A
ARTE DE SER PROFANO DE FERNANDO SPENCER – O vídeo A arte de ser profano (1999),
do cineasta e jornalista Fernando Spencer (1927-2014), traz o pastoril profano
em Pernambuco, na figura do Velho Xaveco (Antonio Coutinho, Bezerros –PE), um
ferroviário aposentado, compositor, percussionista e ex-forrozeiro que
desenvolve atividades com o pastoril profano, autor dos álbuns Eu já fui bom
nisso (1991) e Pacu pequeno, pacu grande (1995). O vídeo conta com fotografia
de Elias Valadares, Iluminação de Gilmar Luiz Ferreira, edição de Tuca Maia,
roteiro e direção de Fernando Spencer, narração de Renato Phaleaente,
assistência de produção de Walter Carneiro. Veja mais aqui.
segunda-feira, abril 30, 2018
A LITERATURA DE JOSÉ ARLINDO GOMES DE SÁ
PRELÚDIO
EM BREVE EMBALADA ARMORIAL
- O dia
é limpo quando o astro incandescente
Alumia o
passo da gente
Que vai
cedo pro roçado.
Cantando
as mágoas no roteiro da estiagem
Sem faltar
com a coragem
No aço
quente do machado.
- E nas
veredas acende as cores fortes do Pajeú
Mata a
sede com imbu
E a fome
com bode e farinha.
Termina a
jornada no aboio triste da tarde
Que na
goela seca arde
Como se
tivesse espinha.
- A
cantiga reacende e mais tarde continua
Quando à
noite chega a lua
No compasso
da serenata.
Abrem as
janelas com os acordes das fantasias
E só
encerram as cantorias
Quando a
aurora desata.
- E o
tempo escorre na cadência do meu rio
O ano
passa o desafio
De mais
uma dor consumida.
Se quer
saber venha na seca com o sol vivo
Talvez assim
fique cativo
Da embalada
dessa vida.
CANÇÃO
DO AMOR DITOSO DO RIO DO PAJÉ
Tudo que
amamos
No rio
do reino quente
Tem o
sopro do vento norte
Que bafeja
as vertentes pedregosas
Da cosmogônica
Serra do Arapuá
E roça
de leve os rostos lanhados pelo tempo.
Tudo que
temos
No espaço
incandescente do Sertão
É a
estrela variável e companheira aquecendo
Com a
esperança, o amor e a fé
Corpos trançados
por centelhas ocres
Que não
se desalentam com o chão por despertar.
Em tudo
sentimos
O gosto
adusto da terra terrosa.
No rio
dos poços alumiados pelos sonhos
O sentimento
telúrico de encantação
Amanhece
nas veredas ribeirinhas do Pajeú
E anoitece
na paz do luar que banha as calçadas.
(Poemas
extraídos da obra Águas do Pajeú: poema
dos pejeuzeiros – Recife, 2002)
UMA
HISTÓRIA DE AMOR SERTANEJO
[...] Quando o vaqueiro Cristóvão montado no
pedrês estancou o cavalo na beira do rio, seriam talvez cinco e meia da tarde.
