NA
MARGEM DO CÉU
Minha
alma meretriz percorre a cidade, nua.
Lido
o lado perdição (mundo/muro/solidão).
Nessas
retas ruas cruas de esquinas rotas/rotas
(parcos
versos rotos/tortos) já não reflui vida/lida.
Minha
alma das perdizes (das perdidas meretrizes)
faz
pouso na escadaria da Matriz dos Infelizes
(margem
do Céu de Prazeres)
MACEIÓ
ATLÂNTICA
Uma
vazante tardia alaga a cidade atlântica.
Seres
anfíbios, acossados, povoam bancos de areia.
Maré
de caranguejos tortos (o peso da lama e salsugem) emerge
Brejal
adentro.
Caranguejos,
os maceioenses entram e saem das tocas,
dos
becos, aos encontrões nas ruas estreitas-tortas.
Entre
o mar – a sua cruz – e as lagoas –
a
espada de Dâmocles da tiborna – Maceió que se espreme, vaporosa e alagadiça.
No
embate de mar e água doce, só os caranguejos sobrevivem,
chafurdando
na areia traiçoeira.
Terra
a todos prometida (a ilha no mapa da restinga)
pertence
aos seres anfíbios (a redenção é dos caranguejos).
TAPAGEM
DO ALAGADIÇO
Maceió,
a via torta dos carros-de-bois,
tem
o mapa traçado num berço de águas.
No
contorno de mar e lagoa, flutua a terra movediça.
Maceioense,
com a vida torta dos goiamuns,
afunda
e emerge, afoga-se e revive seu destino anfíbio.
A
cidade atlântica é porto de sereias
que
aplacam a ira do mar com orgasmos de sargaços.
AVE
PEREGRINA
Por
mais que tarde,
Atlanta,
chego ao teu destino porto.
O
mesmo sol que me encanta, reflete em teu rio morto.
Vejo
no canto dos olhos, luzes da cidade-nave.
Sopra
um terral de abrolhos.
Sou
ave suave. Ave! Por mais que faça,
Atlanta,
dos teus sobrados meu ninho,
sou
ave de arribação (leve e livre passarinho).
AVE
ATLÂNTICA
Com
asas de Pajuçara, de Ponta Verde e Pontal
projeto
na ilha rara meu atlante figural.
Nas
asas recolho o lodo (a maresia me esgana).
Minha
cabeça de bobo não sabe meus pés de cana.
Vôo
rasante.
Meu
plano, se alçá-lo puder um dia, é decolar do oceano com asas de fantasia
ALAGOAS
ANFÍBIA
Seres
anfíbios habitam Alagoas de águas recortada.
A
geografia é um leque de rios:
Mundaú
Camaragibe Paraíba do Meio
Ipanema
Santo Antônio São Francisco margeando o mapa.
Mundaú
e Manguaba, os olhos do mar,
choram
lágrimas/mágoas do povo anfíbio.
ONDE
É MAR OU ALAGOA?
Para
Lêdo Ivo
Ninguém
sai do poema de Lêdo
Sem
o mar estético
Sem
as várzeas fluidas
Sem
as raparigas do Cavalo Morto
Ninguém
sai do poema de Lêdo
Sem
lama lacustre
Sem
dormir com as putas
Dos
velhos sobrados
De
Jaraguá redivivo
Ninguém
sai do poema de Lêdo
Sem
o açúcar bruto
Do
porão das naves
No
porto ancoradas
FLORES
DE CANA
Flores
de cana alastram o solo ácido de sangue dos mortos do latifúndio.
O
sol forte é testemunha dos canaviais-partidos (o doce terror dos campos).
O
Mundaú chora mágoas de gente amarga habitante do doce-mar sem limites.
O
sangue de demerara pulsa veia diabética de álcool e mel cabaú.
Sabe
da veia o açúcar, do sangue sabe o veneno.
Sabe
do clima este sol.
Os
afluentes jorrando, a cana se alastrando (o doce por ironia).
A
água morre de química, no Mundaú, vau de lágrimas dos ilhéus/vidas cortadas.
Os
cemitérios, às margens, dos mortos de chistosoma, de bala e colesterol.
Por
este rio escorre o desespero dos mortos partidos como os canais.
Os
afogados conspiram nas angras, dunas e mangues (os enforcados, às margens).
O
rio torto costura a mortalha desses náufragos das tibornas, das caldeiras.
A
lagoa, estuário de mortes (vidas negadas): cenário de funeral.
A
barra do mar-represa é tumba desses ilhéus do Vale da Flor de Cana.
Água
morre de química, no Mundaú, vau de lágrimas dos ilhéus/vidas cortadas.
Os
cemitérios, às margens, dos mortos de chistosoma, de bala e colesterol.
Por
este rio escorre o desespero dos mortos partidos como os canais.
Os
afogados conspiram nas angras, dunas e mangues (os enforcados, às margens).
O
rio torto costura a mortalha desses náufragos das tibornas, das caldeiras.
