POEMINTUIÇÃO,
OU UMA SARAIVADA DE MONÓSTICOS NA NORMOSE DANTANHO E DAGORA
Luiz Alberto Machado
Desde menino
lá estava eu olhos vidrados no meio da feira dos sábados – prestava atenção ao
improvisado das glosas nos motes dados aos repentistas e emboladores. Não fosse
minha mãe me arrastar pelas orelhas, ali ficaria de esquecer tudo: era para
carregar o peso das sacolas de compras, não para ficar entretido gastando as
vistas, aboletado nas visões e de braços cruzados. Foi.
Aí, xexéu da
cara lisa, imitava o que via e ouvia, sapecando umas quadrinhas infantis que
findaram publicadas, pela iniciativa da saudosa professora do primário, Hilda
Galindo Corrêa, no suplemento Júnior,
do Diário de Pernambuco, editado pelo memorável jornalista Fernando Spencer.
Ah, foi o bastante para me achar poeta de cetro e coroa. E era só um menino da
beira do rio, avalie.
Foi só um
começo, pois ao chegar aos quase 10 anos de idade, santa inocência: enchia o
peito por bater o centro na atividade laboral de copista no registro de
sentenças prolatadas pelo Juiz da Comarca, juntando o palavreado para mais
versejar. Era como se tivesse achado uma botija, logo me agarrando aos
dicionários e enciclopédias. A coisa estava ficando séria e, achando pouco,
ainda agarrava uma viola de 10 cordas e me danava a compor umas modas
estouvadas. Pronto! Agora era o sabiá da parada! Teria êxito nessa empreitada
não fosse um irrisório detalhe: não sabia nem acordes nem cantar, tocava assim
mesmo, de qualquer jeito, na intuição: telengotengo, larará.
Lá ia eu e o
tempo foi passando. Como era tão desajeitado, a minha arte perturbava a
paciência alheia: os meus esgoelados das tripas coração levou a uma medida
coercitiva – infelizmente meu pai botou os pingos nos iis e tomou uma
providência que quase deu certo: deu um puxavanque na viola e sacudiu na caixa
dos meus peitos o Tratado de versificação,
do Olavo Bilac & Guimarães Passos, com uma recomendação: Tome, aprenda
direito! Assim foi, dia sim, outro também, lá vinha ele conferir: coçava o
cocuruto e explicava tudo de novo.
Como eu
misturava demais as coisas, deu-me, depois, o livro do Amorim Carvalho; também a
Teoria do verso, do Rogério Chociay; mais
uma Antologia dos Cantadores de Francisco Linhares e Otacílio Batista, e até Violeiros e cantadores, do Câmara
Cascudo. Agora sim, era para aprender de mesmo. E finquei pé enrolado com
hemistíquios, anaspésticos, aliterações, assonâncias, escansões.
A coisa
parecia que ia, de fato. Tanto é que lá pelos 12 ou 13 anos de idade, por aí,
entre uns e outros versos tresloucados, sapequei uns estrofados robustos e,
entre eles, um que, à época, me deu a maior empáfia e cujo título era Fotogenia enfática de um mentecapto alógico.
Repara só o desatino. Mais pavoneado fiquei porque foi mais tarde integralmente
publicado no jornalzinho do Grêmio Cultural Castro Alves, do Colégio Diocesano,
e, também, exposto pela professora Jessiva Oliveira, no mural da Biblioteca
Municipal. Taí, pense num cabra pabo!
A rebuscada
toda virou mania e refletiu nas escrevinhações posteriores e nas duas dúzias de
músicas que fiz com o parceiro Fernandinho Melo Filho. As músicas eram ótimas,
graças ao talento do parceiro, mas as letras – vôte! -, era cada caprichada
parnasiana que, ao serem espremidas, só davam pechisbeques. E para encurtar a
história: meus versos só serviam mesmo para mangação e pilhérias na cara pelos
outros pariceiros, ou pelas costas depois de muita corda. Tinha que ter um
limite: ou aprumasse cavoucando o talento, ou partisse para outra.
Persistia e
toda verborragia adolescente não resistiu à leitura de Maiakovsky: Poeta é quem cria regras poéticas! E
ele, que se considerava uma Nuvem de Calças, dizia mais no seu Como fazer versos: As regras não existem. Eita! Não entendia. E ficou mais embaralhado
quando botei as vistas na Essência da
Poesia do Eliot: A tarefa do poeta é
levar a efeito uma revolução na linguagem. Pronto. E agora? Não adiantaram
as leituras dos manuais de prosódia e califasia, dicionários de acordes, tomos
poéticos como os de Jean Cohen, Delas & Filliolet, nem tratado de
versificação que fosse: não levava jeito mesmo – muito embora insistisse
publicando uns livrinhos com meus experimentos poéticos.
