sábado, julho 23, 2022

PROSEANDO COM A CULTURA, DO POETA PICAPAU

 

 

PREFÁCIO

 

Luiz Alberto Machado

 

Lá pelo início dos anos 1970, conheci aquele que vinha gambeta de venta empinada pela Rua Nova, carregando baldes atrás de lavagem pra porcos. De casa em casa gritava: Tem lavagem? De dentro vinha resposta, positiva ou negativa e, dependendo disso, ele se ria ou saia maldizendo tudo. Era, então, Zé Pelintra e não arriava na beca, acertava os ponteiros prumode o quê?: Escavaquei na moringa do meu quengo / um parafuso que estava fora do lugar / encontrei um baú cheio de rimas / com poemas e poesias a aflorar / de repente peguei minha viola / acertei os ponteiros da razão / deleitei-me na harmonia da canção / e expulsei estes versos da cachola. Isso prova que mesmo parecendo um chato arengueiro, era cabra, no fundo, gente boa, só que se amostrava como a peste. Era os tempos de estudante do Ginásio Municipal, das estripulias licenciosas e maloqueiragens adolescentes. Pois bem, tempo vai, tempo vem, a gente se danou na buraqueira do mundo e, uma década depois, se reencontra: pinga, meiota, cajá, caju, seriguela, bunda de tanajura e lavando tudo com cerveja, pilhéria, versejada e uma viola de 12 cordas Del Vecchio no meio da camaradagem. Diz ele que eu afanei o instrumento desencordoado; não foi, na verdade. Queria mesmo dar umas cipoadas boas no instrumento pra ver se aprendia direito. Não deu, nunca passei de poetastro, mas graças a ela, um dia depois de uma tocada boa, lá ia eu desprevenido pela rua e um cão que parecia um leão e nem tanto, me atacou e nela me protegi. Resultado: do medo e quase cagado, o ataque torou o braço da viola no meio que até hoje está num canto da casa de um consertador amigo. Por conta disso, a gente manga um do outro até hoje: eu das minhas besteiras de bestão tapado sem competência no métier; ele, da sabedoria, não perde uma, desaforo que seja, na ponta da língua arrelia de cima sem arriar no badalo no Como é que pode?: Às vezes fico pensando / com o juıź o balançando / lá e cá feito gangorra / como é que uma cobra / sem ter os pés se desdobra / e corre que só a porra! Eu que sempre fui um poeta de água doce, nunca acompanhei os motejos poéticos dele, pois o sujeito é dos bons no Caboclo do Nordeste: O matuto caboclo do Nordeste / que se orgulha em ser um nordestino / é um forte guerreiro no destino / é um bravo arigó cabra da peste / sendo ele do sertão ou do agreste / defende as raıź es até a morte / cultua com amor a natureza / ama a cultura com grandeza / permitindo que a arte lhe transporte... De tão metido, vez em quando, no meio das pinoias e trocas de ofensas, ele sapecava no pau da minha venta O rapé de Marisa: Tabaco bom arretado / com cheirinho de canela / cada pitada um espirro / chega doer as costelas / tem venda em grosso e varejo / dependendo do desejo / que tem sua clientela / mais digo com toda franqueza / que é mesmo uma beleza / o cheiro do tabaco dela. Jogava mais na minha lata, nunca teve papas na língua. Pra você ter uma ideia, o sujeito não cabe em si de tão folgado, não deixando qualquer loa sem os respectivos breques: Cinco coisas que me irritam / e vem me encabulando / é uma fila de banco / um polı́tico discursando / uma mulher barraqueira / uma torneira pingando / e o peste do carro do ovo / na minha porta gritando. Feito pinto no lixo em qualquer faustoso repasto, o enxerido solta uma lapa de língua e saçarica ineivado: Rosinha de Mané Fulô / uma caboca formosa / bunita feito a lua / da face da cor de rosa / um corpinho violão / é mermo uma tentação / essa caboca mimosa... E para mais me humilhar, arruma a gola no vinco e a fivela nos quartos, enche o pulmão com afinco e se amostra todo ancho cheio do Tataritaritatá: A poesia matuta / é um prato especial / gostoso de degustar, / alimentando a alma / deixando a mente calma / e o coração a amar / um amor feito em cordel / que o mundo tira o chapéu / vendo um poeta versar! Não para por aı́, afina o gogó e pisa forte no caqueado: É um ato varonil / resgatar nossa cultura / espalhar para o Brasil / a rica literatura / pelas redes sociais / e na TV os canais / divulgando os menestréis / é treze com doze / é onze com dez / é nove com oito / é sete com seis / cinco e quatro / mais um mais dois / e mais três / se olhassem com amor / teriam bem mais valor / o cantador de vocês. Pois bem, esse alagoano de Passo de Camaragibe chegou menino em Palmares, fincou os pés no chão proseando todo exaltado: Vem um final de semana / três amigos e um bar / pingas, cervejas e a embriaguez / uma discussão, uma briga / e tá no chão o freguês / chega a cana e ver-se três amigos / um morto, outro preso e um fugitivo / e lá se foi mais um final de semana. Com o tempo, como um bom embeiçador da tirana, tornou-se técnico em produção de açúcar e álcool e, também, em logística e gestão de pessoas. Graduou-se em Teologia para ampliar seu arcabouço intelectual: afinal, pro cabra ser bom tem que entender de tudo, até das coisas do outro mundo que ele se diz doutor. Publicou uns livros. Destes, eu tenho um livro e um cd: Feitos d'versos (Outras Palavras, 1995) e Umas & outras. O restante deles, não sei se por pirangagem da sua mão de figa, nem eu tenho, nem na biblioteca ou na Academia onde ele ocupa uma das cadeiras de imortal, podem ser encontrados: Sussurros da mata (Bagaço, 1986), Num rio de poesias (Universitária, 1987), Despertar no rincão, Matutando na literatura e Prosa de terreiro. S'assunte, meu véio, faça isso não. Reapareceu com a obra Nordestino sim senhor (JC, 2018), muito bom. Agora ele vem de Proseando com a cultura: [...] nunca arrematei um mote / pra não ver a bagaceira / também não faço heresia / faço o que a mente cria / pois ela é de primeira / e sem insistir na natura / vou a mesma admirando / e a vida vou levando / proseando com a cultura. Só tenho agora uma coisa a dizer: esse é dos bons, afianço (quem sou eu? Ah, um bicho cheio de nó pelas costas e bestão metido às pregas), pois esse José Maria Sales, o poetamigo Pica Pau, é daqueles que começa no palavreado e a gente não quer mais parar. Manda ver, poeta! Confira no livro é o melhor que você pode fazer e veja se digo a verdade ou não. Vamos sempre juntos!

