredes, das folhas sangrentas de papel, aquela entre os livros, os risos, o
redemunho, o desespero, aquela música vinda de um
povo distante, repetição de notas e letras confusas que o fez urrar, fez brotar
o poema infinito para dentro de si, ambiente de escuridão e silêncio, quem
sabe, esquece a inocência e não pode deslumbrar-se com essa paisagem
carbonizada do destino.
era um ser estranho: tinha sobrado uma parte
do tronco, os orgãos genitais muito murchos, no lugar do estômago (não queria
mais digerir aquela dor) havia colocado um coração
imenso, invertera o poema e engolira a baleia. seu rosto magro era feito de
ossos. não tinha pele alguma. sim, suas asas presas às costas, eram os sentidos
crus: olho, nariz, pele, orelha de onde pendia o essencial.
senti um arrepio quando o vi, ele não podia mais sair dali: estava enterrado em uma montanha de vermes antigos.
senti um arrepio quando o vi, ele não podia mais sair dali: estava enterrado em uma montanha de vermes antigos.
Passei a vida inteira com uma espécie de
paixão por ele e há dois finais de semana não desgrudamos um do outro, ele fora
durante muitos anos, uma marca que carreguei no
corpo, dessas que são impressas a fogo, no lombo dos animais, uma cicatriz, um
recolhimento. Nesses dias, ele me falou: "O homem não sabe que é um morto
falando com outros mortos", até achei que essa frase saíra das escrituras
do meu amigo M, mas ele se referia a um velho tio, aquele que perdera a casa
para um louco. Por ele e mais ninguém, fui ciumenta, sim, nenhum deles pode
negar que eu carregava esse desenho em minha pele, embora, tenham levado
consigo uma resposta mal interpretada, algo parecido com essa comiseração cruel
onde o silêncio é o reverso da mentira. Reconheço como legítimo, o ciúme que
senti quando ele casou-se com outra, quando o Senhor Jorge L. apareceu ao lado
da esposa, sorridente, sem me enxergar ao seu lado, vestida de azul como uma
tempestade de Turner. Namorar um homem casado? Não, isso não era do meu feitio,
restava-me o inevitável, esperar sua morte e revelar este segredo, que sempre fora
nosso. Tantas vezes estivemos juntos, viajamos para lugares distantes, ele no
meu colo, dormimos nas fazendas, nos aeroportos, nos hotéis, nas tendas, nas
praias desertas e em minha própria casa, onde ele guarda suas bengalas
favoritas. Criamos aqueles animais, minha letra marcou a testa de barro do G
(que ele trouxe para passar uns dias aqui). Todo o resto foi indignação,
insurreição solitária, violência contra as mentiras que me fizeram compreender
porque nenhum deles chegou até o último degrau da escada, de tão previsíveis
que foram, como a maioria dos homens, exceto o Senhor Jorge L, motivo pelo qual
pude distinguir o ciúme dos outros maus afetos. Somente quando envelheci é que
percebi estar diante de perguntas e respostas, que urgiam negar, afirmar ou
escamotear a realidade, diante de algo comum demais para que se parecesse com
ele, o Senhor Jorge L. Receber a culpa da loucura de intuir e constatar, isso
sim, me deixava furiosa, um animal irrequieto e violento, porque saia do
território dos olhos cerrados, meus e do Senhor Jorge L, para o da deslealdade,
dos atores escolhidos. Deslealdade denota posse e mesquinharia, transtorno e
miudeza do afeto, mas o ciúme nem tanto: abrir a porta às palavras, aos gestos,
ao testemunho, às dores de debulhar todos os grãos do querer, olhar detrás do
olhar do outro difere de receber o punhal, acertar o alvo, mentir, não isso não
é postar-se com dignidade perante à palavra, isso é coisa da perfídia, coisa
ancestral. Havia naquele café prestidigitadores que negavam o que eu podia ver,
que circunscreviam na areia do hábito, os domínios do embuste, os fossos de
aleivosias, os recursos do tédio e da perversão. Quando o Senhor Jorge L
morreu, senti uma dor funda em meu corpo: as paredes demolidas do lugar dos
nossos encontros, essa utopia travessa que geograficamente nos traiu, nesse
caso, mantendo a verdade dos meus olhos e de suas páginas, ser e não ser, dizer
e negar, ocultar e revelar, inventar e rir (numa doidice sem fim), foi quando
senti pela primeira vez, o ciúme verdadeiro.
