domingo, março 25, 2018

A POESIA DE IREMAR MARINHO


NA MARGEM DO CÉU

Minha alma meretriz percorre a cidade, nua.
Lido o lado perdição (mundo/muro/solidão).
Nessas retas ruas cruas de esquinas rotas/rotas
(parcos versos rotos/tortos) já não reflui vida/lida.
Minha alma das perdizes (das perdidas meretrizes)
faz pouso na escadaria da Matriz dos Infelizes
(margem do Céu de Prazeres)

MACEIÓ ATLÂNTICA

Uma vazante tardia alaga a cidade atlântica.
Seres anfíbios, acossados, povoam bancos de areia.
Maré de caranguejos tortos (o peso da lama e salsugem) emerge
Brejal adentro.
Caranguejos, os maceioenses entram e saem das tocas,
dos becos, aos encontrões nas ruas estreitas-tortas.
Entre o mar – a sua cruz – e as lagoas –
a espada de Dâmocles da tiborna – Maceió que se espreme, vaporosa e alagadiça.
No embate de mar e água doce, só os caranguejos sobrevivem,
chafurdando na areia traiçoeira.
Terra a todos prometida (a ilha no mapa da restinga)
pertence aos seres anfíbios (a redenção é dos caranguejos).

TAPAGEM DO ALAGADIÇO

Maceió, a via torta dos carros-de-bois,
tem o mapa traçado num berço de águas.
No contorno de mar e lagoa, flutua a terra movediça.
Maceioense, com a vida torta dos goiamuns,
afunda e emerge, afoga-se e revive seu destino anfíbio.
A cidade atlântica é porto de sereias
que aplacam a ira do mar com orgasmos de sargaços.

AVE PEREGRINA

Por mais que tarde,
Atlanta, chego ao teu destino porto.
O mesmo sol que me encanta, reflete em teu rio morto.
Vejo no canto dos olhos, luzes da cidade-nave.
Sopra um terral de abrolhos.
Sou ave suave. Ave! Por mais que faça,
Atlanta, dos teus sobrados meu ninho,
sou ave de arribação (leve e livre passarinho).


AVE ATLÂNTICA

Com asas de Pajuçara, de Ponta Verde e Pontal
projeto na ilha rara meu atlante figural.
Nas asas recolho o lodo (a maresia me esgana).
Minha cabeça de bobo não sabe meus pés de cana.
Vôo rasante.
Meu plano, se alçá-lo puder um dia, é decolar do oceano com asas de fantasia

ALAGOAS ANFÍBIA

Seres anfíbios habitam Alagoas de águas recortada.
A geografia é um leque de rios:
Mundaú Camaragibe Paraíba do Meio
Ipanema Santo Antônio São Francisco margeando o mapa.
Mundaú e Manguaba, os olhos do mar,
choram lágrimas/mágoas do povo anfíbio.

ONDE É MAR OU ALAGOA?

Para Lêdo Ivo

Ninguém sai do poema de Lêdo
Sem o mar estético
Sem as várzeas fluidas
Sem as raparigas do Cavalo Morto
Ninguém sai do poema de Lêdo
Sem lama lacustre
Sem dormir com as putas
Dos velhos sobrados
De Jaraguá redivivo
Ninguém sai do poema de Lêdo
Sem o açúcar bruto
Do porão das naves
No porto ancoradas

FLORES DE CANA

Flores de cana alastram o solo ácido de sangue dos mortos do latifúndio.
O sol forte é testemunha dos canaviais-partidos (o doce terror dos campos).
O Mundaú chora mágoas de gente amarga habitante do doce-mar sem limites.
O sangue de demerara pulsa veia diabética de álcool e mel cabaú.
Sabe da veia o açúcar, do sangue sabe o veneno.
Sabe do clima este sol.
Os afluentes jorrando, a cana se alastrando (o doce por ironia).
A água morre de química, no Mundaú, vau de lágrimas dos ilhéus/vidas cortadas.
Os cemitérios, às margens, dos mortos de chistosoma, de bala e colesterol.
Por este rio escorre o desespero dos mortos partidos como os canais.
Os afogados conspiram nas angras, dunas e mangues (os enforcados, às margens).
O rio torto costura a mortalha desses náufragos das tibornas, das caldeiras.
A lagoa, estuário de mortes (vidas negadas): cenário de funeral.
A barra do mar-represa é tumba desses ilhéus do Vale da Flor de Cana.
Água morre de química, no Mundaú, vau de lágrimas dos ilhéus/vidas cortadas.
Os cemitérios, às margens, dos mortos de chistosoma, de bala e colesterol.
Por este rio escorre o desespero dos mortos partidos como os canais.
Os afogados conspiram nas angras, dunas e mangues (os enforcados, às margens).
O rio torto costura a mortalha desses náufragos das tibornas, das caldeiras.
A lagoa, estuário de mortes (vidas negadas): cenário de funeral.
A barra do mar-represa é tumba desses ilhéus do Vale da Flor de Cana.