Por conta do
desarrazoado, sempre me vi um poetastro, um poeta d’água doce. Salvei-me por
ser um bom leitor. Vamos lá.
Pois bem.
O que estou
querendo dizer de fato é que em todos os Tratados de Versificação o que se
considerava era o metro, o ritmo e a rima, para saber que a poesia é a
utilização da linguagem humana para fins estéticos. E os versos, também
chamados de pé na versificação latina, ou de linha em outros compêndios, em
conformidade com a contagem das sílabas podiam ser monossilábicos (como aquela
Serenata Sintética do Cassiano Ricardo: Rua
/ torta. / Lua / morta. / Tua / porta), passando por redondilhas, até
dodecassílabos e alexandrinos bárbaros. Também os regulares que podiam ser
brancos, polimétricos e livres, por meio de rimas toantes e consoantes, agudas,
graves ou esdrúxulas; rica ou pobre; internas e externas, cruzadas,
emparelhadas, interpoladas, misturadas. Quanto às estrofes, contam os versos
desde dísticos até décimas, com refrões, oitavas e outras tais. E os monósticos?
Bem, esses são poemas de uma única estrofe, um único verso. Historicamente
estão registrados como tendo surgido lá na mais remota antiguidade, usados nas
inscrições como epitáfios nas tumbas e, depois, transformaram-se em epigramas,
o que já é outra coisa. Onde tais monósticos? Vi em um ou outro da arquitetural
poética do estadunidense E. E. Cummings, na radicalidade da Poesia Pau-Brasil
de Oswald de Andrade, nos cleks do
saudoso poeta Eno Teodoro Wanke, ou num ou noutro cometimento dos poetas das
gerações brasileiras das décadas de 1960/70, como a Práxis de Chamie, a
Tropicália e a Marginal.
Diante da
pesquisada toda, o que ficou patenteado é que o Vital Corrêa de Araújo - pelo
menos no meu modesto entendimento e salvo quaisquer futuras contestações -, é o
autor que assumiu, inventou – pois o que era estrofe passou a ser poema - e mais
produziu monósticos. Digo e provo. Tanto é que, nesta obra, selecionei, reuni e
organizei os poemas dele por partes: primeiro, os Monósticos, em que fica
demonstrado o poder de síntese do autor. Entre os tantos de bom calibre,
destaco este: Melhor infinito silêncio
que blasfêmia da má poesia. Outro que merece menção exemplar: Débeis ou ébrias sílabas convoco para arrimo
de verso. Mais um: De sombras ainda
inacabadas o poema. Tem mais, muito mais, todos com a sua marca de ousadia
e competência. Há ainda para mencionar que nestes poemas estão grandiosas
ideias rizomáticas com todas as suas extensões, camadas e dobras, expressando a
capacidade de compreensão e interpretação plural do autor a respeito de tudo
que está ao seu redor. É só um verso. Ou seja, uma estrofe. Melhor dizendo: um
poema de único verso que traz subjacente uma rede múltipla de significações.
A segunda
parte deste volume reúne os poemas de O
futuro não é assírio, no qual uma experimental poética já se expressa nos
primeiros versos do poema Assíria palavra:
Reduzí povos a desertos / sarças a cinzas
de luz / nações a pó / sopros a esgoto / almas a lama / deuses a gusa / uivos a
silêncio úmido / palavras a greda /ouro a ganga pura. Todos os poemas desta
parte estão emoldurados com a verve iconoclasta do autor, a exemplo da última
estrofe do poema Abominação de Menassés
(eis a dor de ser vão): Eis fruto da escolha de Deus / sina de
escombro branco / restos de sátiros decapitados / incomensuráveis cacos do vaso
eleito / eis margem úmida que se apaga com erro.
Na terceira
parte estão os Poemoutros com poemas
autoantropofágicos, inversos, imprevisíveis, inacabados, indadivosos, a
destempos, ao inclemente leitor, necessário e com dísticos, uni-versos (estes
quase todo compostos por outros monósticos), divergentes divagações, avulsos e
notas devolutas: Após tudo que nos
desacontecem (desacatem) / Fervorosamente espera o brasileiro pelo memento mori
cósmico. / (Última e viável alternativa nossa). Também o libertário canto
do “Poema não é o que diga poeta mas como disse”: Poema. Forma de nomear sem dizer. / Poema: forma de dar nome a dados da
inconsciência. / Quanto mais insensata, melhor denominação. / Dê azo, nunca asas,
à rima. / Livre-se de versos presos. / Estrofe pode ser jaula, rima amaina. /
Satisfação fecal, bônus à criatura. / Chama farmacêutico. / Mal são.
