ENTRE
PARÊNTESES: ASCESE, DISCERNIMENTO & A BELEZA AMBÍGUA DAS MULHERES DE ISMAEL
NERY.
Luiz Alberto Machado
A
cena, a mesma de sempre: um calhamaço de manuscritos dentro de um enorme saco.
Dava para ver o tanto de páginas pela transparência plástica do volume. Curioso
e atento, cada folha de papel averiguada a me dar a certidão que além dos
escritos, entre eles algumas digitadas, outras até datilografadas e algumas
impressas no mimeógrafo – louca obsolescência! Tem gente que nem vai entender:
evoluímos em termos de próteses e técnicas, para deixar para lá o ser humano,
coisa de temporão que apodrece antes de amadurecer. Assim somos. Mas, vamos lá.
Li
tudo que pude e comecei a selecionar textos para organização - muito embora,
diga-se de passagem, eu seja, por inatíndole, achegado ao caos. Tenho horror a
esta nossa mania taxonômica. Pelo menos, mesmo desorganizado, dá para enganar
de que está tudo em ordem. Melhor que essa coisa do utilitarismo neurótico! Ou
de trogloditas moderninhos! Sim.
Vasculhando
a papelada, havia entre as páginas, uma que continha uma frase quase inelegível
e com uma inscrição logo abaixo, uma observação que logo consegui identificar e
se encontrava entre parênteses: Seria um título? Atentei e, ao conseguir
relê-la, logo agucei a imaginação.
Parêntese
primeiro: a frase logo me remeteu à obra de Ismael Nery: sua pintura, poesias,
desenhos e, sobretudo, o seu Essencialismo. E com o afã de fã prossegui para
dar cabo da empreitada. Até que no dia seguinte entabulei uma conversa com VCA,
ocasião em que expus uma publicação caprichosa que reunia toda a obra do
artista plástico. Um livro e tanto. E enveredamos para uma reflexão da infinita
leitura que havíamos feito ao longo dos anos acerca de dois poetas que
transitaram pela vida do pintor: Murilo Mendes e Jorge de Lima. O mais curioso
é que ambos foram impactados com a morte prematura dele, a ponto de
desenvolverem mutuamente uma correspondência poética que redundou na feitura de
poemas e fotomontagens.
Entre
sacadas e outras tiradas, ressaltei a minha admiração pela esposa de Ismael, a
escritora Adalgisa Nery, logo aflorando à memória os versos da Berenice de
Murilo: No teu corpo reacende-se a
estrela apagada, / A água dos mares circula na tua saliva, / O fogo se aquieta
nos teus cabelos. Quando te abraço estou abraçando a primeira / mulher. / Sol e
lua, / Origem berço cova. / Teu corpo liga o céu e a terra, / Teu corpo é o
estandarte da voluptuosa vitória. / Teu nome reconcilia dois mundos. E VCA expôs
curiosidades acerca de suas leituras murílicas, coisa da maior afinidade e
admiração.
No mesmo
momento vieram à cabeça trechos dos poemas da Mira-Celi de Jorge: ...Então, o mar veio gemer aos meus ouvidos; /
e, quando as marés me bramam sobre o rosto, / espalho à superfície das águas /
a fala de Mira-Celi para fecundar o mundo. Não menor a explosão erudita de
VCA de expor aqui e ali versos importantíssimos da produção jorgeana.
Curiosa a
constatação de que toda ocorrência do sepultamento de Ismael Nery foi
registrada e devidamente narrada n’O
círio perfeito, do grande memorialista Pedro Nava. E não só isso: a relação
entre as três personalidades abordadas passou a ser fonte de inúmeros estudos
acadêmicos de professores como Ana Maria Paulino, Anna Teresa Fabris, Luciano Marcos Dias, Tadeu Chiarelli, Teodoro
Rennó Assunção, Sergio
Carvalho Assunção, Priscila Sacchettin e do
jornalista Rubens Fernandes Júnior, afora outros tantos trabalhos acadêmicos de
pós-graduação que saímos descobrindo no acervo das universidades.
Leituras e
conversas atualizadas, parti para outras reflexões enquanto tentava ordenar os
poemas para buscar alguma unidade ao volume.
Parêntese
segundo: dedicado ao processo da leitura, imaginação à solta, os registros da
memória foram emergindo. Logo ascese, do grego askesis, exercício, rondava solto. Mais
amiudadamente, entre os significados do vocábulo constava o esforço para
renunciar aos prazeres sensíveis, tendo em vista o aperfeiçoamento moral ou
espiritual, ou ainda a realização de uma obra que exija o domínio da vontade.
