sexta-feira, julho 29, 2022

ASCESE É UMA MULHER, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

 

 

ENTRE PARÊNTESES: ASCESE, DISCERNIMENTO & A BELEZA AMBÍGUA DAS MULHERES DE ISMAEL NERY.

 

Luiz Alberto Machado

  

A cena, a mesma de sempre: um calhamaço de manuscritos dentro de um enorme saco. Dava para ver o tanto de páginas pela transparência plástica do volume. Curioso e atento, cada folha de papel averiguada a me dar a certidão que além dos escritos, entre eles algumas digitadas, outras até datilografadas e algumas impressas no mimeógrafo – louca obsolescência! Tem gente que nem vai entender: evoluímos em termos de próteses e técnicas, para deixar para lá o ser humano, coisa de temporão que apodrece antes de amadurecer. Assim somos. Mas, vamos lá.

Li tudo que pude e comecei a selecionar textos para organização - muito embora, diga-se de passagem, eu seja, por inatíndole, achegado ao caos. Tenho horror a esta nossa mania taxonômica. Pelo menos, mesmo desorganizado, dá para enganar de que está tudo em ordem. Melhor que essa coisa do utilitarismo neurótico! Ou de trogloditas moderninhos! Sim.

Vasculhando a papelada, havia entre as páginas, uma que continha uma frase quase inelegível e com uma inscrição logo abaixo, uma observação que logo consegui identificar e se encontrava entre parênteses: Seria um título? Atentei e, ao conseguir relê-la, logo agucei a imaginação.

Parêntese primeiro: a frase logo me remeteu à obra de Ismael Nery: sua pintura, poesias, desenhos e, sobretudo, o seu Essencialismo. E com o afã de fã prossegui para dar cabo da empreitada. Até que no dia seguinte entabulei uma conversa com VCA, ocasião em que expus uma publicação caprichosa que reunia toda a obra do artista plástico. Um livro e tanto. E enveredamos para uma reflexão da infinita leitura que havíamos feito ao longo dos anos acerca de dois poetas que transitaram pela vida do pintor: Murilo Mendes e Jorge de Lima. O mais curioso é que ambos foram impactados com a morte prematura dele, a ponto de desenvolverem mutuamente uma correspondência poética que redundou na feitura de poemas e fotomontagens.

Entre sacadas e outras tiradas, ressaltei a minha admiração pela esposa de Ismael, a escritora Adalgisa Nery, logo aflorando à memória os versos da Berenice de Murilo: No teu corpo reacende-se a estrela apagada, / A água dos mares circula na tua saliva, / O fogo se aquieta nos teus cabelos. Quando te abraço estou abraçando a primeira / mulher. / Sol e lua, / Origem berço cova. / Teu corpo liga o céu e a terra, / Teu corpo é o estandarte da voluptuosa vitória. / Teu nome reconcilia dois mundos. E VCA expôs curiosidades acerca de suas leituras murílicas, coisa da maior afinidade e admiração.

No mesmo momento vieram à cabeça trechos dos poemas da Mira-Celi de Jorge: ...Então, o mar veio gemer aos meus ouvidos; / e, quando as marés me bramam sobre o rosto, / espalho à superfície das águas / a fala de Mira-Celi para fecundar o mundo. Não menor a explosão erudita de VCA de expor aqui e ali versos importantíssimos da produção jorgeana.

Curiosa a constatação de que toda ocorrência do sepultamento de Ismael Nery foi registrada e devidamente narrada n’O círio perfeito, do grande memorialista Pedro Nava. E não só isso: a relação entre as três personalidades abordadas passou a ser fonte de inúmeros estudos acadêmicos de professores como Ana Maria Paulino, Anna Teresa Fabris, Luciano Marcos Dias, Tadeu Chiarelli, Teodoro Rennó Assunção, Sergio Carvalho Assunção, Priscila Sacchettin e do jornalista Rubens Fernandes Júnior, afora outros tantos trabalhos acadêmicos de pós-graduação que saímos descobrindo no acervo das universidades.

Leituras e conversas atualizadas, parti para outras reflexões enquanto tentava ordenar os poemas para buscar alguma unidade ao volume.

