sábado, março 03, 2018

BANDO DE MÔNADAS, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO


O mistério da poesia não suporta
Chusma de pinças teóricas, obsessivas
Escavando supostos sentidos
Pinçando bolsões denotativos
Nem fórceps hermenêuticos
E aborta.

INEXPLICAÇÃO AO LEITOR

Comecei a costurar essas palavras prolegomenicas no banho. Enquanto me ensaboava, a mente (limpa) desandou pensamentos (impublicáveis, porque nus), e sinapses ou insaites e reflexões relâmpagas atravessaram o fluxo dos chuviscos. Completei-as quando usava no raro cabelo o novo shampu que promete longevidade a cada fio em particular. (Como os possuo poucos, o produto invencível, mesmo sendo caro, per cápita sai bem em conta). E enquanto alisava as madeixas carinhosamente pensando em Pope – com esfregões macios – já findava quase esse cru proêmio. Surpresa foi não esquecer o texto vindo à lux do banheiro para meu caderno mental úmido.
Título: pensei em Frases da Lua, Monóstico de Carbono (por ser a maioria das peças de um só verso ou linha ou como disse Eliot: “one verse põem”), mas optei por Bando de Mônadas, não sei por quê.

NÓMINA DESSAS NOTAS

Ao conjunto, nomino-as nuamente Inexplicação ao Leitor, e dedico à Hipócrita Leitora de minha parca ou pobre obra. Porque são notas inexplícitas de um fazedor de poemas, que visam atordoar, ou melhor, clarear a treva textual, abrir caminhos sem rumo à selva significante, em que possíveis (mas improváveis) leitores se arrisquem tentar imiscuir-se ou inutilmente explorar.

RAZÃO DO POEMA

Escrevi esses poemas extremos porque vi o extremo numa viagem a bordo do abismo para o confim de mim mesmo. Fui além da alma, depois do corpo, quando os comecei. Não evitei os tiques estilísticos próprios de minha lavra poética nem a mania de montar sintagmas oximóricos, insensatos (para os sentidos comuns), esdrúxulos, não recomendáveis, para quem escreve em beneficio do leitor, o que não é meu caso, absolutamente. Escrevo poema para total desconforto do leitor (que se dane se quiser entender). Se o poeta entrega de mão beijada, numa bandeja dourada, o tal sentido do poema (tão ou mais procurado do que um malfeitor do velho oeste ianque), tão esperado que desespera o leitor, quando este não lhe é dado, de imediato, na primeira linha ou golpe de leitura; caso seja assim, assado não é, e poesia não o é também. O poema não deve ser uma resposta, uma lição, mas um questionamento, uma interrogação. Nada de resultados prosaicos, mas investimento literário. Escrevo poemas, portanto, para o desconforto extremo de quem casualmente me leia. Se fosse uma reforma de um prédio, a placa séria seria: desculpe o transtorno da leitura, estamos trabalhando para desconforto total do seu entendimento.

IDE À FONTE

Seria o meu coração der areia (título de uma coleção de poemas já publicada – Fundarpe)? Nunca se sabe o que já no coração, do que ele é capaz (ou incapaz). Então, por que confiar nele? Os impulsos do coração são frágeis e insinceros. Fortes, consequentes, verdadeiros são os impulsos do desejo, como bem o mestre Jomard já provou. E os usei bem. Esses poemas são frutos do desejo, e da pena ou da pele (e não da alma). O equilíbrio está muito além da palavra que o quite (ou sagre). O fio do êxito fácil cortei, parca velha e sábia. No espaço débil e das janelas vertiginosas do sonho me despenhei, atirando-me aos intricados hospícios azuis das palavras, precipitando em mim os precipícios de sintagmas vertiginosos e devoradores como o Desejo. Para satisfazer os mais turvos desses desejos fui até o poema. E esse Bando de Mônadas solto ao mundo.

