A
PALAVRA CALADA QUANDO ESBORRA DE DENTRO É CANTO
Luiz Alberto Machado
Uma coisa: ao
ler Perls pela primeira vez escarafunchei. Sim. Estava eu um tanto dividido com
os equívocos que todos fizemos da interpretação socrática, ou seja, claudicando
entre razão-emoção e, ainda por cima, enxergando um planeta igualmente separado
pelo que se convencionou por ocidente-oriente. Era como se visualizasse o
planeta com o seu corpus callosum
amputado. Sim, aquele corpo que é formado por fibras e que está localizado no
fundo da fissura sagital, ou inter-hemisférica, associando os dois hemisférios
cerebrais; e que penetra áreas simétricas do córtex de cada um deles, com a
função de transferir informações de um para o outro, permitindo, portanto, os
resultados do trabalho diverso. Por conta disso, trata-se de uma estrutura
cerebral que é própria dos mamíferos e que funciona como se fosse uma ponte desempenhando
importante papel nas funções psíquicas gnósicas e da fala. Uma vez lesionado o
corpo caloso evidencia falha mental geral, acarretando na maioria das vezes
alterações psíquicas, perturbações de pensamento, alterações do tônus,
desinteresse com o mundo exterior, entre outros sintomas, em conformidade com a
literatura neurocientífica. Se, porventura, tiver de ocorrer uma intervenção
cirúrgica, o procedimento interrompe a troca de informações entre os dois
hemisférios cerebrais, desencadeando a síndrome de desconexão
inter-hemisférica. Ou seja, aquele que tem lesionado ou retirado o corpo caloso
pode se tornar incapaz de se comunicar, uma vez que as atividades psicomotoras
ocorrem por conta da interação entre ambos os hemisférios, a exemplo de tocar
algo (o direito) e falar o nome identificando-o (o esquerdo). Inclusive, a
agenesia, ou seja, a sua ausência, está associada com aproximadamente 25 síndromes
genéticas, erros inatos e metabolismo. Uma desconexão inter-hemisférica (DI)
traz notórios prejuízos nas funções psíquicas, de linguagem, de apraxia e
gnosia. Pois é. Foi assim que enxerguei o planeta com a dicotomia Ocidente-Oriente,
naquela época. Tudo isso acrescido ao bombardeio de situações maniqueístas no
discernimento já fragmentado por toda sorte de modas e ideologias
especializadas e em detrimento das generalizações.
Graças ao
criador da Gestalt terapia, estive
dentro e fora da lata de lixo: escrevi tudo que queria que fosse escrito.
Vali-me, tal como ele e seus colaboradores, das leituras que fizera de Smuts,
Kierkegaard, Buber e outros. Ou seja: um retorno às origens a partir da
alteridade, da transcendência do cotidiano e do balanço existencial. Em suma:
limpei a minha chaminé. E tudo ocorreu com certa facilidade, vez que as ideias
do autor em questão também havia sido influenciado pelo Zeitgeist de então: a Contracultura, a Bauhaus, o Teatro
Expressionista de Max Reinhardt e o movimento hippie. Quanta coincidência! E
isso era como se eu estivesse batendo o mais solto papo legal com um amigo ao
lado. Tanto que era como se Perls cochichasse confidenciando ao meu ouvido:
"É lindo ver como escrever ajuda! Eu
havia tentado fazer da psicanálise o meu lar espiritual, a minha religião".
Oxe! Aí eu metia o verbo e tome garatuja para cima, nada mais incentivador.
Coincidentemente,
o encontro com a obra dele se deu justo quando eu havia concluído um estudo de
Laurence Bardin: a análise de conteúdo
procura compreender aquilo que está por trás das palavras às quais se debruça.
Além disso, havia o alerta de Erich Fromm no pé do maluvido: Quer se estude a sociedade ou os indivíduos,
sempre se está lidando com seres humanos, e isso quer dizer que se lida com
motivações inconscientes deles; não se pode separar o homem como indivíduo do
homem como participante social – e, se a gente o faz, acaba não entendendo
nenhum. E não deu outra, fui de cara com Allan W. Watts: a psicoterapia
oriental e ocidental. Foi aí que juntei cada hemisfério na ideia e os reatei,
assim é que deveria ficar para poder então dizer: uma Terra só. Com isso, aprendia
a diferença entre entender (latim intendo,
como estender, pretender, estar atento), e compreender (do latim comprehendo, conter em si, abranger,
encerrar, conter, entender, perceber), quando o segundo é um processo
psicológico e que, conforme a taxonomia de Bloom, é uma das habilidades do
domínio cognitivo que solicitam a interpretação de um contexto, ou imprimem, a
ele, um significado. Tudo isso, acima de tudo, bem clarificado com as leituras
de O mistério da compreensão, de
Krishnamurti. Em suma, pelo menos parecia que havia mesmo aprendido com a
faxina de ter que regularmente limpar a minha chaminé. Tá. E o que tem a ver o
procto com os fundilhos das calças? Explico – vá juntando os cacos de doidices
que vai dar num quebra-cabeça quiçá interessante. Ou não. Vamos lá.