Parêntese segundo: dedicado ao processo da leitura, imaginação à solta, os registros da memória foram emergindo. Logo ascese, do grego askesis, exercício, rondava solto. Mais amiudadamente, entre os significados do vocábulo constava o esforço para renunciar aos prazeres sensíveis, tendo em vista o aperfeiçoamento moral ou espiritual, ou ainda a realização de uma obra que exija o domínio da vontade. Ou seja, o termo deu origem ao propósito ascético como uma filosofia de vida pela prática espiritual que, para os adeptos, conduz à purificação do corpo e da alma, com o objetivo de compreender a divindade e comungar com a paz interior. Inspirou os cínicos como um agir no mundo com austeridade para confrontar com os costumes da sociedade de então, tornando-se base para o pensamento tanto de Antístenes, como de Diógenes. Também os estoicos Zenão, Sêneca e Epicteto que eram anacoretas na busca pela libertação da alma transcendente, obstinados pela resignação diante dos prazeres para cultuar as virtudes socráticas. Com o tempo apareceram ascetas que passaram a cultuar um vasto espectro de práticas que incluíam imolação, repreensões severas, mutilações, inclusive hábitos monásticos em diversas religiões, como a mortificação, o celibato e o jejum. Entre eles os cristãos que aplicaram seu ascetismo como desapego do mundo para aproximação de Deus, tendo como possível instrumento de culto a publicação da obra A vida de Macrina: elogio de Basílio, do escritor capadócio Gregório de Nissa, uma narrativa biográfica repleta de resignação diante dos infortúnios. Macrina era irmã do autor e tornou-se notável nas páginas do livro porque renunciara a riqueza para dedicação em manter uma personalidade acolhedora e solene diante dos piores momentos que permearam toda sua existência. Essa história encontrava sintonia com o advento do cristianismo que reunia as já usuais práticas de flagelamento humano, acrescentando outras, como a prescrição da continência sexual e o exercício da obediência, sendo, este último, característico do modo cenobítico da ascese cristã e que se proliferou pelo ocidente. Tais comportamentos atravessaram o medievo até a plenitude da modernidade, alcançando Schopenhauer que ditará o seu ato radical quietivo na proposta de mortificação e aniquilação da vontade. Também o filósofo Kierkegaard vai expressar em suas obras o drama da existência e da doença mortal do desespero, aliada à sua experiência religiosa marcada pelo luto com as perdas prematuras e irreparáveis, renunciando até o amor da sua amada por conta da suposta maldição de iminência da morte em sua família, fundamentado na necessidade de sua pureza corporal sem a mácula das paixões da carne.

Outro exemplo a se distinguir é o do filósofo Wittgenstein, que era caçula entre oito filhos de um magnata e renunciou toda fortuna do império empresarial familiar, para dedicar-se à filosofia e, posteriormente, após a leitura do Evangelho de Tolstoi, cair em completo abandono e atuar voluntariamente como bibliotecário e jardineiro apenas em troca de um prato de comida, dedicando-se ao que ele mesmo cunhou como sendo a doutrina do silêncio.

Leituras outras, como a de Max Weber, leva a entender que a ascese é uma ética que se revela no espírito do capitalismo: uma atitude de gestão dos negócios pela vida na ausência do pecado da acumulação. Lembro as várias leituras que tive de fazer para melhor apreender o que se poderia colher das obras dele. Coincidiu o momento com o encontro de outra reflexão trazida pelo Paulo Leminski que, lá por meados dos anos 1970, escreveu o ensaio Ascese e escassez, preocupado com o lugar da arte na crise do esgotamento dos recursos naturais, da iminente catástrofe ambiental e da possível hecatombe nuclear: Exaustos os recursos, irremediavelmente abalado o equilíbrio do meio ambiente, vamos todos ter que nos contentar com menos. Menos coisas. Menos títulos. Menos. Quando o grande Abalo Sísmico vier, os primeiros a senti-lo serão exatamente aqueles cuja desmesurada ambição de fartura excessiva provocaram o Grande Abalo. Não é a indústria automobilística o principal responsável pelo emporcalhamento das águas e dos ares deste planeta? Os que sempre se contentaram com menos, com pouco, ou até com nada (em termos de possuir coisas), sofrerão menos. Nessa hora, quanto menos você possuir coisas, mais estará imune ao Abalo. O poeta inspirou-se tanto pelo que se sabe a respeito dos padres do deserto e que foram enaltecidos apropriadamente por Jean-Yves Leloup, como pelos cínicos da antiguidade, pelos hippies de estradas, dos pajés e xamãs, poetas do haikai, enfim: a solidão ascética na necessidade de invenção de um novo ideal, um outro mundo, uma nova forma de viver.