A
lagoa, estuário de mortes (vidas negadas): cenário de funeral.
A
barra do mar-represa é tumba desses ilhéus do Vale da Flor de Cana.
ESTE
RIO MUNDAÚ NÃO É O MESMO
Este
Rio Mundaú não é o mesmo Rio Ganges que banhou Jorge Luiz Borges cego pela luz
de Buenos Aires.
Neste
Rio Mundaú dos afogados, submerge outro Jorge – de Lima, que Mira-Celi deixou
cego para abrir os portais de sua fuga surreal à insanidade.
O
BARQUEIRO
Sei
o perigo que corres, Caronte.
Sei
o inevitável do Aqueronte.
Não
sei como te salvar.
Um
dia não retornarás do inferno-porto.
Dante
perde para sempre Beatriz.
BARRIGA
DEVASSADA
Para
Castro Alves
Barriga,
a serra mágica, ancoradouro dos mares do Cafuxi e Amolar.
Barriga,
a Serra-Madre, tombada na artilharia de Domingos Jorge Velho.
Uma
chuva lava a serra (Mundaú, rio de banzo, leva o sangue para o mar).
Depois
da destruição, os negros desencantados ressuscitaram na África (da luta o
recomeçar).
O
fantasma Jorge Velho ronda mares do Amolar.
AVES
DA MEMÓRIA
Cimento
e ferro gerando florestas (ferocidades), lançando raiz profunda, mais que a
maçaranduba, mais que o jequitibá.
Devastaram
os bosques do meu sítio, violentaram a calmaria das matas.
Copa
frondosa de louro, cupiúba e caboatã deram lugar a marquise.
Arribação
do tempo, sou ave sem mata, sem rumo e sem volta.
Avoante,
tenho meu coração sufocado na fumaça de rapina.
Baleadeira
da poluição mata as aves da minha memória.
Quero
cidades sem saudades.
POEMA
DE NÉVOAS
Que
divindade reúne miasmas desintegrados e bóreas inomeados para formar nebulosas?
-
Um deus desmemoriado, qual demiurgo deforma o tempo para em seguida refazê-lo
como névoa? –
Não
é o cosmo tecido como teia pela aranha, mas esculpido ao fogo soprado por mil
demônios.
II
Ó
homem marcado, dai lugar a quem, sem sinal, passa incólume sob o crivo dos
detentores da morte.
Atentai
ao que está mudo (não falado-aquém do som), ao quase que nunca é, ao rumor de
ventos dantes.
Atentai
à flor da pedra, à prostração do vazio, ao raio feito delírio, aos lírios
ensanguentados.
CONCERTO
PARA FLAUTA-VÉRTEBRA
Em
vez de poeta, sou o homem do megafone.
Com
a palavra no trombone, anuncio, à luz do dia, toda tessitura lírica, todo poema
do mundo para ruir num instante.
Se
eu me chamasse Raimundo, se eu conhecesse Drummond, se eu visse Pedro Nava,
ruiria num segundo todo edifício de ossos, toda escultura-palavra.
Se
fosse eu Maiakovski, seguraria o gatilho da palavra invertebrada da revolução
vencida por um tiro atrás da porta.
Todo
poema do mundo, toda construção-palavra ruindo por um instante, no lampejo do
estampido, num sopro da flauta-vértebra.
(A
mais-valia da bala, o mundo em desabalada, uma balada-sussurro, um tiro no dia
rubro ruiu a trama da lírica da revolução de outubro).
Eu
não me chamo Raimundo, nem Drummond nem Pedro Nava, só choro às margens do Neva
junto aos mortos de Akhmátova.
CANTAR
CIGANO
para
Garcia Lorca
Eu
tenho um nacarado no chapéu, tremeluzindo no profundo azul do céu.
Eu
vejo um véu de nardos no bordel, traduzo o sonho do poeta no papel.
Aura
de estrelas iluminando o bailado de meninas de aluguel.
Luar
do sono, quando me acordo, com a viola, da menina me recordo.
Eu
vejo dos cavalos o tropel, as capas negras, o rufar dos tamboris.
Vejo
o poeta, nas entrelinhas, beijando a morte na mirada dos fuzis.
CABO DAS TORMENTAS
Há um Cabo das Tormentas a passar
Há uma vida de tormentos a vencer
Há esquadras sobrepostas para o mar
Há o tempo para o império perecer
Há um reino que não volta do Alcácer
Há o poeta que espera o rei voltar
Há o nauta que naufraga ao Bojador
Há o império que sucumbe além da dor
Não consigo atravessar o Tenebroso Mar Atlante.
Como Sísifo e sua pedra eu não passo o Cabo
Não de cansaços.
IREMAR MARINHO – O poeta, jornalista,
publicitário e advogado Iremar Marinho, edita o blog Bestiário Alagoano e reúne alguns de seus trabalhos no
Recanto das Letras. Veja mais do autor aqui e aqui.