sou poeta
nomeado por
concurso
(conserva de
vida letrada
para patíbulos
da posteridade)
sou o timbre
da voz pública
carne de fé
oficial
para a fome do
porvir
cidadão da
sinédoque
servo da
sinecura
caneta do
mando
e do mundo
soldado do
estado puro
do lucro e da
lírica
munido senso
do aço e do
cívico
(cínico roedor
dos ossos do
ofício)
sou poeta
tributário da
lei
obedeço
às gramáticas
da palavra
os poemas da
pecúnia
fabrico poemas
sentado
nas almofadas
dos gabinetes
ou nos
corredores
sem alfombra
perdido
na sala de
espera
da esperança
prisioneiro
do relógio de
ponto
final.
MEMÓRIA DAS
MÃOS
a viva solidão
penetra o
corpo
extinto de
espera
atiça a
saudade
o longo frio
da noite
nas agudas
chamas
do silêncio
o sonho acende
lentamente
se esculpe a
espera
da matéria
do mármore do
tempo
rebentam
imagens de
carícia
no seio
selvagem
(memória
ou imaginação
das mãos?)
BUROCRATA EM
ATO
burocrata à
cata
de processos
obesos
buscando
nos autos
esconsos
a raiz das
rubricas
a metafisica
dos
indeferidos
e os sem (cem)
efeitos
da decisão
letal
de público
executada
pelo diário
oficial
dentro do
prazo
conforme os ritos
da morte
processual.
INÍCIO DO
EXPEDIENTE
o burocrata
abre
o envelope da
manhã
e lavra
no livro
próprio o termo
de abertura do
dia:
arruma-se na
cadeira,
observa a
agenda,
abre a gaveta,
organiza
o edifício dos
carimbos,
guilhotina uma
pilha
de autos
prioritários,
separa com
sapiência
o expediente
diário,
coloca no
arquivo
os processos
antigos,
indaga das
notícias
do jornal
oficial,
(antes de ler
a última
edição
de seus
despachos),
expulsa os
resquícios de sol
do seu
gabinete grave,
fecha as
cortinas,
liga a
sinfonia fria
do ar
condicionado,
acende um
cigarro,
repete o café,
cruza os
sapatos:
começa mais um
dia
burocrático.
LOJAULA
o objeto
enjaulado
na vitrine
da loja
em colóquio mudo
com o olhar
selvagem
do consumidor
doente
em estado
de descrédito
preso
no lado de
fora
da jaula
sem direito
de entrar
na loja
e consumir
o desejo do
objeto
alojado
no lado de
dentro
da jaula.
MÍTICA
A Edjar Powell
um galo grego
de canto
escultural
que apanhe
o sol caído
da descuidosa
mão
de Fídias e
fabrique
num voo
homérico
a mitologia no
quintal.
POEMAFOME
(MÃO-POEMA)
um poema-soco
contra todas
as sórdidas
formas da fome
contra todas
as claras
fontes da fome
um poema-punho
contra todos
os plenos
planos da fome
uma mão-poema
contra a face
de flor
da fome
uma mão-poema
contra o
pulmão frágil
da fome
uma mão-poema
em torno do
esôfago
da fome
um poema-corpo
que seja
comida
para a sede
de ira
do homem-fome
um poema mão
à fome
um poema sim
ao homem
(sem fome).
A PALAVRA
CALADA
A Luiz Carlos
Guimarães
desfibra a palavra
quando cala
quando o caule
da árvore fala
que é vento
verbo e alicerce
anoitece
quando as
selvas
todas são
sugadas
e o trêmulo
das folhas
proibido
quando os
discursos
são lacrados
dentro das
praças
sitiadas
e o som negado
aos ouvidos
e o grito
cortado
na garganta
e o medo
aberto
no meio
abrupto
do dia
desfibra a
palavra
quando a
árvore da fala
e os frutos
dos gritos
são demolidos
pelos
silêncios vivos.
MORTO URBANO
os defuntos
urbanos
jazem plácidos
inconclusos e
confortáveis
estendidos
na sua morte
minuciosa
burocráticos
formolizados
imersos na
tristeza
e na alfazema
entre flores
sorridentes
com a etiqueta
da identidade
inútil
espetada
nos pés em
leque frio.
SEIOS
cumes de carne
sem metáforas
rijos
deuses
redondos
para o culto
alpino
das mãos
pouso
da ave dos
lábios
seres binários
de pele ágil
para a sede
tátil
dos dedos
para a fome
decimal
dos desejos
seios
sinuosos
mistérios
róseos
abertas
geometrias na carne
vivos cristais
do desejo
que detonam
a claridade
adormecida no
corpo
seios
formas carnais
do instinto
que contêm o
gesto
de tocá-los
e a sede
de bebê-los
instantâneos
seios de âmbar
e de espuma
seios de náilon
e de lua
seios de
veludo
carmesins
seios que
latejam
e gritam
frenéticos
como pássaros
impressos
no corpo amado
presos do
desejo
de afagos
seios
canções de
carne
que mordem a
boca
e encantam a
alma
da mão.
BUROCRACIAL – O livro Burocracial (Pirata, 1982), prêmio
Escrita de Poesia (SP), do escritor, jornalista, advogado, professor,
conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, é o segundo dos vários títulos publicados pelo autor que, conforme o
poeta, advogado e artista plástico, Iran Gama, no prefácio da obra,
assinala: [...] Burocracial é, pode-se
dizer, um resumo biográfico, exposto por olhos de crase que se adentraram nos
carimbos da vida, com todas as suas rorinas e até mesmo o sabor recente da
novidade. Só que não é o resumo biográfico do poeta, cujos momentos, com
êxtase, Vital Corrêa de Araujo apreendeu na exata dimensão da vida, do amor, da
morte, e de toda a sua horizontalidade. [...]. Veja mais
aqui, aqui, aqui e aqui.