[...] Ergueu a cabeça, apurou a vista e no horizonte próximo à sua esquerda o
sol já tinha se escondido e o deixara o clarão avermelhado iluminando o que
restava do dia. Cristóvão herdara muito do temperamento do pai, o vaqueiro
Amâncio. Da mãe, Mariazinha, apenas a mansidão, que só se manifestava em raros
dias chuvosos. Era um desses homens destemidos que enfrentam desafios para
retirar o mel ou o primeiro suco, mesmo que o resto do fruto fosse riqueza ou
utilidade para muitos. No seu jeitão simples, direto e decidido tinha palavras
breves e bem colocadas. Contava histórias curtas, todas verdadeiras, que lhe
aconteciam e que sempre deixavam algum ensinamento de vida de homem livre que
levava e para quem parava para ouvi-lo nas conversas das barracas de feira que
gostava de frequentar. [...]. Marilena era uma moça com pouca iniciativa, mas
se dedicava a qualquer tarefa com entusiasmo juvenil quando uma de suas amigas
tomava a liderança de algum movimento social. Foi assim que se revelou
excelente bordadeira, mesmo sem nunca ter mostrado qualquer pendor, quando sua
prima Lucivânia pediu para ajuda-la na confecção do enxoval de casamento e do
primeiro filho. Resolvia todas as coisas na hora, sem pestanejar e depois das
serenatas que lhe dedicavam os rapazes da cidade, costumava afirmar que
acordava sempre com a impressão que tivera naquela noite uma aventura heroica,
sendo ela um objeto de desejo em meio a uma disputa, uma epopeia. O amor é um
jogo de muitas forças, que lhe requeria muito equilíbrio para controlar as
emoções muito fortes que giravam em torno dela. Nunca se conhece a razão de um
amor. [...] E uma notícia estava espalhada nas ruas, nas esquinas, nos bares e,
sobretudo, no ambiente carregado de tensão da casa de Marilena: - O vaqueiro
Cristóvão roubou a filha do coronel! A velha dona Iaiá, que já entrara em muito
tempo pela casa dos sessenta, desmaiou com todo o peso do seu corpanzil no
cimento liso da sala de visitas da casa assobrada ao ler o bilhete de despedida
deixado pela filha do meio (dias depois, corria o boato que a moça tinha
perdido a virgindade; e que diante do caráter antiquado e intransigente dos
pais, não tivera outra alternativa a não ser aquela fuga). O coronel Clodomiro
não resistiu ao impacto da vergonha: caiu ali mesmo e morreu fulminado por um
colapso cardíaco. Dona Iaiá, que fraturou os ossos do braço e coxa direitos,
viveu o resto dos seus dias na sua cama imperial e faleceu dois anos depois
numa tarde chuvosa de relâmpagos e trovões. Cristóvão e Marilena ganharam o
mundo. Anos depois, veio a notícia do Pará. Não se sabe o motivo pelo qual dos
dois não tiveram filhos. O vaqueiro morreu numa discussão com um sócio, pelo
controle de uma área de garimpagem em um daqueles rios quase inacessíveis da
Amazônia. A donzela enlouqueceu e terminou escravizada no bordel mantido pelo
assassino. [...].
(Extraído
da obra As viagens do Pajeú: crônica de um rio – Vanguarda, 1997).
MINHA
TERRA, MINHA GENTE, MEU BARRO
Descendo da linhagem de um rio poético, cosmogônico
e pelejado com boiadeiros. A família tia um recanto consagrado na esquina
universal dos encontros, por onde o rio jorrava incumbências. Em sua serenidade
navieira e pajeuense, minha mãe cuidava de embalar na rede abridora do
amanhecer os sonhos dos filhos do Pajeú e do Navio. As origens de água e de lua
já estavam seduzidas nas areias do reino abrasado. Refolhado nas grotas dos
riachos, cresci entre a gente humilde e as veredas que levam ao âmago da terra.
Por gosto de pisar descalço, apreciava permanecer alumiado ao relento dos ipês
e mulungus e ouvir a sanfoninha dos canoeiros na travessia do chão ribeirinho. E
aquelas permanências amontoando folhas, que se transformavam no borralho dos
caminhos da serra do Arapuá, fascinando ideias nas letras da escola, cedo
descobri que todas as palavras seguiam os passos do coração do rio, fluíam entre
os riacho de mel e viajavam nas asas das aves de arribação. [...] A terra,
minha gente, meu barro, o canoeiro à espera das trovoadas, as pedras do rio
refletindo o sol, a rede que range no torno de imburana, a luz amarelo-ocre do
carrascal, a paz melancólica da tarde que se esvai e a noite tépida da
serenata! Ah, belos amores sem fim e sem meios entre os poços e o sol, refeitos
pela aurora do Pajeú! Areias de minha vida ribeira, os olhos ainda cheios de
verde da momentânea lembrança das águas barrentas, neste desertão todo
recortado de ais. Canção solene, lúcida, dorida... Por que sinto minha voz
embargada? Canoeiro, atravessemos o rio de águas mornas como um sinal de
ardente sina e conduzi-me agora, onde gira a flor do vagaroso desejo, da
silenciosa saudade entre as dores que nos estremecem! Ó peso da vida, dai-me a
voz do coração na grande estiagem dos velhos dias terrenos, antes de morrer na
solidão das veredas pajeuenses! Mas no desconcerto das coisas inacabadas, já
comecei a cantar as natências das terras florestanas para robustecer os seus
encantos. [...];
Extraído
da obra Andanças do Pajeú: poesia e prosa (Coqueiro, 2014).