A PALAVRA QUE QUER(EM) CALAR

Que é isso, Vital (me indago, de chofre) de indecifrabilidade da poesia como amuleto da página, como espírito ou demônio do texto, como condição da náusea que o inexplícito (ou apenas a sugestão lassa) sempre causa ao cidadão leitor comum? (É que a poesia exige leitor incomum – como as minhas leitoras infiéis – e impõe grave e extensa responsabilidade a quem lê o poema sob égide da compreensão). O poema antes serve para nos compreendermos do que para sermos compreendidos.
A poesia desentranha o fora para moldar o dentro. É como a cópula ou o inocular na veia um veneno (ou na veia do veneno a vida). Visa ao rapto do sono da usura (das palavras) para extrair o pesadelo do tributo devido à página (parceira em ato de potencializar o objeto da poesia, o poema). A mais valia é da imaginação feto e fruto.
Tudo de que fruo do mundo é o de que a poesia se apropria (de sua ração de espírito), mesmo contra o homem, se este – em particular, ainda não deu o salto (dialético) do estágio hominídeo para o sapiens, eticamente alto, humanamente pleno.
Mateus, delinquente porque desaforava, porque confiscava o excessivo, a demasia, porque podava a desmesura, porque abocanhava a parte do todo (para comunhão do homem); diligente coletor, assustava o mercado (de valores banais e uterinos). Os bursáteis pecados exigiam outro tipo de indulgência. Mateus, em sua exação imperiosa, com sua maleta de injurias (contra os juros), era antipático e sua função exonerativa perversa. Engendrando, como Lezama rezava, versículos perplexos e indecifráveis, no tecido bíblico inconsútil da alma. Mortais para o ser do ser humano normal (ou médio). Para quem o logro é vital.
O ato crucial de cobrar o que sobra ou excede (ato mateusítico) é poesia pura, despotencualizando o espírito de seus gravames adoposos, sobras desumanas e sucumbências, porque retira do homem o excesso de aspereza (de sua alma tão mortao) ou redundâncias da vida, ou os excessos goliásicos, vaidadescos, soberbos acúmulos contra si mesmo. Mas porque a poesia é (seria) algo tão inexplícito (sentidos hermeneuticamente trancafiados em escrínio de palavras), insisto!? É que a poesia é anticausal (vem do acaso da alma e não de causa material, logicamente estabelecida, externa); é uma causa que não gera efeito (ou sucessos preestabelecidos); não cria mecânica no espírito, não inter-relaciona A com B prébios. Sego onde não semeio (isto é, apuro o que não cumpro ter) e colho onde (e o que) não espargi (isto é, o fruto poema não tem messe certa ou azul safra exata). E acolho o que não previ. O poema é tão intenso que se cumpre em si, sem a trama ou o trauma humanos – e falhos sonhos alemães.
Mesmo se quando todos os elos da causalidade (mecânica ou não) forem devidamente rompidos pela força inata da ciência da intuição, em ato dissolvidos desaparecerem, o poema fica, é, engendra sua gravidade própria, sua órbita épica estabelece, norteia o percurso lírico, como ser independente de palavra (até mesmo do poeta). Essa grave gravitação advém do potencial de imaginação que a alma do poeta comporte e atualize.
Que é isso, Vital, de indizibilidade da poesia como superstição da págia, coisificação da palavra ou sua reficação, identificando palavra e coisa? (juro e jurídico).
Isso é o mistério da poesia. Na frase (prosa) a palavra se gasta (o prosaico é corrosivo) e pode ser substituída por outra; no poema (ou linha), a palavra nunca se gasta nem se exaure, antes, adquire mais valor, valia super, torna-se mais palavra do que no dicionário, na lição excelsa de Cassiano Ricardo. E essa resistência – e sobrevida da palavra poética – é tão alta que absorve as tenazes tmeses de Cummings. As magnificantes interpolações de Pound, as supervirtudes reais de Breton, os objetivos correlatos de Eliot, as maquinações imagéticas de Joyce, e assim supera dialeticamente as aventuras e vicissitudes da poesia. Desatomatiza o espírito. Mas, por que a predominância, na poética do século 20, do hermetyismo, ou o que torna a poesia indizível?
Outros quinhentos.