Ou seja, o termo deu origem ao propósito ascético como uma filosofia
de vida pela prática espiritual que, para os adeptos, conduz à purificação do
corpo e da alma, com o objetivo de compreender a divindade e comungar com a paz
interior. Inspirou os cínicos como um agir no mundo com austeridade para
confrontar com os costumes da sociedade de então, tornando-se base para o
pensamento tanto de Antístenes, como de Diógenes. Também os estoicos Zenão,
Sêneca e Epicteto que eram anacoretas na busca pela libertação da alma
transcendente, obstinados pela resignação diante dos prazeres para cultuar as
virtudes socráticas. Com o tempo apareceram ascetas que passaram a cultuar um
vasto espectro de práticas que incluíam imolação, repreensões severas,
mutilações, inclusive hábitos monásticos em diversas religiões, como a
mortificação, o celibato e o jejum. Entre eles os cristãos que aplicaram
seu ascetismo como desapego do mundo para aproximação de Deus, tendo como
possível instrumento de culto a publicação da obra A
vida de Macrina: elogio de Basílio, do escritor capadócio Gregório de Nissa, uma
narrativa biográfica repleta de resignação diante dos infortúnios. Macrina era
irmã do autor e tornou-se notável nas páginas do livro porque renunciara a
riqueza para dedicação em manter uma personalidade acolhedora e solene diante
dos piores momentos que permearam toda sua existência. Essa história encontrava
sintonia com o advento do cristianismo que reunia as já usuais práticas
de flagelamento humano, acrescentando outras, como a prescrição da continência
sexual e o exercício da obediência, sendo, este último, característico do modo
cenobítico da ascese cristã e que se proliferou pelo ocidente. Tais
comportamentos atravessaram o medievo até a plenitude da modernidade,
alcançando Schopenhauer que ditará o seu ato radical quietivo na proposta de
mortificação e aniquilação da vontade. Também o filósofo Kierkegaard vai
expressar em suas obras o drama da existência e da doença mortal do desespero,
aliada à sua experiência religiosa marcada pelo luto com as perdas prematuras e
irreparáveis, renunciando até o amor da sua amada por conta da suposta maldição
de iminência da morte em sua família, fundamentado na necessidade de sua pureza
corporal sem a mácula das paixões da carne.
Outro exemplo
a se distinguir é o do filósofo Wittgenstein, que era caçula entre oito filhos
de um magnata e renunciou toda fortuna do império empresarial familiar, para
dedicar-se à filosofia e, posteriormente, após a leitura do Evangelho de
Tolstoi, cair em completo abandono e atuar voluntariamente como bibliotecário e
jardineiro apenas em troca de um prato de comida, dedicando-se ao que ele mesmo
cunhou como sendo a doutrina do silêncio.
Leituras
outras, como a de Max Weber, leva a entender que a
ascese é uma ética que se revela no espírito do capitalismo: uma atitude de
gestão dos negócios pela vida na ausência do pecado da acumulação. Lembro as
várias leituras que tive de fazer para melhor apreender o que se poderia colher
das obras dele. Coincidiu o momento com o encontro de outra reflexão trazida
pelo Paulo Leminski que, lá por meados dos anos 1970, escreveu o ensaio Ascese e escassez, preocupado com o lugar da arte na crise do esgotamento dos
recursos naturais, da iminente catástrofe ambiental e da possível hecatombe
nuclear: Exaustos os recursos,
irremediavelmente abalado o equilíbrio do meio ambiente, vamos todos ter que
nos contentar com menos. Menos coisas. Menos títulos. Menos. Quando o grande
Abalo Sísmico vier, os primeiros a senti-lo serão exatamente aqueles cuja
desmesurada ambição de fartura excessiva provocaram o Grande Abalo. Não é a
indústria automobilística o principal responsável pelo emporcalhamento das
águas e dos ares deste planeta? Os que sempre se contentaram com menos, com
pouco, ou até com nada (em termos de possuir coisas), sofrerão menos. Nessa
hora, quanto menos você possuir coisas, mais estará imune ao Abalo. O poeta
inspirou-se tanto pelo que se sabe a respeito dos padres do deserto e que foram
enaltecidos apropriadamente por Jean-Yves Leloup, como pelos cínicos da
antiguidade, pelos hippies de estradas, dos pajés e xamãs, poetas do haikai,
enfim: a solidão ascética na necessidade de invenção de um novo ideal, um outro
mundo, uma nova forma de viver.