Foi
justamente por essa época – pelo início dos anos 1980 -, que li pela primeira vez
o poema A palavra calada, do então
recém-lançado livro Burocracial
(Pirata, 1982), de VCA. Justo na ocasião em que estava eu às voltas com acordes
e solfejos sobre o poema A lavra da vida,
do também poetamigo Jaci Bezerra. Por conta disso esqueci o poema de VCA e
musiquei o poema do Jaci.
Passou o
tempo e só agora reencontrei o poema: desfibra a palavra quando cala / quando o caule da árvore
da fala / que é vento verbo e alicerce / anoitece / quando as seivas todas são
sugadas / e o trêmulo das folhas proibido / quando os discursos são lacrados /
dentro das praças sitiadas / e o som negado aos ouvidos / e o grito cortado na
garganta / e o medo aberto no meio abrupto do dia / desfibra a palavra quando a
árvore da fala / e os frutos dos gritos são demolidos / pelos silêncios vivos. E era como se vivesse agora o igualmente vivido naquela
época, sem tirar nem pôr.
Desta
feita, não passei batido: peguei o violão na coxa, danei os dedos e pei: lá,
ré, sol... E pá: fusas, colcheias, a goela seca e um gole, teibei: musiquei na
hora. Pronto. Corri e mostrei ao VCA no gravador: laralilará. Ele se espantou e
deu uma mexida pegando algo e me entregou – de novo- outro saco com um tanto de
manuscritos que penei para lê-los. Li e tive que comer bosta de cigano e merda
do garrote Jauaraicica
para adivinhar os garranchos. Deu trabalho, mas como fui copista cartorário
desde menino, decifrei tudo, juntei, selecionei, ordenei e, por fim, o
resultado? Organizei, aí está: Líricas
Chacinárias. Isto mesmo, a me certificar: uma voz, uma literatura. Só não
previa que teria que prefaciar o volume – lá estava eu de novo e sempre na
minha falta de categoria: ter de apresentar aquele que é mais famoso do que eu.
Como é que pode? Destá.
Tentando
cumprir a minha parte, aqui declaro: o título logo me trouxe todas as supostas
chacinas contra excluídos, vulneráveis e hipossuficientes, um genocídio
programado a ditar dissensões com o azedume da defecção tão vigente e, ainda por
cima, sob uma implacável pandemia.
Do
outro lado, a poesia de VCA com as suas investigações líricas: A poesia cria o imprevisível, o ainda não dito,
estimula o invisível patente, surpreende-nos, confunde-nos, apavora o humano,
dilatando seus limites. Era ele sempre de pé e vociferando: Livre das peias dos significados precisos,
óbvios ululantes, o poema amplia a significância, porque abre novos meandros e
vertentes desconhecidos do entendimento. O dínamo da poesia é a expressão, não
a informação, é a forma, não a mensagem pura, em si, mas a expressão, o modo
particular ‘’poético’’ desta expressão. E mais com um recado em riste: Leitor, que arque com essa mediação formal,
que produza uma concepção das coisas, do ser, do mundo, da vida, capaz de ir ao
íntimo da mente, para desse dínamo extrair os dados que construíram o poema,
será privilegiado com a captação da beleza da palavra.
Lá para
frente encarei o seu poema “A mudança é nociva”: No poema, o abstrato se concretiza, posto ele não ser algo particular,
porém singular encadeamento de palavras que não buscam dar sentido ao mundo ou
a si, mas expressá-los. [...] Poema é
algo vindo do âmago da palavra como fim (e não meio), que diz respeito ao
caráter verbal do mundo concebido pelo humano. [...]. E diz tudo isso como
quem sabe usar o arsenal dos meios retóricos
dispostos pelo cometimento poético, muito à vontade para uso dos níveis fônicos
e semânticos propostos por Dufrenne. Como se tal fosse qual Valéry no seu Je disais quelquefois à
Stéphane Mallarmé: Não
há sentido, não há ideia. Parecia mais quem seguisse à risca o Breton do Manifeste du Surréalisme: Para mim, não escondo, a imagem mais forte é
aquela que apresenta o mais elevado grau de arbitrariedade. Esse é o VCA,
singular e plural.
