sexta-feira, julho 29, 2022

ASCESE É UMA MULHER, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

 

 

ENTRE PARÊNTESES: ASCESE, DISCERNIMENTO & A BELEZA AMBÍGUA DAS MULHERES DE ISMAEL NERY.

 

Luiz Alberto Machado

  

A cena, a mesma de sempre: um calhamaço de manuscritos dentro de um enorme saco. Dava para ver o tanto de páginas pela transparência plástica do volume. Curioso e atento, cada folha de papel averiguada a me dar a certidão que além dos escritos, entre eles algumas digitadas, outras até datilografadas e algumas impressas no mimeógrafo – louca obsolescência! Tem gente que nem vai entender: evoluímos em termos de próteses e técnicas, para deixar para lá o ser humano, coisa de temporão que apodrece antes de amadurecer. Assim somos. Mas, vamos lá.

Li tudo que pude e comecei a selecionar textos para organização - muito embora, diga-se de passagem, eu seja, por inatíndole, achegado ao caos. Tenho horror a esta nossa mania taxonômica. Pelo menos, mesmo desorganizado, dá para enganar de que está tudo em ordem. Melhor que essa coisa do utilitarismo neurótico! Ou de trogloditas moderninhos! Sim.

Vasculhando a papelada, havia entre as páginas, uma que continha uma frase quase inelegível e com uma inscrição logo abaixo, uma observação que logo consegui identificar e se encontrava entre parênteses: Seria um título? Atentei e, ao conseguir relê-la, logo agucei a imaginação.

Parêntese primeiro: a frase logo me remeteu à obra de Ismael Nery: sua pintura, poesias, desenhos e, sobretudo, o seu Essencialismo. E com o afã de fã prossegui para dar cabo da empreitada. Até que no dia seguinte entabulei uma conversa com VCA, ocasião em que expus uma publicação caprichosa que reunia toda a obra do artista plástico. Um livro e tanto. E enveredamos para uma reflexão da infinita leitura que havíamos feito ao longo dos anos acerca de dois poetas que transitaram pela vida do pintor: Murilo Mendes e Jorge de Lima. O mais curioso é que ambos foram impactados com a morte prematura dele, a ponto de desenvolverem mutuamente uma correspondência poética que redundou na feitura de poemas e fotomontagens.

Entre sacadas e outras tiradas, ressaltei a minha admiração pela esposa de Ismael, a escritora Adalgisa Nery, logo aflorando à memória os versos da Berenice de Murilo: No teu corpo reacende-se a estrela apagada, / A água dos mares circula na tua saliva, / O fogo se aquieta nos teus cabelos. Quando te abraço estou abraçando a primeira / mulher. / Sol e lua, / Origem berço cova. / Teu corpo liga o céu e a terra, / Teu corpo é o estandarte da voluptuosa vitória. / Teu nome reconcilia dois mundos. E VCA expôs curiosidades acerca de suas leituras murílicas, coisa da maior afinidade e admiração.

No mesmo momento vieram à cabeça trechos dos poemas da Mira-Celi de Jorge: ...Então, o mar veio gemer aos meus ouvidos; / e, quando as marés me bramam sobre o rosto, / espalho à superfície das águas / a fala de Mira-Celi para fecundar o mundo. Não menor a explosão erudita de VCA de expor aqui e ali versos importantíssimos da produção jorgeana.

Curiosa a constatação de que toda ocorrência do sepultamento de Ismael Nery foi registrada e devidamente narrada n’O círio perfeito, do grande memorialista Pedro Nava. E não só isso: a relação entre as três personalidades abordadas passou a ser fonte de inúmeros estudos acadêmicos de professores como Ana Maria Paulino, Anna Teresa Fabris, Luciano Marcos Dias, Tadeu Chiarelli, Teodoro Rennó Assunção, Sergio Carvalho Assunção, Priscila Sacchettin e do jornalista Rubens Fernandes Júnior, afora outros tantos trabalhos acadêmicos de pós-graduação que saímos descobrindo no acervo das universidades.

Leituras e conversas atualizadas, parti para outras reflexões enquanto tentava ordenar os poemas para buscar alguma unidade ao volume.