SETE VERDADES

O poema não precede a quem produz ou aprende.
O bom poema sugere sua própria e completa indecifração.
O interprete deve estar dentro do poema
(o belvedere do significante mira o significado).
Poema nenhum açoita sentido prébio, determinado, quantificável.
Um poema não é como água potável, mas esgoto, certeza de limo, verdade de todo.
O poema é apenas lance do destino e não algo construído dado do acaso da tábua de palavras lançado que nenhum azar abole.
(sua função não é pranto de coração nem turbilhão de emoção rimada com empetaladas palavras já esperadas).

TÁBUA DE DEDICAÇÕES

A minha hipócrita leitora.

À sublime leveza da nudez feminina a única verdadeira, desde Eva (que faz os homens flutuarem).
À folha ou falha da erva, à relva tênua, límpida, rala, lúcida, irônica, proibida que atapeta o púbis da menina.
À longa e grata fascinação do abismo e do adjetivo.
Ao eterno trabalho do pó.
Ao inútil trabalho dos lírios.
Ao sopro do barro.
Aos carvalhos proféticos de Dodona.
Ao éter, pai e vazio.
Ao abismo voraz ímpeto suicida.
Ao vácuo quântico de que veio o mundo.
À estéril vigília da vida, à pálida aurora repetitiva e enganosa aos olhos ávidos dos vivos ao verme que ao rosto dissolve.
À cor morta a que a noite nos transporta.
Ao maxilar de cada instante que nos tritura.
À corporeidade da azáfama.
E outras metafísicas cambrianas.

TRÊS POEMAS

O reconhecimento da cumplicidade é o começo da inocência.
O reconhecimento da necessidade é o começo da liberdade.

POEMA À LEITORA

Iludida irás à sombra
Leito áspero onde
Rosas te esporam
E crucificas espinhos.
Deixa apenas o poema
Debruçar-se sobre ti.
Não forces o sentido
Insensata. À fórceps
Não me saboreais.
Sou apenas palavras
Em ordem secreta
Costuradas por fios
De tenras metáforas
Sigilosamente arranjados
E como mônadas
Espelhadas na página
De teu rosto sem máscaras.
Eu não sei onde quando
Que rotos sonos
Aos erros te levaram.
Moendas do tempo
Rodas e mãos ágeis
Te conduziram
Até onde o ouro acaba
Até quando a hora amara
Chegar. De decifrar-me.
Qeres ficar onde
Tuas dores contam.

O POEMA

Contém-se na forma encontrada
E contém a que o encontra.
Leva à completa embriaguez verbal.
Não é senão trânsito
De palavra por nossas veias
Pelos adjetivos de nossas almas
Tramite das gramáticas do corpo
Em forma de fantasmas
E figuras encarnadas
Pelos veios do espírito.
Sombra que enardece
Até a incandescência.

