quinta-feira, julho 28, 2022

LÍRICA CHACINÁRIA DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

 

 

A PALAVRA CALADA QUANDO ESBORRA DE DENTRO É CANTO

 

 

Luiz Alberto Machado

 

 

Uma coisa: ao ler Perls pela primeira vez escarafunchei. Sim. Estava eu um tanto dividido com os equívocos que todos fizemos da interpretação socrática, ou seja, claudicando entre razão-emoção e, ainda por cima, enxergando um planeta igualmente separado pelo que se convencionou por ocidente-oriente. Era como se visualizasse o planeta com o seu corpus callosum amputado. Sim, aquele corpo que é formado por fibras e que está localizado no fundo da fissura sagital, ou inter-hemisférica, associando os dois hemisférios cerebrais; e que penetra áreas simétricas do córtex de cada um deles, com a função de transferir informações de um para o outro, permitindo, portanto, os resultados do trabalho diverso. Por conta disso, trata-se de uma estrutura cerebral que é própria dos mamíferos e que funciona como se fosse uma ponte desempenhando importante papel nas funções psíquicas gnósicas e da fala. Uma vez lesionado o corpo caloso evidencia falha mental geral, acarretando na maioria das vezes alterações psíquicas, perturbações de pensamento, alterações do tônus, desinteresse com o mundo exterior, entre outros sintomas, em conformidade com a literatura neurocientífica. Se, porventura, tiver de ocorrer uma intervenção cirúrgica, o procedimento interrompe a troca de informações entre os dois hemisférios cerebrais, desencadeando a síndrome de desconexão inter-hemisférica. Ou seja, aquele que tem lesionado ou retirado o corpo caloso pode se tornar incapaz de se comunicar, uma vez que as atividades psicomotoras ocorrem por conta da interação entre ambos os hemisférios, a exemplo de tocar algo (o direito) e falar o nome identificando-o (o esquerdo). Inclusive, a agenesia, ou seja, a sua ausência, está associada com aproximadamente 25 síndromes genéticas, erros inatos e metabolismo. Uma desconexão inter-hemisférica (DI) traz notórios prejuízos nas funções psíquicas, de linguagem, de apraxia e gnosia. Pois é. Foi assim que enxerguei o planeta com a dicotomia Ocidente-Oriente, naquela época. Tudo isso acrescido ao bombardeio de situações maniqueístas no discernimento já fragmentado por toda sorte de modas e ideologias especializadas e em detrimento das generalizações.

Graças ao criador da Gestalt terapia, estive dentro e fora da lata de lixo: escrevi tudo que queria que fosse escrito. Vali-me, tal como ele e seus colaboradores, das leituras que fizera de Smuts, Kierkegaard, Buber e outros. Ou seja: um retorno às origens a partir da alteridade, da transcendência do cotidiano e do balanço existencial. Em suma: limpei a minha chaminé. E tudo ocorreu com certa facilidade, vez que as ideias do autor em questão também havia sido influenciado pelo Zeitgeist de então: a Contracultura, a Bauhaus, o Teatro Expressionista de Max Reinhardt e o movimento hippie. Quanta coincidência! E isso era como se eu estivesse batendo o mais solto papo legal com um amigo ao lado. Tanto que era como se Perls cochichasse confidenciando ao meu ouvido: "É lindo ver como escrever ajuda! Eu havia tentado fazer da psicanálise o meu lar espiritual, a minha religião". Oxe! Aí eu metia o verbo e tome garatuja para cima, nada mais incentivador.

Coincidentemente, o encontro com a obra dele se deu justo quando eu havia concluído um estudo de Laurence Bardin: a análise de conteúdo procura compreender aquilo que está por trás das palavras às quais se debruça. Além disso, havia o alerta de Erich Fromm no pé do maluvido: Quer se estude a sociedade ou os indivíduos, sempre se está lidando com seres humanos, e isso quer dizer que se lida com motivações inconscientes deles; não se pode separar o homem como indivíduo do homem como participante social – e, se a gente o faz, acaba não entendendo nenhum. E não deu outra, fui de cara com Allan W. Watts: a psicoterapia oriental e ocidental. Foi aí que juntei cada hemisfério na ideia e os reatei, assim é que deveria ficar para poder então dizer: uma Terra só. Com isso, aprendia a diferença entre entender (latim intendo, como estender, pretender, estar atento), e compreender (do latim comprehendo, conter em si, abranger, encerrar, conter, entender, perceber), quando o segundo é um processo psicológico e que, conforme a taxonomia de Bloom, é uma das habilidades do domínio cognitivo que solicitam a interpretação de um contexto, ou imprimem, a ele, um significado. Tudo isso, acima de tudo, bem clarificado com as leituras de O mistério da compreensão, de Krishnamurti. Em suma, pelo menos parecia que havia mesmo aprendido com a faxina de ter que regularmente limpar a minha chaminé. Tá. E o que tem a ver o procto com os fundilhos das calças? Explico – vá juntando os cacos de doidices que vai dar num quebra-cabeça quiçá interessante. Ou não. Vamos lá.

