domingo, abril 22, 2018

BUROCRACIAL DE VITAL CORRÊA DE ARAUJO


sou poeta
nomeado por concurso
(conserva de vida letrada
para patíbulos da posteridade)
sou o timbre
da voz pública
carne de fé oficial
para a fome do porvir
cidadão da sinédoque
servo da sinecura
caneta do mando
e do mundo
soldado do estado puro
do lucro e da lírica
munido senso
do aço e do cívico
(cínico roedor
dos ossos do ofício)
sou poeta
tributário da lei
obedeço
às gramáticas da palavra
os poemas da pecúnia
fabrico poemas sentado
nas almofadas
dos gabinetes
ou nos corredores
sem alfombra
perdido
na sala de espera
da esperança
prisioneiro
do relógio de ponto
final.

MEMÓRIA DAS MÃOS

a viva solidão
penetra o corpo
extinto de espera
atiça a saudade
o longo frio da noite
nas agudas chamas
do silêncio
o sonho acende
lentamente
se esculpe a espera
da matéria
do mármore do tempo
rebentam
imagens de carícia
no seio selvagem
(memória
ou imaginação
das mãos?)

BUROCRATA EM ATO

burocrata à cata
de processos obesos
buscando
nos autos esconsos
a raiz das rubricas
a metafisica
dos indeferidos
e os sem (cem) efeitos
da decisão letal
de público executada
pelo diário oficial
dentro do prazo
conforme os ritos
da morte processual.

INÍCIO DO EXPEDIENTE

o burocrata abre
o envelope da manhã
e lavra
no livro próprio o termo
de abertura do dia:
arruma-se na cadeira,
observa a agenda,
abre a gaveta, organiza
o edifício dos carimbos,
guilhotina uma pilha
de autos prioritários,
separa com sapiência
o expediente diário,
coloca no arquivo
os processos antigos,
indaga das notícias
do jornal oficial,
(antes de ler
a última edição
de seus despachos),
expulsa os resquícios de sol
do seu gabinete grave,
fecha as cortinas,
liga a sinfonia fria
do ar condicionado,
acende um cigarro,
repete o café,
cruza os sapatos:
começa mais um dia
burocrático.

LOJAULA

o objeto enjaulado
na vitrine
da loja
em colóquio mudo
com o olhar
selvagem
do consumidor
doente
em estado
de descrédito
preso
no lado de fora
da jaula
sem direito
de entrar
na loja
e consumir
o desejo do objeto
alojado
no lado de dentro
da jaula.

MÍTICA
A Edjar Powell

um galo grego
de canto escultural
que apanhe
o sol caído
da descuidosa mão
de Fídias e fabrique
num voo homérico
a mitologia no quintal.

POEMAFOME
(MÃO-POEMA)

um poema-soco
contra todas as sórdidas
formas da fome
contra todas as claras
fontes da fome
um poema-punho
contra todos os plenos
planos da fome
uma mão-poema
contra a face de flor
da fome
uma mão-poema
contra o pulmão frágil
da fome
uma mão-poema
em torno do esôfago
da fome
um poema-corpo
que seja
comida
para a sede
de ira
do homem-fome
um poema mão
à fome
um poema sim
ao homem
(sem fome).

A PALAVRA CALADA
A Luiz Carlos Guimarães


desfibra a palavra
quando cala
quando o caule
da árvore fala
que é vento
verbo e alicerce
anoitece
quando as selvas
todas são sugadas
e o trêmulo das folhas
proibido
quando os discursos
são lacrados
dentro das praças
sitiadas
e o som negado
aos ouvidos
e o grito cortado
na garganta
e o medo aberto
no meio abrupto
do dia
desfibra a palavra
quando a árvore da fala
e os frutos dos gritos
são demolidos
pelos silêncios vivos.

MORTO URBANO


os defuntos urbanos
jazem plácidos
inconclusos e confortáveis
estendidos
na sua morte
minuciosa
burocráticos
formolizados
imersos na tristeza
e na alfazema
entre flores sorridentes
com a etiqueta
da identidade inútil
espetada
nos pés em leque frio.

SEIOS

cumes de carne
sem metáforas
rijos
deuses redondos
para o culto
alpino
das mãos
pouso
da ave dos lábios
seres binários
de pele ágil
para a sede tátil
dos dedos
para a fome decimal
dos desejos
seios
sinuosos mistérios
róseos
abertas geometrias na carne
vivos cristais do desejo
que detonam
a claridade
adormecida no corpo
seios
formas carnais do instinto
que contêm o gesto
de tocá-los
e a sede
de bebê-los
instantâneos
seios de âmbar
e de espuma
seios de náilon
e de lua
seios de veludo
carmesins
seios que latejam
e gritam frenéticos
como pássaros impressos
no corpo amado
presos do desejo
de afagos
seios
canções de carne
que mordem a boca
e encantam a alma
da mão.


BUROCRACIAL – O livro Burocracial (Pirata, 1982), prêmio Escrita de Poesia (SP), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, é o segundo dos vários títulos publicados pelo autor que, conforme o poeta, advogado e artista plástico, Iran Gama, no prefácio da obra, assinala: [...] Burocracial é, pode-se dizer, um resumo biográfico, exposto por olhos de crase que se adentraram nos carimbos da vida, com todas as suas rorinas e até mesmo o sabor recente da novidade. Só que não é o resumo biográfico do poeta, cujos momentos, com êxtase, Vital Corrêa de Araujo apreendeu na exata dimensão da vida, do amor, da morte, e de toda a sua horizontalidade. [...]. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.