TERCEIRO POEMA

Da folha da página nasce a árvore do poema.
Atado aos demônios úmidos cativo
Das bestas dos delírios vastos alço-me
Aos píncaros de pórfuro onde pássaros debulham canções de milho
Latino-americano e puro.
Dilemas e redomas enfrento, persigo maiz
Naufrágios e aromas ultrapasso
Amidos e edemas me assediam o rosto entediado tigre.
Vivo amor sem treva ou tortura.
Em mim lavra safra de murmúrios, grassam ternuras espessas épuras intimas
Tâmaras errfam, nascem temores, atiçam-me
As cores lentas dos rumores
Desejo tardes de safira, feitiço de esferas ilude-me as pupilas.
Amanhece. As loucas do cansaço quabram-se.
Rompem-se os véus da volúpia, cessa o encanto quando finda
O amor e começa
O tempo das cóleras equiláteras que cega antúrios, rasga gaivotas
Envenena orquídeas.
Eis que ingressa no recinto do corpo a hora facínora
Que fere de penúria o jardim e rosna como naipe de infâmias
É o demo da libido que assoma a meu rosto
Infinito e morto, último refúgio da lascívia pura.
Limbos de amianto vândalo
Hiatos de desenganos, gerúndios, hotéis gelados
Como os desejos urebanos. O ventre de duro abutre
Ferros edificados, raízes de gusa errante.
Quando cessará a ditadura do neon, quando o anúncio de seu fim luminoso?
Quando cessará o câncer da indiferença metropolitana?
Quando o abutre da solidão nos desabitará?
Quando a morte dos outdoors da ira, dos duelos fraticidas dos escândalos políticos?
Quando clips hórridos e sífilis voluptuosa deixarão de ser a bíblia embirgada das metrópoles ahabiatdas de cansaço e luxúria?
Quando a noticia que grassa dirá da entranha do pássaro do esgar fidalgo, da ruina intemporal, da morte do barro vão?
Enquanto a vida vã segue seu périplo fecundo e exangue a esperança se fina, embrutecida e maculada.
Alimenta-nos lauto espetáculo das vitrines.
Alumia-nos breu súbito que habita robôs e pentágonos a escurecida úlcera dos cotonifícios.
Ó trêmula califrafia de sombras, parvo e torpe itinetário de informe contorno,
Ó estranho tornado de arumas,
Ó caligem que acampa na face das auroras industriais
Ó câncer fundo da pressa e cúbica lepra da usura
Ó fecunda náusea,
Ó logro puro e sedento,
Ó estanho humano,
Ó insanos negpicios anti-humanos, intumescidos de astúcia mercurial, imobiliária
Ensinai a nosso tempo morrer sem garbo, em veludos caros corroídos por gusanos, por vermes pagos e ávidos cercado de orações contábeis, âncoras agrárias, debêntures
Ensinai que a vida não é digna dos incautos e mortal aos contemplativos de todos os credos e de todas as praças, esperanças ou cemitérios.
Eis a moça que passa ao largo do sonho como navio bêbado
Faz delirar avenidas com seu andar trêmulo ou carnívoro a espetar pássaros com olhos de topázios vazios.
Quando ela passa me habita de silêncio.
Refugio-me nos punhais acesos da solidão.
A manhã segue seu curso claro, como cavalo límpido ou bravo
Indiferente à tristeza das faces, aos galopes da ilusão desatenta às indiferenças
Que corroem a velha alma do século.
Um lobo gris suja a noite malva
Benévola sua garra
Esculpida em urros nos capiteis da náusea.
Por que louvar
A morte de crianças – e o mundo miserável
Com falso lirismo e ode inútil
Ao duodeno destinada?
Fale!

MONÓSTICOS DE CARBONO (ONE-VERSE-POEM)

De mônada em mônada enche-se o nada.
A dúvida esclarece a vida.
Sono (fruto) de pedra e abandono.
Olvido tem forma de guarda-chuva fechado.
Cabe ao morto desenterrar o uivo.
No coração do esterco jaz a (fértil) verdade.
Bate pinos biela do meio-dia.
Extasia nudez o vazio.
Sibila bate ponto em Delfos.
Somos contemporâneos apenas da morte.
Platão era menina (dos olhos) de Sócrates.
Homero amava Penélope.
Sócrates era pedófilo.
Aristóteles gago (de pedra).
Dionisio amou Adônis.
Shelley amou a morte.
Byron bebeu caveiras.
O minotauro amava Ariadne.
Ulissos deitou com Polifemo.
OBS:
Amou o ciclope no leito de pedra da caverna
Onde Platão semeara sombras.

A TONA DA VERDADE

Pense nas dores disfarçadas sob falíveis véus encobertas por palavras prenhes de ilusão
Pense nos aficionados a rios tortuosos nos passeios dos suicidas
(e extremas cartografias das platibandas do abismo que encaram)
Onde vamos sem prazer nas noites desarvoradas
A remar contra maré de muralhas
Da garganta da água buscar refrigério a ver o barco ébrio afundar.

E o outono do seio que outrora em tenros dedos enrijeceu
Súbitas e atrosas aparecendo de suas aréolas trêmulas
Primaveras de redondos hortos desabrochando
Rosa dos mamilos para o pomar das mãos.

Cavo eco do mar sábios vuzios quebrou em dúzias de líquidos vitrais.
Ciosas sereioas em ânsias de Ulisses dilaceram-se.
E conchas marítimas estriteceram vendo amantes fugirem para seus medos.
Quem tenha quintal sujo nunca critique jardim alheio.

SAL DA LUZ

O poema é um mundo enterrado num homem.