Foi justamente por essa época – pelo início dos anos 1980 -, que li pela primeira vez o poema A palavra calada, do então recém-lançado livro Burocracial (Pirata, 1982), de VCA. Justo na ocasião em que estava eu às voltas com acordes e solfejos sobre o poema A lavra da vida, do também poetamigo Jaci Bezerra. Por conta disso esqueci o poema de VCA e musiquei o poema do Jaci.

Passou o tempo e só agora reencontrei o poema: desfibra a palavra quando cala / quando o caule da árvore da fala / que é vento verbo e alicerce / anoitece / quando as seivas todas são sugadas / e o trêmulo das folhas proibido / quando os discursos são lacrados / dentro das praças sitiadas / e o som negado aos ouvidos / e o grito cortado na garganta / e o medo aberto no meio abrupto do dia / desfibra a palavra quando a árvore da fala / e os frutos dos gritos são demolidos / pelos silêncios vivos. E era como se vivesse agora o igualmente vivido naquela época, sem tirar nem pôr.

Desta feita, não passei batido: peguei o violão na coxa, danei os dedos e pei: lá, ré, sol... E pá: fusas, colcheias, a goela seca e um gole, teibei: musiquei na hora. Pronto. Corri e mostrei ao VCA no gravador: laralilará. Ele se espantou e deu uma mexida pegando algo e me entregou – de novo- outro saco com um tanto de manuscritos que penei para lê-los. Li e tive que comer bosta de cigano e merda do garrote Jauaraicica para adivinhar os garranchos. Deu trabalho, mas como fui copista cartorário desde menino, decifrei tudo, juntei, selecionei, ordenei e, por fim, o resultado? Organizei, aí está: Líricas Chacinárias. Isto mesmo, a me certificar: uma voz, uma literatura. Só não previa que teria que prefaciar o volume – lá estava eu de novo e sempre na minha falta de categoria: ter de apresentar aquele que é mais famoso do que eu. Como é que pode? Destá.

Tentando cumprir a minha parte, aqui declaro: o título logo me trouxe todas as supostas chacinas contra excluídos, vulneráveis e hipossuficientes, um genocídio programado a ditar dissensões com o azedume da defecção tão vigente e, ainda por cima, sob uma implacável pandemia.

Do outro lado, a poesia de VCA com as suas investigações líricas: A poesia cria o imprevisível, o ainda não dito, estimula o invisível patente, surpreende-nos, confunde-nos, apavora o humano, dilatando seus limites. Era ele sempre de pé e vociferando: Livre das peias dos significados precisos, óbvios ululantes, o poema amplia a significância, porque abre novos meandros e vertentes desconhecidos do entendimento. O dínamo da poesia é a expressão, não a informação, é a forma, não a mensagem pura, em si, mas a expressão, o modo particular ‘’poético’’ desta expressão. E mais com um recado em riste: Leitor, que arque com essa mediação formal, que produza uma concepção das coisas, do ser, do mundo, da vida, capaz de ir ao íntimo da mente, para desse dínamo extrair os dados que construíram o poema, será privilegiado com a captação da beleza da palavra.

Lá para frente encarei o seu poema “A mudança é nociva”: No poema, o abstrato se concretiza, posto ele não ser algo particular, porém singular encadeamento de palavras que não buscam dar sentido ao mundo ou a si, mas expressá-los. [...] Poema é algo vindo do âmago da palavra como fim (e não meio), que diz respeito ao caráter verbal do mundo concebido pelo humano. [...]. E diz tudo isso como quem sabe usar o arsenal dos meios retóricos dispostos pelo cometimento poético, muito à vontade para uso dos níveis fônicos e semânticos propostos por Dufrenne. Como se tal fosse qual Valéry no seu Je disais quelquefois à Stéphane Mallarmé: Não há sentido, não há ideia. Parecia mais quem seguisse à risca o Breton do Manifeste du Surréalisme: Para mim, não escondo, a imagem mais forte é aquela que apresenta o mais elevado grau de arbitrariedade. Esse é o VCA, singular e plural.

