quinta-feira, julho 28, 2022

MONÓSTICOS ENTREOUTROS POEMAS, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

 

 

POEMINTUIÇÃO, OU UMA SARAIVADA DE MONÓSTICOS NA NORMOSE DANTANHO E DAGORA

  

Luiz Alberto Machado

 

Desde menino lá estava eu olhos vidrados no meio da feira dos sábados – prestava atenção ao improvisado das glosas nos motes dados aos repentistas e emboladores. Não fosse minha mãe me arrastar pelas orelhas, ali ficaria de esquecer tudo: era para carregar o peso das sacolas de compras, não para ficar entretido gastando as vistas, aboletado nas visões e de braços cruzados. Foi.

Aí, xexéu da cara lisa, imitava o que via e ouvia, sapecando umas quadrinhas infantis que findaram publicadas, pela iniciativa da saudosa professora do primário, Hilda Galindo Corrêa, no suplemento Júnior, do Diário de Pernambuco, editado pelo memorável jornalista Fernando Spencer. Ah, foi o bastante para me achar poeta de cetro e coroa. E era só um menino da beira do rio, avalie.

Foi só um começo, pois ao chegar aos quase 10 anos de idade, santa inocência: enchia o peito por bater o centro na atividade laboral de copista no registro de sentenças prolatadas pelo Juiz da Comarca, juntando o palavreado para mais versejar. Era como se tivesse achado uma botija, logo me agarrando aos dicionários e enciclopédias. A coisa estava ficando séria e, achando pouco, ainda agarrava uma viola de 10 cordas e me danava a compor umas modas estouvadas. Pronto! Agora era o sabiá da parada! Teria êxito nessa empreitada não fosse um irrisório detalhe: não sabia nem acordes nem cantar, tocava assim mesmo, de qualquer jeito, na intuição: telengotengo, larará.

Lá ia eu e o tempo foi passando. Como era tão desajeitado, a minha arte perturbava a paciência alheia: os meus esgoelados das tripas coração levou a uma medida coercitiva – infelizmente meu pai botou os pingos nos iis e tomou uma providência que quase deu certo: deu um puxavanque na viola e sacudiu na caixa dos meus peitos o Tratado de versificação, do Olavo Bilac & Guimarães Passos, com uma recomendação: Tome, aprenda direito! Assim foi, dia sim, outro também, lá vinha ele conferir: coçava o cocuruto e explicava tudo de novo.

Como eu misturava demais as coisas, deu-me, depois, o livro do Amorim Carvalho; também a Teoria do verso, do Rogério Chociay; mais uma Antologia dos Cantadores de Francisco Linhares e Otacílio Batista, e até Violeiros e cantadores, do Câmara Cascudo. Agora sim, era para aprender de mesmo. E finquei pé enrolado com hemistíquios, anaspésticos, aliterações, assonâncias, escansões.

A coisa parecia que ia, de fato. Tanto é que lá pelos 12 ou 13 anos de idade, por aí, entre uns e outros versos tresloucados, sapequei uns estrofados robustos e, entre eles, um que, à época, me deu a maior empáfia e cujo título era Fotogenia enfática de um mentecapto alógico. Repara só o desatino. Mais pavoneado fiquei porque foi mais tarde integralmente publicado no jornalzinho do Grêmio Cultural Castro Alves, do Colégio Diocesano, e, também, exposto pela professora Jessiva Oliveira, no mural da Biblioteca Municipal. Taí, pense num cabra pabo!

A rebuscada toda virou mania e refletiu nas escrevinhações posteriores e nas duas dúzias de músicas que fiz com o parceiro Fernandinho Melo Filho. As músicas eram ótimas, graças ao talento do parceiro, mas as letras – vôte! -, era cada caprichada parnasiana que, ao serem espremidas, só davam pechisbeques. E para encurtar a história: meus versos só serviam mesmo para mangação e pilhérias na cara pelos outros pariceiros, ou pelas costas depois de muita corda. Tinha que ter um limite: ou aprumasse cavoucando o talento, ou partisse para outra.

Persistia e toda verborragia adolescente não resistiu à leitura de Maiakovsky: Poeta é quem cria regras poéticas! E ele, que se considerava uma Nuvem de Calças, dizia mais no seu Como fazer versos: As regras não existem. Eita! Não entendia. E ficou mais embaralhado quando botei as vistas na Essência da Poesia do Eliot: A tarefa do poeta é levar a efeito uma revolução na linguagem. Pronto. E agora? Não adiantaram as leituras dos manuais de prosódia e califasia, dicionários de acordes, tomos poéticos como os de Jean Cohen, Delas & Filliolet, nem tratado de versificação que fosse: não levava jeito mesmo – muito embora insistisse publicando uns livrinhos com meus experimentos poéticos.