Cão interior late menos quanto mais sal forneçamos.
Rumor de rã desagua do tanque do jardim ruído escorre dos arredores de Pequim.
No frio cais sonolento Caronte conta sombras.
Fatigado recolhe moedas do que restou da boca dos mortos.
Quanto mais lama, mais suínos
Quanto mais estrelas, maior céu noturno
Quanto mais tempo, mais eternidade.

RESPIRAÇÃO DA LEITORA

Clareira de fôlego, alvorada branca para que a essência de trovar escuro apareça.
Oásis brancos para que a sede não pare
E o leitor recupere o animo ante o pântano da página que é o poema.
Exorto e digo o para quê do poema e da canção noturna.

AS MÔNADAS DOS SÁBADOS

Aos cônsules inconsúteis
A Barros de Carvalho e Mello Mourão
Aos brâmanes persas

As mônadas dos brâmanes
São ondas de sombras
Bramantes tapetes
Rodas de carne
Odes de sabre, dobras
De súbitas corolas, obras
Da veloz passagem.

EXORTAÇÃO AO LEITOR

Leitor, faça alguma coisa,
Tome um conhaque com a taça em riste
Devore vinho tinto e sonâmbulo
Desista de conhecer o poema, beba-o, morda-o com dentes parmenedianos úmidos
Liberte as grades do desejo
Incinere dores e pássaros
Faça voar a gaiola sem voo dentro
Varra também o tapete (com o poema
A água do banho da gramática jogue)
Para bem onge do lixo, amamente
Bois mecânicos, abismos, galos coesos, mitos
Manipule pêsames brancos, ossos de baunilha
Liças de abelhas desafie, enfrente pusilânimes
Fabrique lenços para adeuses provisórios
Com lágrimas incluídas
Incite máscaras de lástima e nuvens
Para dias de nojo e enjoos sujos
Corteje a sombra dos gasômetros
Extinga cotonifícios, precipícios alimente
Erga a chama farmacêutica, o óbolo sublingual
Blide esperanças e mansões, mas
Não deixe nunca ciar da mão esquerda
A bandeira esfarrapada do poema
(e nunca o abandone
Em meio a um aparente sem sentido
Que beire a página ou o delírio
De cujo lábio guarde o contorno
Ou a máscara cosmética – não o cosmo).

CANÇÃO NOTURNA

Flauta frigia ânimos incita
À ira, corrobora a guerra lírica
A alma animal desarma
Ferrenhas virtudes dos guerreiros apura
O bélico furor atiça contra civis afetos
(que o possesso Platão ensina)
E chama decante no fogo que aterra
A lídia flauta cavas exéquias
E lamentações das vítimas modula
Extintas canções dóricas copia
Hinos votivos ilumina
E a eclesiástica noite incendeia
Enclausurada em pesadelo de candelabros
Na veia das coivaras injetada
Para glória da manhã que denuncia.

Eis cortejo oloroso
De cinzas de rosas
No páramo deixando
Rastro de aromas
Pira de perfumes
Rendas de narinas
Olores de ouro e prata
Nos ermos intrincados da alma
Nas furiosas veredas das horas.

Eis cinzas dos sonhos
Que vida ferina
Em coivaras tornou
Corroendo a útlima
Rua do mundo
Intimo confim expondo
Para coroa espúria do fim
Para leito da morte de mármore
Olhos estilhaçados apontados
Escuridão recortada em marfim.

Que buscas peregrino da aurora
Cavalgando ginete de estrelas
Por estradas que a luz avassala
E a árida coivara sempre devora
Quando o rastro da hora coagula
O gesto náufrago da avenida nua?

Busco o rosto que Narciso toldou com seu orgulho
E espelhos para mirar-te antes de partir
Para a mansão noturna e arredia.

Há gotas no rocio
Joias suspensas dum escrínio azul
(pepitas do parnaso natural)
Há lágrimas de magnólias
Que esgrimem com rosas, com espinhos digladiam
Caindo do ramalhete dos olhos
Do jardim do rosto despencando.

Troque ócio pelo verso rima pelo vício
Cure com poesia enfermidade do tédio.

Drágeas da imaginação prefira aos barbitúricos da vida
Longe da cocaína da inveja
E do ópio da lisonge alongue seus dias.