Foi, então, inevitável conduzir as leituras à hermenêutica do sujeito de Foucault, destinada ao cuidado de si na intersecção entre sujeito e verdade, por meio da ascese, tratada com a noção condutora aos processos de ascensão à verdade: Na ascese filosófica não se trata de regrar a ordem dos sacrifícios, das renúncias que se deve fazer de uma ou outra parte, de um ou outro aspecto do nosso ser... é o que permite fazer de si mesmo o sujeito que diz a verdade e que, por esta enunciação da verdade, encontra-se transfigurado, e transfigurado precisamente pelo fato de dizer a verdade. Daí para a associação de tais ideias às de atenção de si de Karl Jaspers, como também às discussões efetuadas acerca da fusão de horizontes na hermenêutica em retrospectiva e no confronto entre verdade e método no corpo teórico desenvolvido por Gadamer, foi um salto para a ideia dada por Peter Sloterdijk na defesa de que qualquer um pode mudar sua vida por meio de exercícios antropotécnicos - que não são de natureza religiosa, vale ressaltar -, e que proporcionam a conservação ou melhoria da qualificação humana para a realização de operações e convivências que elevem e tornem saudáveis as condições da existência humana.

Pois bem, aprumando a conversa, aparece agora VCA com uma frase manuscrita no meio de tantos rascunhos: Ascese é uma mulher. E abaixo da frase, entre parênteses, indagava: Seria um título? Ora, se.

Pois bem, neste volume a primeira parte é dedicada aos poemas de Escuras que foram, em sua grande maioria, escritos e reunidos pelo autor em 2003, recebendo uma revisão geral e aqui inserto por conta da unidade temática complementar com o volume ora reunido e organizado. Esta seção é composta de cinco partes, contando inicialmente com Cenas de Abertura, seguindo-se poemas reunidos em Silos do Silêncio, depois Nojo e Êxtase, posteriormente Néctar Noturno, logo após As Bacias do Inconsciente e, finalmente, Nascente Agonizantes. São poemas noturnos e relacionados pelo próprio autor em volume assim intitulado, compreendendo o exercício poético na expressão de sua visão de vida e mundo.

A segunda parte aqui incluída é Cantares a Salomão, e originalmente reúne os poemas de VCA que foram inseridos em uma antologia que foi publicada e circulou nos ano de 1990, reunindo poetas e poemas sobre a temática dos bíblicos Cantares de Salomão. Estão aqui por conta de articulação com a temática ora abordada, notadamente pela interpretação predominante dada ao Cântico dos Cânticos, do Antigo Testamento, referente aos cânticos de amor possivelmente oriundos da concepção bíblica da experiência amorosa na descoberta do outro, com o sentido dado ao amor ágape. Ou seja, a renúncia e sacrifício para a purificação na procura da libertação do eu para o reencontro de si mesmo, para o bem do amado e a descoberta de Deus na eternidade. Os poemas aqui expostos demonstram o processo criativo e poético evolutivo de VCA.

A terceira parte compreende os poemas reunidos sob o título de Verão corpo da mulher: alma de abismos, vórtices de rosas, reunindo poemas que foram publicados pelo autor, na Coleção Pernambucos, em 2012, promovida pela Academia de Letras de Garanhuns, Jornal O Monitor e Centro Cultural Vital Corrêa de Araújo. Os poemas expressam as reflexões de VCA acerca da representatividade do ser mulher no percurso de sua existência, proporcionando o entendimento da riqueza poética do autor.

Na última parte deste volume encontra-se Criticoutras, trazendo os textos Singularidade do Paratexto e Sublime, do professor Sébastien Joachim, e Escuras – O novo relacionamento do poeta Vital Corrêa de Araújo com a poesia, escrito por Lúcio Ferreira. Ambos, apesar de terem sido escritos e publicados antes da feitura deste volume, abordam análises críticas concernentes aos poemas que integram esta seleção, articulando-se, inclusive, com a proposta temática.

Poder-se-ia dizer por evidência que este volume compreende a ascese poética de VCA, o que remete às palavras de Paulo Leminski: Ai está uma bela questão. A mais bela de todas para os que vivem do verbo. Quem escreve, vive hoje um oficio sem definições. A literatura, mãe de todas as técnicas de escrever, morreu: foi atropelada por um trocadilho. A divisão da literatura em gêneros (poesia/prosa) esta agora com seus limites borrados: já não se sabe, na prática do texto novo, o que é prosa, o que é poesia. Parece que a extensão de um texto define seu caráter de "prosa" e a brevidade seu caráter de "poesia". Mas não há mais certeza. Ocorre que VCA em suas obras já publicadas e analisadas criticamente por autoridades de categoria e relevo, delimita muito bem o que é da poesia e o que é da prosa, demonstrando quão cônscio e maduro tem perpetrado sua trajetória e maturidade poética.