Parêntese segundo: dedicado ao processo da leitura, imaginação à solta, os registros da memória foram emergindo. Logo ascese, do grego askesis, exercício, rondava solto. Mais amiudadamente, entre os significados do vocábulo constava o esforço para renunciar aos prazeres sensíveis, tendo em vista o aperfeiçoamento moral ou espiritual, ou ainda a realização de uma obra que exija o domínio da vontade. Ou seja, o termo deu origem ao propósito ascético como uma filosofia de vida pela prática espiritual que, para os adeptos, conduz à purificação do corpo e da alma, com o objetivo de compreender a divindade e comungar com a paz interior. Inspirou os cínicos como um agir no mundo com austeridade para confrontar com os costumes da sociedade de então, tornando-se base para o pensamento tanto de Antístenes, como de Diógenes. Também os estoicos Zenão, Sêneca e Epicteto que eram anacoretas na busca pela libertação da alma transcendente, obstinados pela resignação diante dos prazeres para cultuar as virtudes socráticas. Com o tempo apareceram ascetas que passaram a cultuar um vasto espectro de práticas que incluíam imolação, repreensões severas, mutilações, inclusive hábitos monásticos em diversas religiões, como a mortificação, o celibato e o jejum. Entre eles os cristãos que aplicaram seu ascetismo como desapego do mundo para aproximação de Deus, tendo como possível instrumento de culto a publicação da obra A vida de Macrina: elogio de Basílio, do escritor capadócio Gregório de Nissa, uma narrativa biográfica repleta de resignação diante dos infortúnios. Macrina era irmã do autor e tornou-se notável nas páginas do livro porque renunciara a riqueza para dedicação em manter uma personalidade acolhedora e solene diante dos piores momentos que permearam toda sua existência. Essa história encontrava sintonia com o advento do cristianismo que reunia as já usuais práticas de flagelamento humano, acrescentando outras, como a prescrição da continência sexual e o exercício da obediência, sendo, este último, característico do modo cenobítico da ascese cristã e que se proliferou pelo ocidente. Tais comportamentos atravessaram o medievo até a plenitude da modernidade, alcançando Schopenhauer que ditará o seu ato radical quietivo na proposta de mortificação e aniquilação da vontade. Também o filósofo Kierkegaard vai expressar em suas obras o drama da existência e da doença mortal do desespero, aliada à sua experiência religiosa marcada pelo luto com as perdas prematuras e irreparáveis, renunciando até o amor da sua amada por conta da suposta maldição de iminência da morte em sua família, fundamentado na necessidade de sua pureza corporal sem a mácula das paixões da carne.

Outro exemplo a se distinguir é o do filósofo Wittgenstein, que era caçula entre oito filhos de um magnata e renunciou toda fortuna do império empresarial familiar, para dedicar-se à filosofia e, posteriormente, após a leitura do Evangelho de Tolstoi, cair em completo abandono e atuar voluntariamente como bibliotecário e jardineiro apenas em troca de um prato de comida, dedicando-se ao que ele mesmo cunhou como sendo a doutrina do silêncio.

Leituras outras, como a de Max Weber, leva a entender que a ascese é uma ética que se revela no espírito do capitalismo: uma atitude de gestão dos negócios pela vida na ausência do pecado da acumulação. Lembro as várias leituras que tive de fazer para melhor apreender o que se poderia colher das obras dele. Coincidiu o momento com o encontro de outra reflexão trazida pelo Paulo Leminski que, lá por meados dos anos 1970, escreveu o ensaio Ascese e escassez, preocupado com o lugar da arte na crise do esgotamento dos recursos naturais, da iminente catástrofe ambiental e da possível hecatombe nuclear: Exaustos os recursos, irremediavelmente abalado o equilíbrio do meio ambiente, vamos todos ter que nos contentar com menos. Menos coisas. Menos títulos. Menos. Quando o grande Abalo Sísmico vier, os primeiros a senti-lo serão exatamente aqueles cuja desmesurada ambição de fartura excessiva provocaram o Grande Abalo. Não é a indústria automobilística o principal responsável pelo emporcalhamento das águas e dos ares deste planeta? Os que sempre se contentaram com menos, com pouco, ou até com nada (em termos de possuir coisas), sofrerão menos. Nessa hora, quanto menos você possuir coisas, mais estará imune ao Abalo. O poeta inspirou-se tanto pelo que se sabe a respeito dos padres do deserto e que foram enaltecidos apropriadamente por Jean-Yves Leloup, como pelos cínicos da antiguidade, pelos hippies de estradas, dos pajés e xamãs, poetas do haikai, enfim: a solidão ascética na necessidade de invenção de um novo ideal, um outro mundo, uma nova forma de viver.