 

INSPIRAÇÃO DE UM POETA

 

Peguei carona no cangote da saudade

Entrei no túnel das lembranças do passado

Folheei num livro do arquivo morto

Li um poema pelo o tempo empoeirado

Ultrapassei as fronteiras do horizonte

do além veio informações de monte

Pra me sentir um poeta inspirado

 

ESTUDA MENINO

 

O que seria do mundo

e como ele seria

sem a carta do A B C

ciência, geometria

português e outras mais

matérias a se aprender,

que rumo tomava a nação

e onde iria chegar,

onde nós ıá mos parar

sem a nossa educação.

 

FALEI Tá FALADO

 

Quando falo que tá certo

também digo tá errado,

quando falo é habitado

também digo é deserto,

quando falo que é perto

também digo é no in_inito,

quando falo é bonito

também digo é avessado,

quando falo tá falado

e quando digo tá dito.

 

ME PERGUNTARAM:

 

Pica Pau se come?

Respondi:

Nem cru e nem cozinhado

Porquê a carne é dura

o nervo é entranhado,

seu sangue é venenoso

mata não deixa recado,

mas se você quiser tentar

com jeito da pra chupar

a cabeça do danado.

 

ACERTANDO OS PONTEIROS

 

Escavaquei na muringa do meu quengo

um parafuso que estava fora do lugar

encontrei um baú cheio de rimas

com poemas e poesias a a_lorar

de repente peguei minha viola

acertei os ponteiros da razão

deleitei-me na harmonia da canção

e expulsei estes versos da cachola.

 


PROSEANDO COM A CULTURA – Lançado recentemente a obra “Proseando com a cultura” (CriaArte, 2022), do poeta Picapau – José Maria Sales, que é Técnico em Produção de Açúcar e Álcool e em Logística e Gestão de Pessoas, graduado em Teologia, e membro da Academia Palmarense de Letras (APLE). É autor dos livros Feitos d'versos (Outras Palavras, 1995); Sussurros da mata (Bagaço, 1986), Num rio de poesias (Universitária, 1987) e Nordestino sim senhor (JC, 2018). Veja mais aqui, aqui e aqui.