Confesso que ao ler os manuscritos e poemas selecionados e organizados, fui revestido por uma canção que compus e a premiei com o mesmo título de VCA: Ascese é uma mulher. Foi como diz Alan Watts: Percebe-se que o mundo é uma ilusão mutável, como um rio que não cessa de correr um só segundo, e por isso mesmo é que se mergulha nele, rio e mundo, integrando-se à vida. Quão instigante foi ler e experimentar a criação do autor, levando, com isso, a convidar a distinta leitora e achegado leitor a mergulhar na riqueza poética desta ascese e descobrir na minha canção nada mais que a fruição dos poemas aqui apresentados. Vamos juntos.

 


O CÁLCULO DE BORBOLETA

(OU DEUS OUSA)

 

 

No cálculo das borboletas, Deus ousou.

Sua geometria diáfana, a leveza do traço

quase aéreo, a cor pudica e veloz

o indelével bordado, pureza extrema

irisado supremo, elementar, o vôo

alcandorado de regozijos, a severa

e ardilosa asa, a brisa

etérea e vagarosa onde paira

a delicadeza ampla que perpassa

e a pomposa melancolia quando vagueia

de rosa em rosa na ágil planície

entre dons silvestres e desatentas mulheres.

 

(Poema à borboleta, que tece

arabescos de cor no vento e mostra

que a beleza não é difícil).


 

CANTARES A SALOMÃO

 

I

 

 

EPIGRAMAS BEBIDOS NA FONTE DE SALOMÃO

 

 

Antes que a fecunda noite acabe

e as sombras debandem

antes que os aromas mirrem

e os desejos ceguem

vou ao monte de sândalo...

 

Vou à colina onde Vênus impera

no seu divino trono de relva

vou ao jardim vedado

onde a gazela do seio nasce

entre açucenas e orvalhos...

 

Vou à fonte proibida com minha sede

ouvir o incenso louco das ancas

domar as maçãs do pomar vermelho

sorver o potro vasto de teu corpo

sondar o tímido nardo do púbis...

 

Vou colher a mirra de teus beijos tenros

com minha surda boca camponesa

beber os jardins imaginários do ventre

tocar os perfumes e as peles tão puras

com poemas de cinamomos e rimas de romãs maduras...

 


 

VERÃO CORPO DA MULHER: ALMA DE ABISMOS, VÓRTICES DE ROSAS

 

1

 

VERÕES FURIOSOS

 

 

Demônios invernos

súcubos incunábulos lascivos habitam

sexo da mulher percorrendo

como correntes de elétrons loucos

hélices rondando músicas de tumulto

corpo da mulher ataviado

de gozos estupendos, volúpias, amapolas

encarnando-se círios enluarados vivos

nas pétalas da ama da mulher

nos atraem ornatos vermelhos

e outonos gozosos além de aréolas macias

aos seios da mulher nossas bocas

sitiadas por primaveras de orquídeas

e viris iluminações de amêndoa.

 

2

 

 

Moram no corpo e na alma da mulher

fantasias indecentes, clamores azuis

e feras o corpo

o lábio chamas intransponíveis.

 

A devorar nossos impunes escuros

e gritantes trevas exilar das veias

basta aceno ou olhar vital de uma mulher

balsamos e fúrias vivem do seu beijo

haustos de paz sucedem ao gozo.

 

Do riso lentos venenos

e sutis escapam.

 

Da voz emigram aves marinhas altas

do coração orações extáticas

aromas de criatura

fontes que Deus escondeu dos homens.

 

3

 

TODO SEDE

 

Todo fervoroso inverno

ronda  corpo tua concha (rósea)

mutilarei com alfanje macio do lábio

porque morro de tua sede

de teu louvor frio ao coração vivo

fruo de ti certeza da solidão

e da saliva do amanhecer hauro

teu fervor inteiro

livor de marfim e abeto

ganas de teu beijo e ágios

às finanças do ser beberei

porque tuas pétalas de palomas ganhei

e me alimento do lampejo

descuidado do teu olhar.