E este é o livro que, na primeira parte - a que dá o título ao volume -, ele traz poemas que servem de introito e interprólogos para ser e estar no nome e nas nascentes ao meio dia, meditações e o escambau, palavras que se perderam e o fez diante da morte tropical com o confessional dos velórios brasileiros, a usura e a verdade.

A segunda parte é um longo poema denominado “Cântico novo”: sou poeta atravessado da espessura dos séculos / e das amêndoas do desejo mordido / sou poeta minha clava a palavra em riste / minha fama corre tanto os rios do paraíso / nas veias do futuro íngreme do meu povo / meu verbo de sopro impregna a página do mundo / meu peito estoura, a boca se levanta... Um poema de fôlego, de quem sabe o que faz e diz.

Na terceira parte, “Poemas para azinhavre do espírito”, na qual o poema “Alma e nada (sobre o amor)”, dá o tom original do poeta: O Amor ilusão da alma. / Provisória estação da viagem para o nada. / O Amor é coisa do corpo / (não da alma)... / e mais nada.

Em seguida, os poemas reunidos sob a titularia de “Átomos & desentitulados”, entre os quais destaco o trecho: Rebanhos de água em currais de ondas / léguas líquidas anotadas do convés / incomensuráveis azuis me devorando a visão / a olhar o vê do vórtice da proa / me vi imerso no oceano de mim. Além disso com poemas realçando o vigoroso poder de síntese do poeta, distribuídos entre versos e poemas que se tornam monósticos – aliás, criação sua ao que se considerava até então como modalidade de estrofe.

Na quarta parte, Espíritoanálise: prosas vitais, em que o poeta-interator elucubra, carbura e rumina, tout a court, suas investigações poético-filosóficas: ... Eu vim do útero de Deográcia (da graça de Deus). Útero inóspito, mas vital. Vim dele. Para quê. Para quem? Afinal. Não para mim. Vim para (o) outro. Pois não sou. Sou nada (menos nada). Nada sou. Sendo. Assim. Tal útero, na data tal e eis eu. Fruto da maiêutica natural. Ou de um útero eleata, talvez. O poeta brinca com a prosa e se confirma tanto quanto.

Por fim, “Ritmos cíclicos”, reunindo apreciações e análises críticas de ninguém mais que Sébastien Joachim, Cesar Leal, Cláudio Veras, Yannick Clemon e Anônimo Lilás, nomes representativos da crítica literária.

Pronto.

Aí está mais uma obra do VCA: como eu disse, pleno. Sim, aquele que seguiu Freud: a conquista progressiva do Id e que foi além de Lacan, rumo ao inconsciente individual-coletivo junguiano. VCA está aí: enxuto, com cara de menino que vai viver uns 200 anos, oxalá, escrevendo que só, atravessando dias e noites na sua melhor tradução.

Com esta publicação um outro dado: são ao todo, ao que parece, uns 33 livros publicados de poesias, contando com os que tiveram seleção e organização do poeta e professor Admmauro Gommes, afora outros publicados com ensaios e crítica literária (eu mesmo já perdi a conta!). E, pelo jeito, tem espaço para mais, muito mais – uns 3 mil livros, ou milhões, acho. VCA é uma usina que não só provoca AVC nos normóticos, como salva todos os leitores com a proposta de Livroterapia.

O que dizer mais de Líricas Chacinárias? Ora, leia – no mínimo ocorrerão muitas sinapses neuronais; ou, no máximo ao infinito corre-se o risco mesmo é de viver. Aproveite.

 


 

SOBRE LÍRICAS CHACINÁRIAS

 

 

Chacineiro é um cara muito delicado sobretudo.

 

Tipo Hércules de gravata não borboleta.

 

Todo chacineiro é absoluto

em sua faina sangrenta elogiável.

 

Dedicado a entranhas (bovinas e humanas).

 

A humanidade da chacina é indiscutível.

 

E especialmente lírica, mutatis mutandis.

 

Este poema equivale a um tratado febril

da chacineirista arte vândala.

 

A chacinaria moderna contém

lapsos e repentes do puro sangue

a derramar-se de vísceras abertas.

 

É profissão que incita todo

o mais fundo lirismo real da vida.