Foi, então, inevitável conduzir as leituras à hermenêutica do sujeito de Foucault, destinada ao cuidado de si na intersecção entre sujeito e verdade, por meio da ascese, tratada com a noção condutora aos processos de ascensão à verdade: Na ascese filosófica não se trata de regrar a ordem dos sacrifícios, das renúncias que se deve fazer de uma ou outra parte, de um ou outro aspecto do nosso ser... é o que permite fazer de si mesmo o sujeito que diz a verdade e que, por esta enunciação da verdade, encontra-se transfigurado, e transfigurado precisamente pelo fato de dizer a verdade. Daí para a associação de tais ideias às de atenção de si de Karl Jaspers, como também às discussões efetuadas acerca da fusão de horizontes na hermenêutica em retrospectiva e no confronto entre verdade e método no corpo teórico desenvolvido por Gadamer, foi um salto para a ideia dada por Peter Sloterdijk na defesa de que qualquer um pode mudar sua vida por meio de exercícios antropotécnicos - que não são de natureza religiosa, vale ressaltar -, e que proporcionam a conservação ou melhoria da qualificação humana para a realização de operações e convivências que elevem e tornem saudáveis as condições da existência humana.

Pois bem, aprumando a conversa, aparece agora VCA com uma frase manuscrita no meio de tantos rascunhos: Ascese é uma mulher. E abaixo da frase, entre parênteses, indagava: Seria um título? Ora, se.

Pois bem, neste volume a primeira parte é dedicada aos poemas de Escuras que foram, em sua grande maioria, escritos e reunidos pelo autor em 2003, recebendo uma revisão geral e aqui inserto por conta da unidade temática complementar com o volume ora reunido e organizado. Esta seção é composta de cinco partes, contando inicialmente com Cenas de Abertura, seguindo-se poemas reunidos em Silos do Silêncio, depois Nojo e Êxtase, posteriormente Néctar Noturno, logo após As Bacias do Inconsciente e, finalmente, Nascente Agonizantes. São poemas noturnos e relacionados pelo próprio autor em volume assim intitulado, compreendendo o exercício poético na expressão de sua visão de vida e mundo.

A segunda parte aqui incluída é Cantares a Salomão, e originalmente reúne os poemas de VCA que foram inseridos em uma antologia que foi publicada e circulou nos ano de 1990, reunindo poetas e poemas sobre a temática dos bíblicos Cantares de Salomão. Estão aqui por conta de articulação com a temática ora abordada, notadamente pela interpretação predominante dada ao Cântico dos Cânticos, do Antigo Testamento, referente aos cânticos de amor possivelmente oriundos da concepção bíblica da experiência amorosa na descoberta do outro, com o sentido dado ao amor ágape. Ou seja, a renúncia e sacrifício para a purificação na procura da libertação do eu para o reencontro de si mesmo, para o bem do amado e a descoberta de Deus na eternidade. Os poemas aqui expostos demonstram o processo criativo e poético evolutivo de VCA.

A terceira parte compreende os poemas reunidos sob o título de Verão corpo da mulher: alma de abismos, vórtices de rosas, reunindo poemas que foram publicados pelo autor, na Coleção Pernambucos, em 2012, promovida pela Academia de Letras de Garanhuns, Jornal O Monitor e Centro Cultural Vital Corrêa de Araújo. Os poemas expressam as reflexões de VCA acerca da representatividade do ser mulher no percurso de sua existência, proporcionando o entendimento da riqueza poética do autor.

Na última parte deste volume encontra-se Criticoutras, trazendo os textos Singularidade do Paratexto e Sublime, do professor Sébastien Joachim, e Escuras – O novo relacionamento do poeta Vital Corrêa de Araújo com a poesia, escrito por Lúcio Ferreira. Ambos, apesar de terem sido escritos e publicados antes da feitura deste volume, abordam análises críticas concernentes aos poemas que integram esta seleção, articulando-se, inclusive, com a proposta temática.

Poder-se-ia dizer por evidência que este volume compreende a ascese poética de VCA, o que remete às palavras de Paulo Leminski: Ai está uma bela questão. A mais bela de todas para os que vivem do verbo. Quem escreve, vive hoje um oficio sem definições. A literatura, mãe de todas as técnicas de escrever, morreu: foi atropelada por um trocadilho. A divisão da literatura em gêneros (poesia/prosa) esta agora com seus limites borrados: já não se sabe, na prática do texto novo, o que é prosa, o que é poesia. Parece que a extensão de um texto define seu caráter de "prosa" e a brevidade seu caráter de "poesia". Mas não há mais certeza. Ocorre que VCA em suas obras já publicadas e analisadas criticamente por autoridades de categoria e relevo, delimita muito bem o que é da poesia e o que é da prosa, demonstrando quão cônscio e maduro tem perpetrado sua trajetória e maturidade poética.

Confesso que ao ler os manuscritos e poemas selecionados e organizados, fui revestido por uma canção que compus e a premiei com o mesmo título de VCA: Ascese é uma mulher. Foi como diz Alan Watts: Percebe-se que o mundo é uma ilusão mutável, como um rio que não cessa de correr um só segundo, e por isso mesmo é que se mergulha nele, rio e mundo, integrando-se à vida. Quão instigante foi ler e experimentar a criação do autor, levando, com isso, a convidar a distinta leitora e achegado leitor a mergulhar na riqueza poética desta ascese e descobrir na minha canção nada mais que a fruição dos poemas aqui apresentados. Vamos juntos.