 

4

 

 

INCLINO-ME

 

 

Inclino-me

ao príncipe e à náusea

à saudade árida inclino-me

e ao mar sem comoção da vida

 

ao que de melhor engendre o nada

ou a garça louvarei (e ao amém)

 

porque sal da vida é frágil

e sede vence o prazer.

 

Porque amor é resto

do banquete que deuses abandonaram

lixo vertido como vômito

da mesada dos simpósios

(cuja toalha é mortalha do amor).

 


ASCESE É UMA MULHER – Poemas extraídos da obra Ascese é uma mulher (Criaart, 2022), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é composto pelo prefácio LAM (capa e ilustrações) Entre parêntesis: ascese, discernimento & a beleza ambígua das mulheres de Ismael Nery, mais os poemas de Escuras, Cantares a Salomão, Verão corpo da mulher: alma de abismos, vórtices de rosas, e Criticoutras com textos de Sébastien Joachim e Lúcio Ferreira. Veja mais aqui, aqui e aqui.

 



DE LÁSTIMA É A PELE DOS PUSILÂNIMES, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

 

 

O HORROR NUNCA FOI AZUL

ou A PUSILANIMIDADE SE ESBOROA NOS NANOPOEMAS & MONOSTICOUTROS DA POESIABSOLUTA

 

Luiz Alberto Machado

 

Este não é um livro praqueles de sangue lívido quase fugidio, antes fosse. Talvez um menoscabo aos pávidos, se tanto. Muito menos daquele tipo: vou ali, volto já. Nem precisaria disso. Neste momento, com certeza, o autor estará elucubrando sóis e estrelas no Sítio dos Espíritos, enquanto você passa as vistas nestas mal traçadas linhas do introdutor. Melhor aprumar a conversa.

Sim, porque nestes tempos sombrios em que o estouro das fossas trouxe à superfície o que havia escondido de mais nefasto nos esgotos de Pandora, resta entoar a corajosa Nênia de Abril para assumir que somos todos poetas obscuros.

Digo isso porque o biógrafo e dramaturgo estadunidense Edgar Lee Masters assinalou que os poetas são um delicado sismógrafo, um barômetro que capta mudanças na pressão atmosférica, um microscópio que descobre germes destruidores da carne do povo.

Um a zero, outra: a confirmação disso foi dada pelo filósofo Will Durant ao atestar que todas as verdades são velhas e só os poetas e os loucos podem ser originais.

Lá se vão duas ou três porque Freud dizia que: “Os poetas e os filósofos descobriram o inconsciente antes de mim. O que eu descobri foi o método científico que nos permite estudar o inconsciente”.

Mais e o psicanalista Rubem Alves a mencionou: “Faz tempo que para pensar sobre Deus, não leio os teólogos, leio os poetas”.

Concorde ou não, lá na antiguidade ocorreu um fato bastante interessante: quando Alexandre da Macedônia invadiu para destruição de Tebas, poupando apenas a casa do poeta Píndaro. Deveras um caso raro, as biografias comprovam que foram poucos que tiveram esta sorte.

Sim, até mesmo Kafka que temia ser visto como repulsivo física e mentalmente, ao escrever sua oração no leito de morte, Um artista da fome, convocou seu amigo, Max Brod – a quem doou todos os direitos sobre os seus escritos -, com a determinação de que queimasse tudo que houvesse publicado ou inédito. Essa drástica decisão fora motivada por ter ele passado a vida toda como um ilustre desconhecido, ganhando notoriedade apenas postumamente e isso só porque o amigo ignorou o pedido e publicou toda sua obra.

Fatos como esse se repetiram, como a que ocorreu no revertério envolvendo o próprio Píndaro que foi preso na batalha de Patea pela simples conduta pacificadora, quando este estava sob os auspícios do rei Hierão de Siracusa. Se foi poupado numa, não teve a mesma sorte na outra.

Quase o mesmo se deu com o poeta Frínico que foi condenado pelo drama A tomada de Mileto, só porque levou a plateia às lágrimas com as desgraças da cidade morta.

Não foi outra a razão que levou o Walt Whitiman a lamentar: “Para que haja grandes poetas é preciso que haja também um grande público”.

O que então se dizer deste tempo tão sem poesia além de, apenas, para os que escaparam com a simples constatação: De lástima é a pele dos pusilânimes!