Foi, então,
inevitável conduzir as leituras à hermenêutica do sujeito de Foucault,
destinada ao cuidado de si na intersecção entre sujeito e verdade, por meio da
ascese, tratada com a noção condutora aos processos de ascensão à verdade: Na ascese filosófica não se trata de regrar
a ordem dos sacrifícios, das renúncias que se deve fazer de uma ou outra parte,
de um ou outro aspecto do nosso ser... é
o que permite fazer de si mesmo o sujeito que diz a verdade e que, por esta
enunciação da verdade, encontra-se transfigurado, e transfigurado precisamente
pelo fato de dizer a verdade. Daí para a associação de tais ideias às de
atenção de si de Karl Jaspers, como também às discussões efetuadas acerca da
fusão de horizontes na hermenêutica em retrospectiva e no confronto entre
verdade e método no corpo teórico desenvolvido por Gadamer, foi um salto para a
ideia dada por Peter Sloterdijk na defesa de que qualquer um pode mudar sua vida
por meio de exercícios antropotécnicos - que não são de natureza religiosa,
vale ressaltar -, e que proporcionam a conservação ou melhoria da qualificação
humana para a realização de operações e convivências que elevem e tornem
saudáveis as condições da existência humana.
Pois bem, aprumando a conversa, aparece agora VCA com uma frase
manuscrita no meio de tantos rascunhos: Ascese é uma mulher. E abaixo da frase, entre parênteses, indagava:
Seria um título? Ora, se.
Pois bem,
neste volume a primeira parte é dedicada aos poemas de Escuras que foram, em sua grande maioria, escritos e reunidos pelo
autor em 2003, recebendo uma revisão geral e aqui inserto por conta da unidade
temática complementar com o volume ora reunido e organizado. Esta seção é
composta de cinco partes, contando inicialmente com Cenas de Abertura,
seguindo-se poemas reunidos em Silos do Silêncio, depois Nojo e Êxtase,
posteriormente Néctar Noturno, logo após As Bacias do Inconsciente e,
finalmente, Nascente Agonizantes. São poemas noturnos e relacionados pelo
próprio autor em volume assim intitulado, compreendendo o exercício poético na
expressão de sua visão de vida e mundo.
A segunda
parte aqui incluída é Cantares a Salomão, e originalmente reúne os poemas de
VCA que foram inseridos em uma antologia que foi publicada e circulou nos ano
de 1990, reunindo poetas e poemas sobre a temática dos bíblicos Cantares de
Salomão. Estão aqui por conta de articulação com a temática ora abordada,
notadamente pela interpretação predominante dada ao Cântico dos Cânticos, do
Antigo Testamento, referente aos cânticos de amor possivelmente oriundos da
concepção bíblica da experiência amorosa na descoberta do outro, com o sentido
dado ao amor ágape. Ou seja, a
renúncia e sacrifício para a purificação na procura da libertação do eu para o
reencontro de si mesmo, para o bem do amado e a descoberta de Deus na
eternidade. Os poemas aqui expostos demonstram o processo criativo e poético
evolutivo de VCA.
A terceira
parte compreende os poemas reunidos sob o título de Verão corpo da mulher: alma de abismos, vórtices de rosas, reunindo
poemas que foram publicados pelo autor, na Coleção Pernambucos, em 2012,
promovida pela Academia de Letras de Garanhuns, Jornal O Monitor e Centro
Cultural Vital Corrêa de Araújo. Os poemas expressam as reflexões de VCA acerca
da representatividade do ser mulher no percurso de sua existência,
proporcionando o entendimento da riqueza poética do autor.
Na última
parte deste volume encontra-se Criticoutras,
trazendo os textos Singularidade do
Paratexto e Sublime, do professor Sébastien Joachim, e Escuras – O novo relacionamento do poeta Vital Corrêa de Araújo com a
poesia, escrito por Lúcio Ferreira. Ambos, apesar de terem sido escritos e
publicados antes da feitura deste volume, abordam análises críticas
concernentes aos poemas que integram esta seleção, articulando-se, inclusive,
com a proposta temática.
Poder-se-ia
dizer por evidência que este volume compreende a ascese poética de VCA, o que
remete às palavras de Paulo Leminski: Ai
está uma bela questão. A mais bela de todas para os que vivem do verbo. Quem
escreve, vive hoje um oficio sem definições. A literatura, mãe de todas as
técnicas de escrever, morreu: foi atropelada por um trocadilho. A divisão da
literatura em gêneros (poesia/prosa) esta agora com seus limites borrados: já
não se sabe, na prática do texto novo, o que é prosa, o que é poesia. Parece
que a extensão de um texto define seu caráter de "prosa" e a
brevidade seu caráter de "poesia". Mas não há mais certeza.
Ocorre que VCA em suas obras já publicadas e analisadas criticamente por
autoridades de categoria e relevo, delimita muito bem o que é da poesia e o que
é da prosa, demonstrando quão cônscio e maduro tem perpetrado sua trajetória e
maturidade poética.
Confesso que ao
ler os manuscritos e poemas selecionados e organizados, fui revestido por uma
canção que compus e a premiei com o mesmo título de VCA: Ascese é uma mulher. Foi como diz Alan Watts: Percebe-se que o mundo é uma ilusão mutável, como um rio que não cessa
de correr um só segundo, e por isso mesmo é que se mergulha nele, rio e mundo,
integrando-se à vida. Quão instigante foi ler e experimentar a criação do
autor, levando, com isso, a convidar a distinta leitora e achegado leitor a
mergulhar na riqueza poética desta ascese e descobrir na minha canção nada mais
que a fruição dos poemas aqui apresentados. Vamos juntos.