Não há melhor antidepressivo
Nada ultrapassa o remédio
De um soneto de Waldemar Lopes ou Camões
Dedilhado ao longo de uma tarde de larga poesia
Acantonada num copo de uísque,
Sob batuta do desejo vespertino.

À ESSÊNCIA NUA DO TROVAR ESCURO

O poema acontece.
A imagem brota do nada ao encontro
Da palavra em jorro breve, largo, lépidos flashes crassos
Ou puros, mas descontínuos e lassos, adjetivos.
O poema não nasce classicamente, não é a recolha
De uma messe de letras, algo que vindo em semente se assemelhe
A um fervor agrícola, a um molho de semestres
(ou motim equestre)
Cereal do verbo que plantado emirja (pão undécimo)
Sob égide de uma estrutura, voo de baunilha
Sob pátio de uma história, esquema hábil
Em aritmética e música, partida dobrada de emoção diurna
Como soem ser “poemas despoietizados”.
Acontece, súbito relâmpago, voragem
Que escurece o jugo das palavras
Presa do dínamo narrativo, catraca do sentido
Poema acontece sob trilhos próprios do tempo (a esmo do sentid)
Descarrilha antes de sujeitar-se à estação da gramática.
Nas rédeas insolentes do inútil e da intriga
Perde abrigo, ganha refpugio
Do tugúrio do sintagma
Desconexo habiuta, nas minúcias
De um espaço passivo inacabado sempre demoníaco
Talvez imóvel (semovente)
Como um sino antes do primeiro repique
Como eco prisioneiro do bronze.
O poema surge e ressurge e incorpora-se à paisagem
Do tempo como a lava de um vulcão à geografia do olho
Encarna-se na passagem do fruto como a boca do mundo.
Emerge dado, acontecido, fato de palavras construído
Por parcas porfiosas tecido, por gestos irremediáveis alinhado, penélope a Penélope, a trama do inverso vertido
Fruto da epifania do verbo do projeto da página concebido.
Vêm os poemas do repudio da suspensão do temor
Da carne do incomunicável (do comunicável não é preciso)
Fluem do imanente, mas desprezam talvez o contudo
E toda a transcendência do palavrosos abominam.
Vêm com
As hostes do gerúndio para república do verbo edificarem sobretudo
(com pás de palavras, arados de adjetivos, martelos
Para temperar metáforas, alicates, metonímicos).
Do frutífero inconsciente, do prolífero critério
De imagens suínas (e grupais inclusive) é fruto também.
Adota o infecundo e a intempérie como símbolos
E as carnes da prosa para sua fome metafórica
Para sua glória meteórica.
O poema ergue-se de um reservatório de escombros
De uma legião de dores, de um cesto de torsos arcaicos
De uma usina de sombras fecunda e dínamos solares
Para a claridade da palavra, para o foco da essência, íntima, vasta.
Advém o poema de uma zona cega (ponto morto)
Perigosamente impura
Estranhamente nua.
Vem a poesia ao poema em fragmentos de mundo
(o que o obus da palavra deteriora e salva), em forma de olhar
De termores, de dias sobambulos, de vazios intenso.
A poesia depende do silêncio acúleo do poeta
Que fere a palavra, deixa-a dizer-se
Fazer-se em poema insensato
Arrastar-se até a página, leito ou útero de sua rebentação imagética.
O poema vive às expensas de porfiosa Ariadne
Fricativa, fina frágil sílaba de fonte e mistério, guia
E amoroso caminho, indefesa luz
Abandonada gema.
Se o poema não tem a aparência do que vem feito
Sua essência é falsa fabricada por máquina de prosa
Engrenada a discurso diesel.
O poema é dínamo movido por musas atadas
(deuses estanques)
Ao subconsciente do mundo
À inconsciência da coisa que o ilumina elevado
Por oficio rebusca, rubrica, denuncia ou afaga
A palavra dicionária.
Todo poema é sonambulo sob pena de ser narração
Do nada, doença do sono, dor da vigília, artificio da alma.
(se o poema não passa do limite da página em branco
Publique o mundo
Urre por ratos urbanos
Suicide-se com o alfanje da palavra
No pescoço do sentido).
Mas nunca diga que poeta é um fazedor de signos cegos
Artesão de metáforas encaixotadas em urnas sonoras
Em diapositivos de música ou um reles fingidor
Do mundo de que se demite.