Para os que se foram, ah, para estes os poemas solidários deste livro que é composto de 5 partes: a primeira, Poemas da última madrugada, na qual o poeta VCA descarrega logo de cara: “É de lata a alma do déspota / de mármore o sono da estátua”. E não menos indignado vocifera no seu poema Dou fé: “Rasgue entranhas / (suas ou do outro), seja... Estripe pássaro interior, voe ao vazio que é. / Não se curve ao peso da prece / não suje bolso de dízimo / não macule coração de usura /... / o horror nunca foi azul...”. Porque o poeta se mostra por inteiro num verso do seu História do Até: “...serei grito urbano e largo...” E assinará seu Escrito na água: “...Poema escrito com a pena da eternidade...” e com dose extra vaticinando no seu Visionário verbo: “...tudo tombará / Perante mortos olhos das sombras que seremos”. Além disso, diante das suas Utopias esgotadas dirá com maturidade: “... Eis que se apresenta putrefação faminta / eis que ânimo já se escoa fora do vaso da vida”. E demonstrará qual o Presente de grego: “... País vanguardista, hoje caminha para trás... envergonha o mundo em pleno século 21...”, porque não se entrega e resiste com a sua Identidade lírica: “Sou poeta (sim) / pois não teço, faço, emprenho verso / mas apenas acoplo palavras / ao inverso do poema / mui indireto, porém bem ambíguo”. Está dada a senha, a palavra de passe.

A segunda parte é composta por Nanopoemas, formada por dísticos, monósticos e tercetos que foram epigrafados por Hölderlin & Heidegger. E logo em um dos Sete monósticos id-otas ele adverte: “Ao captar significado de poema, afaste-se”. E para invocar os seus 77 Monósticos de carbono – Visão Poética do Alto da Cela, traz a epígrafe de Novalis: “A poesia é o verdadeiro real absoluto. Quanto mais poético mais verdadeiro. Tem-se com isso o teor do que reservam os versos de VCA daí por diante.

Na terceira parte é a vez dos Quatro poemas equívocus em que se pode sintetizar com estes seus versos: “... assim o mundo dos homens de hoje... apregoada e brasileira hecatombe...”. É com essa carga poética que ele prossegue e vai mais além de si próprio.

Na quinta parte, as Prosas Vitalícias em que ele traz de antemão a advertência: “Este, a propósito, é um livro de poesia, isto é, um tomo, reunião, compêndio de poemas complexo e dificilmente estaria à altura de quem o adquirisse, porque o estilo é bem astuto, pós-moderno, e paradoxalmente o autor vela pela ambiguidade e terceiros sentidos dos poemas...” E escorre com uma recomendação de que não o compre; se comprar, não abra, se abrir, não leia, se começar a ler, pare; e se já leu: esqueça! Mas para quem prosseguir, inadvertida, corajosa ou teimosamente, ele trará Notas Inexplicativas relacionadas à poesia e o abstracionismo de Kandinsky, de sua crença na dúvida, da liberdade gramatical, de Canudos e o que ainda não disseram as palavras, da Luz do Abismo e de Álvaro Lins, do Ulisses de Joyce e do entremear de razões incisivas sobre a Ars Poética em Prosa. Como fui um dos persistentes, digo logo: imperdível.

Por fim, o professor e crítico Sébastien Joachim tratará sobre a evolução da poética de VCA, detectada a partir da Ecologia da Negatividade e do Silêncio. Da minha parte digo que a categoria desta crítica dispensa qualquer comentário, ou no popular: quem sabe, sabe, mata a cobra e mostra o pau, nem precisa correr. Confira.

Sim. Ainda não é tudo.

A provocação maior de VCA está no próprio título da obra! E ele o faz ao seu modo, como Ralph Wald Emerson sentenciou: ”Somos todos gênios e só precisamos de coragem!” Então, para os que têm olhos e não veem, ouvidos e não ouvem, se arrastam e se debatem espíritos rasos e fúteis do ódio e do egoísmo na tagarelice da insipidez do proselitismo religioso, nas tolices de endeusamentos conservadores das superstições ou dos preconceitos das convicções e das disparatadas panaceias carregadas de recalques e com todo o tipo de restrição disso ou daquilo, enfim, para estes os seus versos soam como a frase de Gandhi: “O medo tem alguma utilidade, mas a covardia não”. E como Shaw: “O ódio é a vingança do covarde”. E como Joseph Joubert: “O medo depende da imaginação; a covardia, do caráter”. E muito mais.