E
este é o livro que, na primeira parte - a que dá o título ao volume -, ele traz
poemas que servem de introito e interprólogos para ser e estar no nome e nas
nascentes ao meio dia, meditações e o escambau, palavras que se perderam e o
fez diante da morte tropical com o confessional dos velórios brasileiros, a
usura e a verdade.
A
segunda parte é um longo poema denominado “Cântico novo”: sou poeta atravessado da espessura dos séculos / e
das amêndoas do desejo mordido / sou poeta minha clava a palavra em riste /
minha fama corre tanto os rios do paraíso / nas veias do futuro íngreme do meu
povo / meu verbo de sopro impregna a página do mundo / meu peito estoura, a
boca se levanta... Um poema de fôlego, de quem sabe o que faz e
diz.
Na
terceira parte, “Poemas para azinhavre do espírito”, na qual o poema “Alma e
nada (sobre o amor)”, dá o tom original do poeta: O
Amor ilusão da alma. / Provisória estação da viagem para o nada. / O Amor é
coisa do corpo / (não da alma)... / e mais nada.
Em
seguida, os poemas reunidos sob a titularia de “Átomos & desentitulados”,
entre os quais destaco o trecho: Rebanhos de
água em currais de ondas / léguas líquidas anotadas do convés / incomensuráveis
azuis me devorando a visão / a olhar o vê do vórtice da proa / me vi imerso no
oceano de mim. Além disso com poemas realçando o vigoroso poder de síntese do poeta,
distribuídos entre versos e poemas que se tornam monósticos – aliás, criação
sua ao que se considerava até então como modalidade de estrofe.
Na
quarta parte, Espíritoanálise: prosas vitais, em que o poeta-interator
elucubra, carbura e rumina, tout a court,
suas investigações poético-filosóficas: ... Eu
vim do útero de Deográcia (da graça de Deus). Útero inóspito, mas vital. Vim
dele. Para quê. Para quem? Afinal. Não para mim. Vim para (o) outro. Pois não
sou. Sou nada (menos nada). Nada sou. Sendo. Assim. Tal útero, na data tal e
eis eu. Fruto da maiêutica natural. Ou de um útero eleata, talvez. O poeta
brinca com a prosa e se confirma tanto quanto.
Por
fim, “Ritmos cíclicos”, reunindo apreciações e análises críticas de ninguém
mais que Sébastien Joachim, Cesar Leal, Cláudio Veras, Yannick Clemon e Anônimo
Lilás, nomes representativos da crítica literária.
Pronto.
Aí está mais
uma obra do VCA: como eu disse, pleno. Sim, aquele que seguiu Freud: a conquista progressiva do Id e que foi além de Lacan, rumo
ao inconsciente individual-coletivo junguiano. VCA está aí: enxuto, com cara de
menino que vai viver uns 200 anos, oxalá, escrevendo que só, atravessando dias
e noites na sua melhor tradução.
Com
esta publicação um outro dado: são ao todo, ao que parece, uns 33 livros
publicados de poesias, contando com os que tiveram seleção e organização
do poeta e professor Admmauro Gommes, afora outros publicados com ensaios e
crítica literária (eu mesmo já perdi a conta!). E, pelo jeito, tem espaço para
mais, muito mais – uns 3 mil livros, ou milhões, acho. VCA é uma usina que não
só provoca AVC nos normóticos, como salva todos os leitores com a proposta de
Livroterapia.
O
que dizer mais de Líricas Chacinárias? Ora, leia – no mínimo ocorrerão muitas sinapses
neuronais; ou, no máximo ao infinito corre-se o risco mesmo é de viver.
Aproveite.
SOBRE
LÍRICAS CHACINÁRIAS
Chacineiro é
um cara muito delicado sobretudo.
Tipo Hércules
de gravata não borboleta.
Todo
chacineiro é absoluto
em sua faina
sangrenta elogiável.
Dedicado a
entranhas (bovinas e humanas).
A humanidade
da chacina é indiscutível.
E
especialmente lírica, mutatis mutandis.
Este poema
equivale a um tratado febril
da
chacineirista arte vândala.