Há dias em que o quarto escurece, o abismo
investe, as pernas tremem, o túnel engole seu fim, as coisas se despem de
sentido, o lápis se recusa a traçar a linha, o olho
de ver a luz, os cães emudecem, os outros tornam-se cada vez mais distantes, o
fogo desce calcinando vísceras e orgãos, a tempestade afoga a cama, a notícia
ruim fica suspensa e invisível diante da imobilidade do corpo, as notícias se
consomem antes dos seus sentidos, a chuva não vem e incinera as folhas; a dor
se abriga estática desde o princípio dos dias, o sangue acelera seu percurso, a
chama pressente o fim, a veia dilata, o nascedouro do contentamento é
definitivamente crestado, ocorre a combustão das cartas esquecidas, as cortinas
desobedientes se fecham, o sono e os cílios travam uma peleja desigual, as
rosas definham, o rebento nega o abraço, as cordas amordaçam o ânimo, as
carpideiras gargalham; os rios e as quedas d'água, convulsionados, arrastam os
braços desfalecidos, os alvéolos banham-se em colas de açúcar e goma, a morte
aproxima-se bafejando a nuca, a lágrima congela e queima a face, o pensamento
não distingue dia e noite, a ventania trás presságios estranhos, o sobressalto
enlaça o ponteiro dos minutos e eu me assusto com o mínimo alento para seguir.
Ter sido amada, não a furtou de encher os
bolsos com pedras e reinventar o estige, onde mergulhou e fechou os olhos para
sempre. Não, não era esse o nome do rio, mas pouco importa, a água diluiria sua
loucura, quem teria medo? Ela não, decidiu não seguir aturdida, vulnerável ao
delírio emaranhando e turvando seu jardim.
Naquele raso abismo, não se demorou. Sabia
que seria destinada a caminhar sempre à frente, sangrar os pés, olhar para
aquele homem e, perguntar-lhe: "Como seria substituí-la?". Porque
substituir uma rainha que conhece a morte e sente-se dessa, tão íntima? Ela
viverá até o fim, carregando consigo a resistência de cessar o fôlego, viverá
até o fim, sabendo que quase ninguém a viu nua, naquele cômodo inocente (vamos
aprender russo).
Diria no meio da floresta escura, sem deixar
nos portais do sonho, as esperanças vãs: "Oito anos. Uma vez. Outra".
Nada mais carece ser dito.
Um dia, eu me lembrei que morri, e isso não
foi um largo caminho, foram imensos desertos tragados, um a um, como uma sina,
uma prova daquilo que jamais deixei de ser,
garganta aberta à vida, sem o temor de fenecer. Nesse dia, todos os anos e toda
a gente, duvidou que fosse verdade, menos eu, não podia duvidar da goela seca
de areia, dos risos triturados juntamente com cristais de rocha, da indiferença
que me assustou no início, daqueles falsos convivas (seguindo a tradição de
outros mais antigos), nesse dia, naquela hora dos doentes, fechei os olhos. O
deserto investiu diante de mim, e eu olhei para ele com a certeza de que sempre
fora mercador, cada raio daquela areia queria o dinheiro, o poder, a ganância,
assim, foi estendida minha estranheza: transformar o sal da lágrima, em água,
hidratar o corpo, seguir, dar gargalhadas subversivas diante daquelas montanhas
sem fim. Aprender a rir, naquele lugar, me salvou, aproximou-me do fim da
vastidão perversa. Hoje, depois de minha última morte, refaço outros lugares,
que me levarão às mortes futuras, sem lágrimas ou areia sob o sol. Hoje posso
morrer e rir, brincar de viver sem dar às mãos ao mundo que não desejo.
São baças, eu sei, desde sempre, eu a recuso.