Com espírito aberto VCA segue o próprio caminho com a coragem de se rebelar feito o solilóquio desobediente de Thoureau e com a lição do Agostinho da Silva na cacunda: ortodoxo nunca, heterodoxo jamais: paradoxo somos na carne, ossos, vísceras e interstícios. E com uma última advertência a quem bebeu as águas nos infernos de Lete para olvidar do passado inglório da história, esta a pusilanimidade, pois precisa prestar bem atenção a um detalhe indispensável: por maior que seja a indiferença, as ninfas das nove noites amantes de Mnemósine estarão sempre em riste. Saiba e se sinta vivente, porque VCA fará com que você possa ter altas e muitas sinapses neuronais e isso não é nada mais que viver. Viva.

 


DE LÁSTIMA É A PELE DOS PUSILÂNIMES

 

 

A uretra dos monges é tranquila

avanço da úlcera severo

Atônito o futuro dos condôminos de luxo

e dúbia a memória do escombro

azuis são as vísceras do enigma

vítrea a ira dos alcoólatras

tênue sina a dos insensatos e a pele

dos pusilânimes de lástima.

 

É de lata a alma do déspota

de mármore o sono da estátua.

 

Berço da escória o incêndio

ruína do rosto o tempo

último sopro apaga o mundo

tem a espessura de um segundo.

 

Fôlego dos moribundos é fraudulento

e o gesto do gato de veludo atento.

 


ESCRITO NA ÁGUA

 

A Cláudio Véras e Admmauro Gommes

 

 

Poema escrito com a pena da eternidade.

 

Pois, lírios comum e fútil, é inútil.

 

Que o poema traia

buscas, túmulos, verdades sáfaras

hinos, lumes, cinzas, seivas, hiatos de estrelas

enigmas duradouros, esquifes sem fé, cópias

de Deus copioso.

 

Escrever poesia absoluta é como escrever

sobre páginas de onda

sinuosas adeptas do vento (filhas de Éolo)

livro líquido por atacado de metáforas

molhadas como orvalho (e duvidosos como a vida).

 

E nele músicas de água (nada impoluta)

eco alto de trovoada pura

cães assustados sem ternura e notas à terceira margem.

 

A começar entrevero com leitor obstinado.

 

Escrever o nome na água é inverno

é pular do sólido que se desmancha à pele

escorregadia, macia e duradoura da água

sentir um si a eternidade líquida.

 

Na água é como Shelley escreveu

afogado de metáforas (no livro ou golfo

de Spezia um dia).

 

E Caronte certeiro levou para si

(oceano noturno) o desmonetarizado poeta.

 

Seu coração ígneo Keats cultivou

De fogo palpitando à sombra da palavra.

 

 

II

 

 

De margens rumorosas ribeiros lentos

E mares sem ventre vive a poesia.

III

 

 

De ânions e cátodos

de dissociações associadas

vive o núcleo da palavra

que partículas do verbo dinamizam

até que irrompa do poema absoluto

a página esmeralda, icônica e profunda.

 

O que convém à iluminação da palavra?

 

O elétron do verbo faz a luz?

 

Trêmulos cosmos arrostas, poeta.

 

Com teu verbo em riste (sem medo).

 

E buscas buscas, desencontros procuras

túmulos do cosmos buscas

e mitologias monetárias.

 


TODO VOO ÁSPERO E VIRTUOSO

 

 

Tudo porque o frêmito é azul quitinoso.

 

E vai do céu ao cérebro num voo instantâneo.

 

E o eco dos ossos do pássaro

vagia no páramo encantado

fazia rosas olharem-se

arrulha com o vento arrulhando

ou borboletas desnudadas

em seu livre flutuar do espaço.

 

Ermos dos olhos enraizando-se

nas sombras dos salmos.

 

Pássaros a olhar recintos de pedra

a graça do alpiste comemoram.

 

A trasladar almas sobre mármores

líquida veia de pedra

diva belga dos músculos acentua

brusco bíceps das asas aleluia.

 

Mármore do voo mestiça aurora vigia.

 

Como abobadas trêmulas

sobre crânio e flâmulas

o dia se anuncia.

 


CAMABILE DONDE DERIVA TOM MÚSICO

 

 

Enredo floral metálico embora automático.

 

Penumbra da aura ferida precipitando-se

como célere enfado do espirito corporal.

 

Trova de batom cintila. Lábio satura

de enfermiços tons espessos (quase ásperos).

 

Debrum de sombras alveja

penhoar vestido de tristeza.

 

Mar e céu confusos. Sob égide da noite absoluta.

 

Lento entalhe do espaldar. Cadeira solitária

no terraço que o vento abomina.

 

Esquálido relevo ilumina ossos ainda vivos.