Por conta do desarrazoado, sempre me vi um poetastro, um poeta d’água doce. Salvei-me por ser um bom leitor. Vamos lá.

Pois bem.

O que estou querendo dizer de fato é que em todos os Tratados de Versificação o que se considerava era o metro, o ritmo e a rima, para saber que a poesia é a utilização da linguagem humana para fins estéticos. E os versos, também chamados de pé na versificação latina, ou de linha em outros compêndios, em conformidade com a contagem das sílabas podiam ser monossilábicos (como aquela Serenata Sintética do Cassiano Ricardo: Rua / torta. / Lua / morta. / Tua / porta), passando por redondilhas, até dodecassílabos e alexandrinos bárbaros. Também os regulares que podiam ser brancos, polimétricos e livres, por meio de rimas toantes e consoantes, agudas, graves ou esdrúxulas; rica ou pobre; internas e externas, cruzadas, emparelhadas, interpoladas, misturadas. Quanto às estrofes, contam os versos desde dísticos até décimas, com refrões, oitavas e outras tais. E os monósticos? Bem, esses são poemas de uma única estrofe, um único verso. Historicamente estão registrados como tendo surgido lá na mais remota antiguidade, usados nas inscrições como epitáfios nas tumbas e, depois, transformaram-se em epigramas, o que já é outra coisa. Onde tais monósticos? Vi em um ou outro da arquitetural poética do estadunidense E. E. Cummings, na radicalidade da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade, nos cleks do saudoso poeta Eno Teodoro Wanke, ou num ou noutro cometimento dos poetas das gerações brasileiras das décadas de 1960/70, como a Práxis de Chamie, a Tropicália e a Marginal.

Diante da pesquisada toda, o que ficou patenteado é que o Vital Corrêa de Araújo - pelo menos no meu modesto entendimento e salvo quaisquer futuras contestações -, é o autor que assumiu, inventou – pois o que era estrofe passou a ser poema - e mais produziu monósticos. Digo e provo. Tanto é que, nesta obra, selecionei, reuni e organizei os poemas dele por partes: primeiro, os Monósticos, em que fica demonstrado o poder de síntese do autor. Entre os tantos de bom calibre, destaco este: Melhor infinito silêncio que blasfêmia da má poesia. Outro que merece menção exemplar: Débeis ou ébrias sílabas convoco para arrimo de verso. Mais um: De sombras ainda inacabadas o poema. Tem mais, muito mais, todos com a sua marca de ousadia e competência. Há ainda para mencionar que nestes poemas estão grandiosas ideias rizomáticas com todas as suas extensões, camadas e dobras, expressando a capacidade de compreensão e interpretação plural do autor a respeito de tudo que está ao seu redor. É só um verso. Ou seja, uma estrofe. Melhor dizendo: um poema de único verso que traz subjacente uma rede múltipla de significações.

A segunda parte deste volume reúne os poemas de O futuro não é assírio, no qual uma experimental poética já se expressa nos primeiros versos do poema Assíria palavra: Reduzí povos a desertos / sarças a cinzas de luz / nações a pó / sopros a esgoto / almas a lama / deuses a gusa / uivos a silêncio úmido / palavras a greda /ouro a ganga pura. Todos os poemas desta parte estão emoldurados com a verve iconoclasta do autor, a exemplo da última estrofe do poema Abominação de Menassés (eis a dor de ser vão): Eis fruto da escolha de Deus / sina de escombro branco / restos de sátiros decapitados / incomensuráveis cacos do vaso eleito / eis margem úmida que se apaga com erro.

Na terceira parte estão os Poemoutros com poemas autoantropofágicos, inversos, imprevisíveis, inacabados, indadivosos, a destempos, ao inclemente leitor, necessário e com dísticos, uni-versos (estes quase todo compostos por outros monósticos), divergentes divagações, avulsos e notas devolutas: Após tudo que nos desacontecem (desacatem) / Fervorosamente espera o brasileiro pelo memento mori cósmico. / (Última e viável alternativa nossa). Também o libertário canto do “Poema não é o que diga poeta mas como disse”: Poema. Forma de nomear sem dizer. / Poema: forma de dar nome a dados da inconsciência. / Quanto mais insensata, melhor denominação. / Dê azo, nunca asas, à rima. / Livre-se de versos presos. / Estrofe pode ser jaula, rima amaina. / Satisfação fecal, bônus à criatura. / Chama farmacêutico. / Mal são.