Fujo dali porque sei que, em um segundo, ela me convenceria a ir para o lugar
de outros silêncios, fingindo não haver monstros ainda mais estranhos que esses
que vivem colados às minhas dores. Sei que se veste de azul, que tem longos
cabelos escuros e me fita com seus olhos de vidros, enquanto digo: Não!
Afugento as formigas, derramo água sobre os peixes mortos, posto-me pétrea para
escapar às suas canções. Resisto porque irei até o fim, buscando os sentidos
diários daquilo que sou. Recuso o gás, a aiora, o filete de sangue, o voo, viro
o meu rosto às águas profundas, à bala, à fera. Eu a vejo diariamente,
adentrando o mar, não sem antes olhar para trás, convidando-me para virar um
muro de coral.
A barbárie, esse tipo de violência que é
soco, bala, alienação, bomba, insanidade e religião, aturde e não há como não
chorar, não chegar às emoções mais dilacerantes. Não representa o todo, mas
torna-o lugar da mira dos olhares transversais. Entendo como se os dizimados ou
silenciados, por sintonizarem a autonomia de seus pensamentos e gestos, todos,
fossem meus parentes e dos meus amigos, que seguem essa soberania - a liberdade
de pensar, criar, e manifestar publicamente o que
desejam (ainda). Não, isso não é pontual, é disseminado, o tempo todo, em quase
todos os lugares, há episódios mais evidentes e outros mais discretos, nas
ruas, nos templos, dentro das casas, à beira-mar, nos vastos campos férteis da
imaginação. Sei que é possível abrir a porta da própria casa para o inimigo,
dar-lhe alimento e abrigo, e ele, tomado de ódio, algo ancestral e íntimo, ali
se instalar para escolher o alvo, para destruir os espelhos, para exercer toda
sua paranóia e pequenez, para alardear seu delírio. Há momentos em que o
sectarismo extrapola, que atinge mais fundo a carne e o sentido da própria
humanidade, salga os rostos e as calçadas, corrói o sonho.
Ainda há mães que choram, pais, mulheres,
homens, netos, filhos, amigos que guardam cicatrizes, há tantos que continuam
sangrando diante de uma nova leva de sádicos. Os perversos, fardados
psicopatas, insanos, estropícios, criaturas que à maneira daqueles que
protagonizaram os palcos do horror de cinco décadas atrás, como os mandantes de
crimes bárbaros, os torturadores, os meganhas dementes, os dedos-duros
alienados que espiavam tudo às suas voltas para trocarem informações por cargos ou moedas, os carros esquisitos estacionados
esperando o bote traiçoeiro e covarde contra todos aqueles que buscavam à
justiça social, quebraram braços e pernas dos que, destemidamente, seguiram
seus próprios sonhos de justiça, mirando o coletivo. Foram não apenas
perversos, foram além: gargalharam ao introduzir ratos vivos nas vaginas das
mulheres grávidas, fizeram filas para estuprar as bravas moças, jacularam
quando viram os corpos convulsionando com eletrodos nas têmporas. Porcos
imundos! Precedentes dos que manejam os cacetetes de hoje e, com seus cérebros
ínfimos (seguindo a tradição dos cafajestes-mor), com seus comandantes
estúpidos, com sua cólera ilimitada, abjetos e desprezíveis, continuam seguindo
débeis líderes, capachos do poder, pisam com seus coturnos furiosos sobre os
sonhos gentis das pessoas de bem, destroem as diferenças sejam quais forem,
matam alvos negros, pobres, negligenciados por um maldito, patriarcal e
misógino Estado. Aqueles que arrastaram corpos no asfalto, que “suicidaram” os
intrépidos homens (que foram calados sob o jugo das armas e das ideologias do
medo), os que preferem construir esgotos públicos onde jogam os miseráveis,
todos os normais coniventes, o vizinho que lança um olhar furioso em direção à
singularidade dos outros, as carolas que vivem enroscadas em seus rosários e
segregam aqueles que julgam seus serviçais (escravos contemporâneos), o imbecil
de classe média filhinho-de-papai, os pobres servis, quem lambe o chão para “o
doutor” passar, toda essa excrescência, está novamente aí, impune, escondendo
os rostos e às panelas, os patos ridículos, os sapos atrozes, os malfazejos e
parvos homens comuns, com os olhos vidrados no mal. Os cassetetes continuam
atuando, mães continuam apreensivas e vidas seguem desnorteadas desde aqueles
dias escuros. Sabendo que o inimigo, estrategicamente, armou-se de uma covardia
nunca vista, cada um de nós têm que se desdobrar em atenção, uns com os outros,
ficarmos atentos ao monstro que teima em (novamente) emergir. O inimigo segue
matando em escala industrial, como se o fascismo e as práticas ditatoriais,
estivessem espalhadas em toda parte, invadindo as mínimas frestas dos dias.