Na quarta
parte estão as Prosas Vitais, nas
quais saliento inicialmente os Aconselhos, com este trecho distinguido: Abra ao acaso, pois são poemas todos ditados
pelo cru acaso. A página do poema iniciado na folha anterior, leia. E nas
Últimas líricas notícias, ele: Por tudo
jaz num fluir de aguas do Rio Heráclito. É neste momento que ele define as
linhas ilimítrofes da sua Poesia Absoluta (PA).
Por fim, a
parte denominada de Palavroutras,
reunindo textos críticos escritos por Sébastien Joachim, Maria de Lourdes
Hortas, Hildeberto Barbosa Filho e Cláudio Veras, que se debruçaram e teceram
considerações relevantes acerca do universo poético do autor.
Agora, sim.
Neste livro o
autor expõe a sua voz ditada pela intuição (e pelo inconsciente, mais
apropriadamente) experimentando o aleatório das ideias em todas as direções e
momentos: decodifica o seu tempo e o agoramanhã. E o faz como quem chuta o pau
da barraca: soltando as rédeas para emersão da ilógica interioridade com as
aparentemente erráticas emoções superiores extasiantes. Na verdade sua poesia
transcende o lógico e a taxonômica barreira do visível conformista e
conservador, numa atitude livre de quem rompe todos os limites e regras, pelo
fio da navalha na anárquica antilírica e randômica versagem, entre memórias de
nenhum enredo.
O fenômeno
literário da PA de VCA orbita a espontaneidade porque parece vinda da alma para
fazer a ponte entre o que é de dentro e o que é de fora: a arte - a
inexplicável centelha divina. Dela frui o poeta inquietantemente apaixonado
pela vida: sim, paixão de quem respira, toma fôlego e expira o que vier e de
roldão (como se o poeta psicografasse performático com a força superior de
Nietzsche: a emissão poética instigante por faíscas e relâmpagos incontáveis).
Porquanto pareça inexplicável, não se pode ignorar a PA - sobretudo nestes
tempos escatológicos de barbárie e distopias, normose e podridão.
Com este
livro o leitor terá a oportunidade de conhecer o experimentalismo do autor e a
sua poesia anticonvencional por excelência: uma macroestrutura poemática
singular.
MONÓSTICOS
DE CARBONO
Herói: jamais
feliz, só falaz.
Por que Deus
haveria de não existir?
O que havia
antes de Deus?
Fértil
decadência brasileira.
Auroras
trevas gestão. (No Brasil).
Sagrado corpo
do espirito.
Pilha de
incertezas. Bem brasileiras.
Não tema nova
poesia.
O perigo na
antiga mora.
Terra plana.
Céu chato.
Até da
certeza do axioma. Se duvida.
Todos os
ácidos mais saborosos instauro.
É apenas um
pronome tu. Eu sou vital.
Hiatos de
sotaina. Párocos de amiantos azul.
O Instinto da
morte nesse instante vive.
Rumor de
rimas não houve ainda.
Ouvido que o
capte. E decapite.
Lâmpada
sepultada na cova escura da vida.
No cofre,
usuras conquistadas. Só quistos.
Portos
sepultos.
Estava na
praça onde ovação urrava.
Estou a
molhar-me de sol.
Nuvens
parecem-me súbitos cones de fumaça.
Todos viemos
do vértice do sal. Seu ventre.
Sobre relva,
urdem o amanhecer. Sombras.
Algum,
qualquer amanhecer. Vital.
O
FUTURO NÃO É ASSÍRIO
Isaías, filho
de Amós, orou ao Senhor
prédicas
vazaram do seu coração altivo
voaram de sua
garganta diatribes duras
perorou ao
Senhor dos Exércitos metafísicos
aos comboios
angélicos perorou.
Isaías lançou
insultos aos soberanos
e o Senhor
gostou, riu das lamúrias dos ímpios
gargalhadas
de Javé vararam céus
tornaram-se
lendas cósmicas.
A prece
(trapo de esperança, súplica de prata)
que Ezequias
fecundou Isaías conduziu
aos puros e
fortes ouvidos do Senhor
oiças que
reluziam como luz derramando-se
da assembleia
das estrelas (bacia sublevada
de galáxias),
magote de brilhos das sendas de Deus
arremessado
no coração escuro do homem).