 


O CÁLCULO DE BORBOLETA

(OU DEUS OUSA)

 

 

No cálculo das borboletas, Deus ousou.

Sua geometria diáfana, a leveza do traço

quase aéreo, a cor pudica e veloz

o indelével bordado, pureza extrema

irisado supremo, elementar, o vôo

alcandorado de regozijos, a severa

e ardilosa asa, a brisa

etérea e vagarosa onde paira

a delicadeza ampla que perpassa

e a pomposa melancolia quando vagueia

de rosa em rosa na ágil planície

entre dons silvestres e desatentas mulheres.

 

(Poema à borboleta, que tece

arabescos de cor no vento e mostra

que a beleza não é difícil).


 

CANTARES A SALOMÃO

 

I

 

 

EPIGRAMAS BEBIDOS NA FONTE DE SALOMÃO

 

 

Antes que a fecunda noite acabe

e as sombras debandem

antes que os aromas mirrem

e os desejos ceguem

vou ao monte de sândalo...

 

Vou à colina onde Vênus impera

no seu divino trono de relva

vou ao jardim vedado

onde a gazela do seio nasce

entre açucenas e orvalhos...

 

Vou à fonte proibida com minha sede

ouvir o incenso louco das ancas

domar as maçãs do pomar vermelho

sorver o potro vasto de teu corpo

sondar o tímido nardo do púbis...

 

Vou colher a mirra de teus beijos tenros

com minha surda boca camponesa

beber os jardins imaginários do ventre

tocar os perfumes e as peles tão puras

com poemas de cinamomos e rimas de romãs maduras...

 


 

VERÃO CORPO DA MULHER: ALMA DE ABISMOS, VÓRTICES DE ROSAS

 

1

 

VERÕES FURIOSOS

 

 

Demônios invernos

súcubos incunábulos lascivos habitam

sexo da mulher percorrendo

como correntes de elétrons loucos

hélices rondando músicas de tumulto

corpo da mulher ataviado

de gozos estupendos, volúpias, amapolas

encarnando-se círios enluarados vivos

nas pétalas da ama da mulher

nos atraem ornatos vermelhos

e outonos gozosos além de aréolas macias

aos seios da mulher nossas bocas

sitiadas por primaveras de orquídeas

e viris iluminações de amêndoa.

 

2

 

 

Moram no corpo e na alma da mulher

fantasias indecentes, clamores azuis

e feras o corpo

o lábio chamas intransponíveis.

 

A devorar nossos impunes escuros

e gritantes trevas exilar das veias

basta aceno ou olhar vital de uma mulher

balsamos e fúrias vivem do seu beijo

haustos de paz sucedem ao gozo.

 

Do riso lentos venenos

e sutis escapam.

 

Da voz emigram aves marinhas altas

do coração orações extáticas

aromas de criatura

fontes que Deus escondeu dos homens.

 

3

 

TODO SEDE

 

Todo fervoroso inverno

ronda  corpo tua concha (rósea)

mutilarei com alfanje macio do lábio

porque morro de tua sede

de teu louvor frio ao coração vivo

fruo de ti certeza da solidão

e da saliva do amanhecer hauro

teu fervor inteiro

livor de marfim e abeto

ganas de teu beijo e ágios

às finanças do ser beberei

porque tuas pétalas de palomas ganhei

e me alimento do lampejo

descuidado do teu olhar.

 

4

 

 

INCLINO-ME

 

 

Inclino-me

ao príncipe e à náusea

à saudade árida inclino-me

e ao mar sem comoção da vida

 

ao que de melhor engendre o nada

ou a garça louvarei (e ao amém)

 

porque sal da vida é frágil

e sede vence o prazer.

 

Porque amor é resto

do banquete que deuses abandonaram

lixo vertido como vômito

da mesada dos simpósios

(cuja toalha é mortalha do amor).

 


ASCESE É UMA MULHER – Poemas extraídos da obra Ascese é uma mulher (Criaart, 2022), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é composto pelo prefácio LAM (capa e ilustrações) Entre parêntesis: ascese, discernimento & a beleza ambígua das mulheres de Ismael Nery, mais os poemas de Escuras, Cantares a Salomão, Verão corpo da mulher: alma de abismos, vórtices de rosas, e Criticoutras com textos de Sébastien Joachim e Lúcio Ferreira. Veja mais aqui, aqui e aqui.