O
CÁLCULO DE BORBOLETA
(OU DEUS
OUSA)
No cálculo
das borboletas, Deus ousou.
Sua geometria
diáfana, a leveza do traço
quase aéreo,
a cor pudica e veloz
o indelével
bordado, pureza extrema
irisado
supremo, elementar, o vôo
alcandorado
de regozijos, a severa
e ardilosa
asa, a brisa
etérea e
vagarosa onde paira
a delicadeza
ampla que perpassa
e a pomposa
melancolia quando vagueia
de rosa em
rosa na ágil planície
entre dons
silvestres e desatentas mulheres.
(Poema à
borboleta, que tece
arabescos de
cor no vento e mostra
que a beleza
não é difícil).
CANTARES
A SALOMÃO
I
EPIGRAMAS
BEBIDOS NA FONTE DE SALOMÃO
Antes que a
fecunda noite acabe
e as sombras
debandem
antes que os
aromas mirrem
e os desejos
ceguem
vou ao monte
de sândalo...
Vou à colina
onde Vênus impera
no seu divino
trono de relva
vou ao jardim
vedado
onde a gazela
do seio nasce
entre
açucenas e orvalhos...
Vou à fonte
proibida com minha sede
ouvir o
incenso louco das ancas
domar as
maçãs do pomar vermelho
sorver o
potro vasto de teu corpo
sondar o
tímido nardo do púbis...
Vou colher a
mirra de teus beijos tenros
com minha
surda boca camponesa
beber os
jardins imaginários do ventre
tocar os
perfumes e as peles tão puras
com poemas de
cinamomos e rimas de romãs maduras...
VERÃO
CORPO DA MULHER: ALMA DE ABISMOS, VÓRTICES DE ROSAS
1
VERÕES
FURIOSOS
Demônios
invernos
súcubos
incunábulos lascivos habitam
sexo da
mulher percorrendo
como
correntes de elétrons loucos
hélices
rondando músicas de tumulto
corpo da
mulher ataviado
de gozos
estupendos, volúpias, amapolas
encarnando-se
círios enluarados vivos
nas pétalas
da ama da mulher
nos atraem
ornatos vermelhos
e outonos
gozosos além de aréolas macias
aos seios da
mulher nossas bocas
sitiadas por
primaveras de orquídeas
e viris
iluminações de amêndoa.
2
Moram no
corpo e na alma da mulher
fantasias
indecentes, clamores azuis
e feras o
corpo
o lábio
chamas intransponíveis.
A devorar
nossos impunes escuros
e gritantes
trevas exilar das veias
basta aceno
ou olhar vital de uma mulher
balsamos e
fúrias vivem do seu beijo
haustos de
paz sucedem ao gozo.
Do riso
lentos venenos
e sutis
escapam.
Da voz
emigram aves marinhas altas
do coração
orações extáticas
aromas de
criatura
fontes que Deus
escondeu dos homens.
3
TODO
SEDE
Todo
fervoroso inverno
ronda corpo tua concha (rósea)
mutilarei com
alfanje macio do lábio
porque morro
de tua sede
de teu louvor
frio ao coração vivo
fruo de ti
certeza da solidão
e da saliva
do amanhecer hauro
teu fervor
inteiro
livor de
marfim e abeto
ganas de teu
beijo e ágios
às finanças
do ser beberei
porque tuas
pétalas de palomas ganhei
e me alimento
do lampejo
descuidado do
teu olhar.
4
INCLINO-ME
Inclino-me
ao príncipe e
à náusea
à saudade
árida inclino-me
e ao mar sem
comoção da vida
ao que de
melhor engendre o nada
ou a garça
louvarei (e ao amém)
porque sal da
vida é frágil
e sede vence
o prazer.
Porque amor é
resto
do banquete
que deuses abandonaram
lixo vertido
como vômito
da mesada dos
simpósios
(cuja toalha
é mortalha do amor).
ASCESE
É UMA MULHER – Poemas
extraídos da obra Ascese é uma mulher (Criaart, 2022), do escritor, jornalista,
advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo,
que é composto pelo prefácio LAM (capa e ilustrações) Entre parêntesis: ascese,
discernimento & a beleza ambígua das mulheres de Ismael Nery, mais os poemas
de Escuras, Cantares a Salomão, Verão corpo da mulher: alma de abismos,
vórtices de rosas, e Criticoutras com textos de Sébastien Joachim e Lúcio
Ferreira. Veja mais aqui, aqui e aqui.