Na quarta parte estão as Prosas Vitais, nas quais saliento inicialmente os Aconselhos, com este trecho distinguido: Abra ao acaso, pois são poemas todos ditados pelo cru acaso. A página do poema iniciado na folha anterior, leia. E nas Últimas líricas notícias, ele: Por tudo jaz num fluir de aguas do Rio Heráclito. É neste momento que ele define as linhas ilimítrofes da sua Poesia Absoluta (PA).

Por fim, a parte denominada de Palavroutras, reunindo textos críticos escritos por Sébastien Joachim, Maria de Lourdes Hortas, Hildeberto Barbosa Filho e Cláudio Veras, que se debruçaram e teceram considerações relevantes acerca do universo poético do autor.

Agora, sim.

Neste livro o autor expõe a sua voz ditada pela intuição (e pelo inconsciente, mais apropriadamente) experimentando o aleatório das ideias em todas as direções e momentos: decodifica o seu tempo e o agoramanhã. E o faz como quem chuta o pau da barraca: soltando as rédeas para emersão da ilógica interioridade com as aparentemente erráticas emoções superiores extasiantes. Na verdade sua poesia transcende o lógico e a taxonômica barreira do visível conformista e conservador, numa atitude livre de quem rompe todos os limites e regras, pelo fio da navalha na anárquica antilírica e randômica versagem, entre memórias de nenhum enredo.

O fenômeno literário da PA de VCA orbita a espontaneidade porque parece vinda da alma para fazer a ponte entre o que é de dentro e o que é de fora: a arte - a inexplicável centelha divina. Dela frui o poeta inquietantemente apaixonado pela vida: sim, paixão de quem respira, toma fôlego e expira o que vier e de roldão (como se o poeta psicografasse performático com a força superior de Nietzsche: a emissão poética instigante por faíscas e relâmpagos incontáveis). Porquanto pareça inexplicável, não se pode ignorar a PA - sobretudo nestes tempos escatológicos de barbárie e distopias, normose e podridão.

Com este livro o leitor terá a oportunidade de conhecer o experimentalismo do autor e a sua poesia anticonvencional por excelência: uma macroestrutura poemática singular.

  


MONÓSTICOS DE CARBONO

  

Herói: jamais feliz, só falaz.

 

Por que Deus haveria de não existir?

 

O que havia antes de Deus?

 

Fértil decadência brasileira.

 

Auroras trevas gestão. (No Brasil).

 

Sagrado corpo do espirito.

 

Pilha de incertezas. Bem brasileiras.

 

Não tema nova poesia.

 

O perigo na antiga mora.

 

Terra plana. Céu chato.

 

Até da certeza do axioma. Se duvida.

 

Todos os ácidos mais saborosos instauro.

 

É apenas um pronome tu. Eu sou vital.

 

Hiatos de sotaina. Párocos de amiantos azul.

 

O Instinto da morte nesse instante vive.

 

Rumor de rimas não houve ainda.

 

Ouvido que o capte. E decapite.

 

Lâmpada sepultada na cova escura da vida.

 

No cofre, usuras conquistadas. Só quistos.

 

Portos sepultos.

 

Estava na praça onde ovação urrava.

 

Estou a molhar-me de sol.

 

Nuvens parecem-me súbitos cones de fumaça.

 

Todos viemos do vértice do sal. Seu ventre.

 

Sobre relva, urdem o amanhecer. Sombras.

 

Algum, qualquer amanhecer. Vital.

 

 

O FUTURO NÃO É ASSÍRIO

  

Isaías, filho de Amós, orou ao Senhor

prédicas vazaram do seu coração altivo

voaram de sua garganta diatribes duras

perorou ao Senhor dos Exércitos metafísicos

aos comboios angélicos perorou.

Isaías lançou insultos aos soberanos

e o Senhor gostou, riu das lamúrias dos ímpios

gargalhadas de Javé vararam céus

tornaram-se lendas cósmicas.

A prece (trapo de esperança, súplica de prata)

que Ezequias fecundou Isaías conduziu

aos puros e fortes ouvidos do Senhor

oiças que reluziam como luz derramando-se

da assembleia das estrelas (bacia sublevada

de galáxias), magote de brilhos das sendas de Deus

arremessado no coração escuro do homem).