SETE POEMAS SEM CAUSA

Oásis são conveses das naus de areia.
Gáveas ninhos das nações do vento belvederes azuis, cenáculo para desfile dos elementos.
Gaivotas sonoras estrelas marítimas, águas voando.
E o coração âmbito de delírio.
Sob tempestades ou calmarias de palavras poetas sucumbem ou se salvam.
As estações do amor estão fechadas.
Para demolição. Definitiva.
Rações de vento para sôfregos.
De água para náufragos.
De ira para deserdados.
De ódio para derrotados.
De dor para desamados.
Tudo para nada.

SÊMEN E FUGA

São Luís lambua à luz do amor em ágape profundo (sorvo imundo)
Escrófulas dos súditos e aos centos corrente pus sorvia
(As via como pêssegos vivos ou melancias).
Na Babilônia fornecia-se ácido muriático para quem sofresso dor ciática.
No percurso da acácia há inválido rumor de luar, jorros de cevada.
(Além do cavalo apocalíptico à tardinha).
Crédito vale mais que credo.
Amor também é abjeto.
Toda masca inspira-se num rosto.
Cegas luzes da melancolia.
Vida feita de ruinas brancas, demolições lentas, opções frágeis como uma cereja ou um bordel e dilemas como o verme ou a rosa.

MONADA? (O ÁTOMO DE LEIBNIZ) – Pequeno protozoário (de onde viemos, da monera primitiva, dixit Darwin) de um só flagelo. Que possuía sumultaneamente qualidade de matéria e espirito. Átomos da natureza, elemento vital das coisas. As mônadas, na teoria monodológica de Leibniz, são impenetráveis (muito além dos himens comuns) a toda ação exterior, guardando similitude com minha teoria poética de que as palavras no poema devem resistir a toda força hermenêutica que a elas se imprima ou sujeite. A todo esforço (vão) de decifração de críticos e leitores (não mais desavisados) que caem como lobos sobre cordeiro da poesia, da pele do poema, para devorar sem piedade ou demora. Devemos (neopoetas) negar-lhes esse triunfo fágico. Que quanto mais sofrerem e mais suor exegético derramarem, melhor (críticos e leitores). Mônadas poéticas diferem dos átomos mecânicos dos versos tradicionais, assim como Demócrito de Max Planc. Ou das antigas moléculas parnasianas da poesia. Mônadas deriva de monos (só, único). Ente simples, unidade vital (substancial) de que, segundo Leibniz, são formados todos os seres. Equivalente ao átomo Demócrito.


BANDO DE MÔNADAS – Poemas extraídos da obra Bando de mônadas (Bagaço, 2011), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo. Veja mais aqui e aqui.


MÔNADA/MONADOLOGIA[...] Os corpos materiais, por sua resistência e impenetrabilidade, revelam-se não como extensão mas como forças; por outro lado, a experiência indica que o que o que se conserva num ciclo de movimento não é – como pensava Descartes – a quantidade de movimento, mas a quantidade de força viva [...]. Trecho extraído da obra Os princípios da filosofia ditos a Monadologia (Abril, 1979), do filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 – 1716), na qual o autor a partir da noção de matéria como essencialmente atividade, chega à ideia de que o universo é composto por unidades de força, as mônadas, noção fundamental da sua metafísica. Essa noção, contudo, não se esgota na adição do atributo força ao conceito de matéria, formulado por Descartes. Ele chega à noção de mônada mediante a experiência interior que cada indivíduo tem de si mesmo e que o revela como uma substancia ao mesmo tempo uma e indivisível. As notas que caracterizam as mônadas leibnizianas são a percepção, a apercepção, a petição e a expressão. Os princípios do conhecimento assim formulados levaram a uma concepção oposta ao cartesianismo, uma vez que este formulava uma concepção geométrica e mecânica dos corpos, enquanto Leibniz construía uma concepção dinâmica, explicando os seres não como máquinas que se movem, mas como forças vivas. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.