 

Embora fanáticos.

 

Olhar bem perturbado

assinala faíscas de lágrimas

aquinhoa receituários, conduz

olhos ao naufrágio. Ótico oceânico.

 

Nada de verão lacrimogêneo.

 

Voo incógnito pelo vão do céu insone.

 

Largo viés de estereótipo não flameja.

 

A todo despudor do verbo.

 

Vibra surdina do vento

sobre tua alma corpórea.

 

Ecos de luz fugiam da claraboia

escapavam reflexos dos vitrais

da lamparina que a Cristo reluzia

relâmpagos saltavam rebelados

para de quartzo e luz cristalina

enigma da face do Senhor iluminar.

 

E ofender sombra a irmã da treva.

 


TRÍPTICO NOIR

 

 

 

(TREVA)

 

Treva nasce de girassóis.

Úlcera abomina antúrios.

Urra rosa ao morrer.

 

(SOLIDÃO)

 

Da solidão a alma exulta

quando noite vigila

e a treva perdura.

 

(CELA)

 

Cela entristece

quando dia avulta

e alma se alça

prisioneira da altura

a céu sem culpa.

 


MONÓSTICOS DE CARBONO

VISÃO POÉTICA DO ALTO DA CELA

 

 

Quantas épuras destino encerra?

 

Aduanas são noturnas.

 

Noite egípcia.

 

Beijo vértice de nojo.

 

Uxoricida rato sem sarjeta.

 

Úmida e acetinada geometria da lágrima.

 

Sandália de Empédocles Etna cospe.

 

Pandora não guarda mais esperanças.

 

Só palavra caixa de greda abre.

 

No mesmo saco gatos rasgam-se.

 

Inverno esculpe lágrimas no rosto do Central Park.

 

Máscaras inspiram-se em rostos.

 

Alma não escolhe corpos.

 

Párocos depauperam domingos.

 

Provérbios abatem intempéries.

 

Vândalo depreda horizontes.

 

Tímpano teme prédica.

 

Lento cemitério de lince.

 

Átimo centro do labirinto.

 

Novela invenção de Ariadne.

 


PROMETEU PAGA

 

 

Não era Prometeu acovardado

o titã a delírios estava acorrentado

a duras visões de pedra amarrado

preso a ilusões que deuses o prenderam.

 

E sonhava com corvos a devorar

seu fígado excelso

a destroçarem seu coração tenebroso

por toda a crua eternidade diariamente

a rochas do Cáucaso assemelham-se seu corpo

sua alma dilacerada eram lágrimas

o corpo titânico atado a pedras

espírito livre das correntes

e amarras dos homens

que ao titã temiam

(como camundongos inocentes

a belicosos gatos).

 

Prometeu fora deus humanizado

herói que clareou a humanidade.

 

Mais humano era que a horda das criaturas...

  


ADVERTÊNCIA A (IM)PROVÁVEL LEITOR

 

Especialmente, os do sexo masculino, os mais ingênuos, digo, os mais propensos a comprar livros de poemas, muito embora a tendência esteja se espalhando (como fogo na caatinga), e muitas mulheres preferem uma livraria a uma butique e uma coletânea de poemas a uma colônia de grife ou a uma sandália exibida no intervalo das novelas de TV, entre cremes faciais.

Este, a propósito, é um livro de poesia, isto é, um tomo, reunião, compêndio de poemas complexo e dificilmente estaria à altura de quem o adquirisse, porque o estilo é bem astuto, pós-moderno, e paradoxalmente o autor vela pela ambiguidade e terceiros sentidos dos poemas; igualmente, o “fazedor” zela pelo bem do seu bolso (leitor) e paz do seu espírito acomodado ao dia-a-dia tíbio (na acepção de Espanha) e recomenda que não o compre; se comprar, não abra, se abriu, não leia, se começou a ler, pare; se já leu: esqueça!

Pela atenção, o autor

 


DE LÁSTIMA É A PELE DOS PUSILÂNIMES – Poemas extraídos da obra De lástima é a pele dos pusilânimes (Criaart, 2022), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é composto pelo prefácio LAM (capa e ilustrações) O horror nunca foi azul ou a pusilanimidade se esboroa nos nanopoemas e monosticoutros da poesiabsoluta, mais os Poemas da última madrugada, Nanopoemas, Quatro poemas equívocus, Prosas vitalícias e Palavroutras com o texto Uma poética da negatividade por Sébastien Joachin. Veja mais aqui, aqui e aqui.