Javé na rédea
dos exércitos da redenção
(cavalos do
futuro disparados nas haras do Senhor)
respondendo a
rebanho de dúvidas disse
ouro,
especiarias, montes de mirra, vastas cideiras
aloés arguto,
azeites finos te esperam
povo eleito
do Senhor ungido de Sua glória inteira
e futuro
farto de alegria, doçura, centeio, abelha, alfaces te espera.
(Enquanto o
Senhor em teus olhos morar).
Prédicas de
ira, aljava de concílios, buquês de relâmpagos
e coivara sem
trégua, catervas de cólera, coleira de estrelas
foram
atiradas da boca e dos olhos do Senhor
contra
pérfidos incréus heréticos senhores blasfemos
(que vorazes
adjetivos não hão de qualificar)
que não mais
provarão delícias da terra
que não mais
proverá sua sede viva.
NOTAS
DEVOLUTAS
Lixo
compósito e opulento vigia
Asquerosa
riqueza dos homens mínimos
Acomodados a
histéricas prosperidades...
Tudo isso
enquanto cinzas bebam nuvens.
Muitos
alguéns entre nós (tristes brasileiros)
Piamente
acreditam que o estilo pictórico dos impressionistas
Se deve ao
mistério produzido pelos olhos degenerados dos pintores.
Após tudo que
nos desacontecem (desacatem)
Fervorosamente
espera o brasileiro pelo memento mori
cósmico.
(Última e
viável alternativa nossa).
II
Vidro
enevoado pelo sal
Vermelhos
desejos encarniçando-se
Entre
nonagenários pedregulhos.
Acordou de
costas para o alvorecer
A discernir
tênue no endiabrado fulgor
A afagar o
litoral em esplendor.
Metálica
litania ouvia-se
A lírico
paraíso da palavra voltada
Como se o
início do tempo continuasse.
Víboras
adereçavam o monumento
Onde estátuas
volúveis repousavam
Bustos
enegrecidos de circunstancias.
Ensanguentadas
aleluias debruçadas
Sobre gases e
tombadilhos
À luz de
neons enternecidos.
III
À espreita da
lua vaga
A deitar-se
no mar
Em sal
crescente a amar.
Lençol
esvoaçando
Como nuvem de
verão
Anúncios do
crepúsculo a deslisar.
Xale
tricotado de azul
Pignoir de
anjo anunciado
Por trás do
poente aninhado.
E foi-se com
martelo à mão esquecida
Dos olhos
afiados como foice
A penetrar
horizonte de eventos.
Barco
abarrotado
De peças de
lingerie de seda
Para anhos
atrevidos (e naftalinas).
Arcas de
tesouro enterrado nas lembranças
Em meio a
lodaçais e febres úmidas
Pântanos e à
deriva dos sutis instantes.
ACONSELHOS
Caso alguém,
algum dia (ou noite) talvez
Abra livro
meu da tal (e contaminante)
Poesia
absoluta, duas hipóteses:
1 Caso
folheio – o ao acaso e se depare com algo cáustico em palavras, e pense: o que
disso é isso... não se culpe, de imediato, quase automático e precisamente
feche-o, e tudo voltará em paz a seu (tolo) espírito.
2 Caso decida
ler ( o que é muito nem improvável, mesmo impossível), nunca comece jamais pelo
começo (o que todo mundo, os 9, 10 bilhões de seres vagando por aí, faz.
Menos eu e
agora você.
Abra ao
acaso, pois são poemas todos ditados pelo cru acaso. A página do poema iniciado
na folha anterior, leia.
Como é poema
absoluto não fará diferença.
Inclusive, eu
mesmo, quando consigo a necessária coragem para me ler algo que procriei,
sempre leio do fim de cada poema para o começo, pois facilita mais o
entendê-lo.
Também é de
bom tom nunca terminar a leitura dum poema meu, pois, para mim, cada poema (dos
quase ou mais de 5 mil que engendrei) é (está, será sempre) inacabado... e
inacabável.
Então, má
leitura, engasgue sua mente, gaste sua preciosa energia neural... e cure-se,
pois ler VCA cura AVC e cerca de 87 doenças.
MONÓSTICOS
ENTREOUTROS POEMAS –
Poemas extraídos da obra Monósticos entroutros poemas (Criaart, 2022), do
escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital
Corrêa de Araújo, que é composto pelo prefácio LAM (capa e ilustrações) Poemintuição,
ou uma saraivada de monósticos na normose dantanho e dagora, mais uma seleção
de monósticos, Poemas Vitais e Palavroutras com Sébastian Joachin, Maria de
Lourdes Hortas, Hildeberto Barbosa Filho e Carlos Veras. Veja mais aqui, aqui e
aqui.