Ainda falta muito para clarear o dia, e minha
menina não vem, demora para salvar da escuridão da noite, aquela que embrulhou
as ilusões, uma a uma e, as deixou no primeiro parque. Enquanto o sol não
acena, não cai a lágrima, não chove por dentro, a menina ouve as antigas
canções.
Olhou para o alto e faltava-lhe tanto de
Deus, rogou ter mais fé, repetiu que o pai era ateu, buscou tocar à lona azul,
cheia de furos, aquela mesma que um dia entreviu e descreveu - o céu da sua
infância. Sabia que cegaria se o visse, tinha conhecimento de que toda aquela
luz, se estenderia por multiversos, que tantas formas de vida surgiriam diante
de si. Temia que algumas a assustasse, que outras a fizesse dormir. Imaginou
cada segundo da travessia, molhou os dedos nas águas
ácidas do rio, fechou os olhos, simulou a dor, era uma dor antiga, um lugar de
passagem, uma coragem rubra e serena, um íntimo abandono. Imaginou os objetos,
os modos, os riscos de cada erro. Atravessou os túneis, avistou as lâmpadas
acesas, viu surgirem fendas no solo, derreterem-se cordilheiras e, com um
compasso, esboçou crateras fundas - suas tinas de banhar os olhos. Está pronta
para subir à montanha. Haverá gelo maior do que esse que queima seu corpo? Como
será? Continuou à noite, todas às noites sem dias. Quem sabe esse tempo está
postado nas inclinações do seu próprio sonho? Quem sabe no dia de sua morte?
Antes que o sol nasça, eu me pergunto:
quantas mãos se dão, transmutadas de vida e morte, em um contínuo e estranho
movimento? Eu não sei, para nenhum dos dois pólos, me falta coragem, estou
nessa vertigem cêntrica, em um ponto neutro e perigoso, apenas amanheço.
Sinto-me acompanhada na dúvida e no susto, então, segue para você, esse
"outro" (quase quem sou), uma musiquinha de ninar (sugestão sua).
Nosso amigo, Arthur R. bem nos lembrou: "Eu é o outro", assim me
sinto em relação a você, naquilo que nos faz meninos a desembestar.
Naquelas vitrines, diante das quais as bestas
salivam, os risos histéricos miram outras bestas, os maus se reúnem para
admirar os objetos, as filas circundam os quarteirões para remediar as mentes
perversas, o espetáculo deprimente acontece. Ali, ela avistou instrumentos
estranhos, rudimentos que resultam nas medievas dores. Naqueles prados, porque
tantos bárbaros? Há homens afáveis que ali vivem, esses se indignam com a
cólera dos seus vizinhos, com aqueles que querem cegar os padres, estuprar as moças, atingir mortalmente os
jovens, alvejar os transportes, amedrontar as crianças e desonrar as viúvas. O
mundo tornou-se um lodaçal sem fim, o ódio move cada um daqueles doentes,
daqueles perversos, dos estúpidos homens que perseguem, apedrejam, atiram e
esbravejam suas pragas íntimas, contra aqueles mesmos que pretendem levar
alimento às bocas famintas. O que fazer para cessá-los nessa hora?
CYANE PACHECO – Reunião de textos, fotos &
expressões da artista plástica & visual Cyane Pacheco.
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