A chacinaria
moderna contém
lapsos e
repentes do puro sangue
a derramar-se
de vísceras abertas.
É profissão
que incita todo
o mais fundo
lirismo real da vida.
Sua função
aporta judiciosos atos íntimos
das viscerais
entranhas oriundos.
Desse atro
mas sublime oficio toda charcuteria nasce.
das salmouras
do instinto.
Da desvascularização
do carnal vazio.
Da
salarização de dores ultrassonicas
do mais
íntimo do boi obtidas.
Tripas e
ossos das brasileiras sopas
e artificiais
graxas brotam de chacinas.
Foices são
afiados signos dessa poesia viva.
Que uiva
bovino coração adentro.
Hábeis
trituradores tal lirismo favorecem.
Aparatos de
punhais facilitam
eclosão de
salsichas.
Rotativas
cortam a carne em polvilhos.
Elevados
bordos da gamela (vaso do sangue)
movimentam o
vaivém.
(Daí, o
Rotary e a mística sanguínea).
CÂNTICO NOVO
(fragmento)
Uivam nômades naus e fundos marinheiros
porque foi devastada a terra
cujos solitários juncos soprastes
a ilha de Cetim foi desolada
e reduzida à cinza de uma quarta-feira seca
eivada de árvores centenárias e saudosas
tuas longas pernas eram cabos
cobertos de bosques ubertosos e enlouquecidos
cujos fêmures tanto te ornaram
teus mastros morreram corroídos de ventos.
Tiro fora teu nome fenício
berço do empório marinho
ninho das fortalezas do chão
que se gloriava de tua idade tamanha
cujas raízes abocanharam
três séculos antes de Cristo.
Mas, Tiro, já não tens cintura ou amparo.
O Senhor abalará teus alicerces e edifícios.
Tuas cidadelas serão ajoelhadas.
Teus estandartes morderão o pó.
Teu reino tremerá, irada Assíria
filha de Sídon, a vertiginosa, pecadora
esquizofrênica Assíria, louca filha de assur.
Tuas naus uivam do temor do Senhor.
Deus não se apiedará de tua longa desgraça
traidora infrutífera, cadela do beleleu.
Hoje somente uma meretriz sem lua
com uma cítara de ossos
canta teus destroços.
Teus insensatos punhos hão de perdurar na sombra.
Vinho amaro corroerá teu lábio.
Clamor de pranto cobrirá tua alegria.
(...)
PARA
NÃO PERDER A ALMA
(DORES
NÃO ADORO
MESMO
QUE DUREM)
Douras
pílulas
para pupila
do futuro
durar.
(Não há
fatos, há apenas interpretações)
Nietzsche
Encontre
lugar bem lascivo do mundo.
Dele exile
todo o lírico.
Aos sete
sentidos dos cadáveres
dedique suas
antepenúltimas noites.
No principio
era pó, depois
a sombra do
pó, no fim o pó (supõe-se).
Ao desaprumo
do mar ofereço
estes poemas
lunáticos.
(Sob carnal
lua do Retiro do Espírito)
Doloroso
amontoado de inépcias
piedade flor
escatológica
rosa cúbica
admoestada por espinhos vivos
acaso úmido,
ontem lato, viço adormecido
algo que
amortalha o ímpeto
e enluta o
íntimo
Efeminaram-se
as letras
nos requintes
do foro
Aristocratizaram-se
ideias
(excesso de
sutilezas, coisas de exotismos doem)
Resta só cães
senis último osso
de esperança
na justiça divina (que seja).
(com folhas
de acácia e água de laranja)
olhos
capitulando ao azul câmbio da luz
à névoa do
sono cada vez menos
resisto
sombras
sempre se insinuando
o ânimo me
abandona em meio
a pântano do
mar de insônia
entrego-me a
trevas restauradoras
(que colho
entre os sais do verbo)
e a inútil
eternidade não me alcança.
LÍRICA CHACINÁRIA – Poemas extraídos da obra Lírica chacinária (Criaart, 2022), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é composto pelo prefácio LAM (capa e ilustrações) A palavra calada quando esborra de dentro é canto, e composto das partes Líricas Chacinárias, Cântico Novo, Poemas para azinhavre do espírito, Átomos & desentitulados, Espíritoanálise: prosas vitais, e Ritmos cíclicos com estudos e artigos de Sébastien Joachin, César Leal, Cláudio Veras, Yannick Clemon e Anônimo Lilás. Veja mais aqui e aqui.