 

Javé na rédea dos exércitos da redenção

(cavalos do futuro disparados nas haras do Senhor)

respondendo a rebanho de dúvidas disse

ouro, especiarias, montes de mirra, vastas cideiras

aloés arguto, azeites finos te esperam

povo eleito do Senhor ungido de Sua glória inteira

e futuro farto de alegria, doçura, centeio, abelha, alfaces te espera.

(Enquanto o Senhor em teus olhos morar).

 

Prédicas de ira, aljava de concílios, buquês de relâmpagos

e coivara sem trégua, catervas de cólera, coleira de estrelas

foram atiradas da boca e dos olhos do Senhor

contra pérfidos incréus heréticos senhores blasfemos

(que vorazes adjetivos não hão de qualificar)

que não mais provarão delícias da terra

que não mais proverá sua sede viva.

  


NOTAS DEVOLUTAS

  

Lixo compósito e opulento vigia

Asquerosa riqueza dos homens mínimos

Acomodados a histéricas prosperidades...

 

Tudo isso enquanto cinzas bebam nuvens.

 

Muitos alguéns entre nós (tristes brasileiros)

Piamente acreditam que o estilo pictórico dos impressionistas

Se deve ao mistério produzido pelos olhos degenerados dos pintores.

 

Após tudo que nos desacontecem (desacatem)

Fervorosamente espera o brasileiro pelo memento mori cósmico.

(Última e viável alternativa nossa).

 

II

 

Vidro enevoado pelo sal

Vermelhos desejos encarniçando-se

Entre nonagenários pedregulhos.

 

Acordou de costas para o alvorecer

A discernir tênue no endiabrado fulgor

A afagar o litoral em esplendor.

 

Metálica litania ouvia-se

A lírico paraíso da palavra voltada

Como se o início do tempo continuasse.

 

Víboras adereçavam o monumento

Onde estátuas volúveis repousavam

Bustos enegrecidos de circunstancias.

 

Ensanguentadas aleluias debruçadas

Sobre gases e tombadilhos

À luz de neons enternecidos.

 

III

 

À espreita da lua vaga

A deitar-se no mar

Em sal crescente a amar.

 

Lençol esvoaçando

Como nuvem de verão

Anúncios do crepúsculo a deslisar.

 

Xale tricotado de azul

Pignoir de anjo anunciado

Por trás do poente aninhado.

 

E foi-se com martelo à mão esquecida

Dos olhos afiados como foice

A penetrar horizonte de eventos.

 

Barco abarrotado

De peças de lingerie de seda

Para anhos atrevidos (e naftalinas).

 

Arcas de tesouro enterrado nas lembranças

Em meio a lodaçais e febres úmidas

Pântanos e à deriva dos sutis instantes.

 


ACONSELHOS

 

 

Caso alguém, algum dia (ou noite) talvez

Abra livro meu da tal (e contaminante)

Poesia absoluta, duas hipóteses:

 

1 Caso folheio – o ao acaso e se depare com algo cáustico em palavras, e pense: o que disso é isso... não se culpe, de imediato, quase automático e precisamente feche-o, e tudo voltará em paz a seu (tolo) espírito.

 

2 Caso decida ler ( o que é muito nem improvável, mesmo impossível), nunca comece jamais pelo começo (o que todo mundo, os 9, 10 bilhões de seres vagando por aí, faz.

Menos eu e agora você.

Abra ao acaso, pois são poemas todos ditados pelo cru acaso. A página do poema iniciado na folha anterior, leia.

Como é poema absoluto não fará diferença.

Inclusive, eu mesmo, quando consigo a necessária coragem para me ler algo que procriei, sempre leio do fim de cada poema para o começo, pois facilita mais o entendê-lo.

Também é de bom tom nunca terminar a leitura dum poema meu, pois, para mim, cada poema (dos quase ou mais de 5 mil que engendrei) é (está, será sempre) inacabado... e inacabável.

Então, má leitura, engasgue sua mente, gaste sua preciosa energia neural... e cure-se, pois ler VCA cura AVC e cerca de 87 doenças.

 


MONÓSTICOS ENTREOUTROS POEMAS – Poemas extraídos da obra Monósticos entroutros poemas (Criaart, 2022), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é composto pelo prefácio LAM (capa e ilustrações) Poemintuição, ou uma saraivada de monósticos na normose dantanho e dagora, mais uma seleção de monósticos, Poemas Vitais e Palavroutras com Sébastian Joachin, Maria de Lourdes Hortas, Hildeberto Barbosa Filho e Carlos Veras. Veja mais aqui, aqui e aqui.