ESTE RIO MUNDAÚ NÃO É O MESMO

Este Rio Mundaú não é o mesmo Rio Ganges que banhou Jorge Luiz Borges cego pela luz de Buenos Aires.
Neste Rio Mundaú dos afogados, submerge outro Jorge – de Lima, que Mira-Celi deixou cego para abrir os portais de sua fuga surreal à insanidade.

O BARQUEIRO

Sei o perigo que corres, Caronte.
Sei o inevitável do Aqueronte.
Não sei como te salvar.
Um dia não retornarás do inferno-porto.
Dante perde para sempre Beatriz.

BARRIGA DEVASSADA

Para Castro Alves

Barriga, a serra mágica, ancoradouro dos mares do Cafuxi e Amolar.
Barriga, a Serra-Madre, tombada na artilharia de Domingos Jorge Velho.
Uma chuva lava a serra (Mundaú, rio de banzo, leva o sangue para o mar).
Depois da destruição, os negros desencantados ressuscitaram na África (da luta o recomeçar).
O fantasma Jorge Velho ronda mares do Amolar.

AVES DA MEMÓRIA

Cimento e ferro gerando florestas (ferocidades), lançando raiz profunda, mais que a maçaranduba, mais que o jequitibá.
Devastaram os bosques do meu sítio, violentaram a calmaria das matas.
Copa frondosa de louro, cupiúba e caboatã deram lugar a marquise.
Arribação do tempo, sou ave sem mata, sem rumo e sem volta.
Avoante, tenho meu coração sufocado na fumaça de rapina.
Baleadeira da poluição mata as aves da minha memória.
Quero cidades sem saudades.

POEMA DE NÉVOAS

Que divindade reúne miasmas desintegrados e bóreas inomeados para formar nebulosas?
- Um deus desmemoriado, qual demiurgo deforma o tempo para em seguida refazê-lo como névoa? –
Não é o cosmo tecido como teia pela aranha, mas esculpido ao fogo soprado por mil demônios.

II

Ó homem marcado, dai lugar a quem, sem sinal, passa incólume sob o crivo dos detentores da morte.
Atentai ao que está mudo (não falado-aquém do som), ao quase que nunca é, ao rumor de ventos dantes.
Atentai à flor da pedra, à prostração do vazio, ao raio feito delírio, aos lírios ensanguentados.

CONCERTO PARA FLAUTA-VÉRTEBRA

Em vez de poeta, sou o homem do megafone.
Com a palavra no trombone, anuncio, à luz do dia, toda tessitura lírica, todo poema do mundo para ruir num instante.
Se eu me chamasse Raimundo, se eu conhecesse Drummond, se eu visse Pedro Nava, ruiria num segundo todo edifício de ossos, toda escultura-palavra.
Se fosse eu Maiakovski, seguraria o gatilho da palavra invertebrada da revolução vencida por um tiro atrás da porta.
Todo poema do mundo, toda construção-palavra ruindo por um instante, no lampejo do estampido, num sopro da flauta-vértebra.
(A mais-valia da bala, o mundo em desabalada, uma balada-sussurro, um tiro no dia rubro ruiu a trama da lírica da revolução de outubro).
Eu não me chamo Raimundo, nem Drummond nem Pedro Nava, só choro às margens do Neva junto aos mortos de Akhmátova.

CANTAR CIGANO

para Garcia Lorca

Eu tenho um nacarado no chapéu, tremeluzindo no profundo azul do céu.
Eu vejo um véu de nardos no bordel, traduzo o sonho do poeta no papel.
Aura de estrelas iluminando o bailado de meninas de aluguel.
Luar do sono, quando me acordo, com a viola, da menina me recordo.
Eu vejo dos cavalos o tropel, as capas negras, o rufar dos tamboris.
Vejo o poeta, nas entrelinhas, beijando a morte na mirada dos fuzis.

CABO DAS TORMENTAS

Há um Cabo das Tormentas a passar
Há uma vida de tormentos a vencer
Há esquadras sobrepostas para o mar
Há o tempo para o império perecer
Há um reino que não volta do Alcácer
Há o poeta que espera o rei voltar
Há o nauta que naufraga ao Bojador
Há o império que sucumbe além da dor
Não consigo atravessar o Tenebroso Mar Atlante.
Como Sísifo e sua pedra eu não passo o Cabo
Não de cansaços.


IREMAR MARINHO – O poeta, jornalista, publicitário e advogado Iremar Marinho, edita o blog Bestiário Alagoano e reúne alguns de seus trabalhos no Recanto das Letras. Veja mais do autor aqui e aqui.