 

Sua função aporta judiciosos atos íntimos

das viscerais entranhas oriundos.

 

Desse atro mas sublime oficio toda charcuteria nasce.

das salmouras do instinto.

 

Da desvascularização do carnal vazio.

 

Da salarização de dores ultrassonicas

do mais íntimo do boi obtidas.

 

Tripas e ossos das brasileiras sopas

e artificiais graxas brotam de chacinas.

 

Foices são afiados signos dessa poesia viva.

 

Que uiva bovino coração adentro.

 

Hábeis trituradores tal lirismo favorecem.

 

Aparatos de punhais facilitam

eclosão de salsichas.

 

Rotativas cortam a carne em polvilhos.

 

Elevados bordos da gamela (vaso do sangue)

movimentam o vaivém.

 

(Daí, o Rotary e a mística sanguínea).

 

 


CÂNTICO NOVO

(fragmento)

 

Uivam nômades naus e fundos marinheiros

porque foi devastada a terra

cujos solitários juncos soprastes

a ilha de Cetim foi desolada

e reduzida à cinza de uma quarta-feira seca

eivada de árvores centenárias e saudosas

tuas longas pernas eram cabos

cobertos de bosques ubertosos e enlouquecidos

cujos fêmures tanto te ornaram

teus mastros morreram corroídos de ventos.

 

Tiro fora teu nome fenício

berço do empório marinho

ninho das fortalezas do chão

que se gloriava de tua idade tamanha

cujas raízes abocanharam

três séculos antes de Cristo.

 

Mas, Tiro, já não tens cintura ou amparo.

 

O Senhor abalará teus alicerces e edifícios.

 

Tuas cidadelas serão ajoelhadas.

 

Teus estandartes morderão o pó.

 

Teu reino tremerá, irada Assíria

filha de Sídon, a vertiginosa, pecadora

esquizofrênica Assíria, louca filha de assur.

 

Tuas naus uivam do temor do Senhor.

 

Deus não se apiedará de tua longa desgraça

traidora infrutífera, cadela do beleleu.

 

Hoje somente uma meretriz sem lua

com uma cítara de ossos

canta teus destroços.

 

Teus insensatos punhos hão de perdurar na sombra.

 

Vinho amaro corroerá teu lábio.

 

Clamor de pranto cobrirá tua alegria.

(...)

 

 

PARA NÃO PERDER A ALMA

 

(DORES NÃO ADORO

MESMO QUE DUREM)

 

 

Douras pílulas

para pupila

do futuro durar.

 

(Não há fatos, há apenas interpretações)

Nietzsche

 

Encontre lugar bem lascivo do mundo.

 

Dele exile todo o lírico.

 

Aos sete sentidos dos cadáveres

dedique suas antepenúltimas noites.

 

No principio era pó, depois

a sombra do pó, no fim o pó (supõe-se).

 

Ao desaprumo do mar ofereço

estes poemas lunáticos.

 

(Sob carnal lua do Retiro do Espírito)

 


  

Doloroso amontoado de inépcias

piedade flor escatológica

rosa cúbica admoestada por espinhos vivos

acaso úmido, ontem lato, viço adormecido

algo que amortalha o ímpeto

e enluta o íntimo

 

Efeminaram-se as letras

nos requintes do foro

 

Aristocratizaram-se ideias

(excesso de sutilezas, coisas de exotismos doem)

 

Resta só cães senis último osso

de esperança na justiça divina (que seja).

 


 Assino meu nome na insônia

(com folhas de acácia e água de laranja)

olhos capitulando ao azul câmbio da luz

à névoa do sono cada vez menos

resisto

sombras sempre se insinuando

o ânimo me abandona em meio

a pântano do mar de insônia

entrego-me a trevas restauradoras

(que colho entre os sais do verbo)

e a inútil eternidade não me alcança.

 

LÍRICA CHACINÁRIA – Poemas extraídos da obra Lírica chacinária (Criaart, 2022), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é composto pelo prefácio LAM (capa e ilustrações) A palavra calada quando esborra de dentro é canto, e composto das partes Líricas Chacinárias, Cântico Novo, Poemas para azinhavre do espírito, Átomos & desentitulados, Espíritoanálise: prosas vitais, e Ritmos cíclicos com estudos e artigos de Sébastien Joachin, César Leal, Cláudio Veras, Yannick Clemon e Anônimo Lilás. Veja mais aqui e aqui.