A MULHER
NO CAMPO
[...] Ela nasceu aqui mesmo, por trás da aba
da serra, em um sítio cheio de fruteiras, de uma família simples. [...] Com um
sorriso que não se apaga – nunca a vi sem aquele sorriso – ela explica que
ainda tem muito o que aprender com a natureza, mas que seu segredo, aquilo que
a impulsiona é a vontade de viver a cada instante, sem pensar no que passou ou
no que virá, basta o agora. – É só vivendo o presente que podemos amar os
outros! Essa descoberta foi feita nos primeiros anos em que o Frei Damião vinha
fazer sua romaria, quando ela percebeu que “tudo é amor de Deus, mesmo as
dificuldades”. [...] – Nunca tive dificuldade com meus pais, minha família, em
casa ou no trabalho da roça. Mas procurando amar cada um como gostaria de ser
amada. A primeira experiência que tive nesse sentido foi no sitio do vizinho,
que vivia a viuvez de quase dez anos. Ao chegar, vi toda casa suja. Não era
minha tarefa limpá-la, mas fiz por amor. E senti uma grande paz. Depois desse
episódio, seguiram-se muitos outros, pequenos gestos que a fizeram descobrir,
aos poucos, uma nova maneira de viver, que a deixava sempre mais encantada com
o dom da vida. [...].
(Extraído
da obra O sorpo do vento da aba da serra – Coqueiro, 2009).
O POETA
SE APRESENTA
Nasci no
Reino Abrasado
Bem no
meio do Estado
Que fica
daquele lado
Onde se
cultiva o imbu
Minha terra
tem cultura
De reza
e de benzedura
Gente bonita,
gente pura
Que ama
o rio Pajeú.
GEMIDOS
DA TERRA
É quando
a seca aumenta
Que o
sertanejo enfrenta
Sua criação
sedenta
Comendo até
mandacaru
A situação
é muito triste
Que a
gente sofre e assiste
O boiadeiro
que resiste
À falta
d’água do Pajeú.
O
CANTADOR
É firme,
forte, inteira
Na varanda,
na praça na feira
Essa voz
tão brasileira
Sertaneja
assim como o beiju
Constrói
belas emoções
Distribuindo
as ilusões
Para reforçar
os corações
Com as
cordas do Pajeú.
(Poemas
extraídos do cordel O rio e a cidade – Cadernos Pajeuenses I – Coqueiro, s/d)
CANTORIA
EM CHAMAMENTO
Prestem atenção,
que o pano vai ser aberto!
Venham todos,
venham logo para mais perto!
Vamos decantar
a vida desse Reino Abrasado,
Sonhos de
lume e paz, deserto de amor sagrado!
Chamem o
sol e os odores do seu nascimento!
Deixai-o
que repouse nos braços do sentimento!
Um rio
forrado com frutos para sonhar!
E um
candeeiro aceso que me possa acordar!
Um riacho
de encantos que a gente quer ter
E braços
longos nas roças que nos façam crescer.
E assim
desvelar os olhos, encontrar a vida
E amar
com o amor de areias incandescidas!
(Poema
extraído da obra Recital do Serão do Rio Pajeú e do Riacho do Navio –Universitária,
2002).
A PELEJA
DE JOÃO MÃOZINHA E BIU DO PIFE
João
Mãozinha:
Cumpade
Biu do Pife
Meu foguete
é medonho
O pife
soa bonito
Do fogo,
porém faço sonho
Biu do
Pife:
Eu
sempre vivo risonho
Com meu
pife encantado
E seu
foguete clareia
Meu som
pelo arruado
João
Mâozinha:
Se não
tive soltado
Minhas lágrimas
no céu
Ninguém lhe
daria aceno
Com a
aba do chapéu
Biu do
Pife
Eu sei
que seu fogaréu
Ilumina o
céu do Pajeú
Mas o
pife afinado
Tem o
canto do uirapuru
[...]
João
Mãozinha:
Feio é
não reconhecer
Que em
toda festa
Meu trabalho
é bonito
E nenhuma
dúvida resta
Biu do
Pife:
Os
tamarindos de Floresta
Se enfeitaram
de alegria
Do empate
dessa peleja
Voltaremos
noutro dia
(Extraído
do cordel A peleja de João Mãozinha e Biu do Pife – Cadernos Pajeuenses II - Coqueiro,
s/d.)
JOSÉ ARLINDO GOMES DE SÁ – José Arlindo Gomes de Sá é médico, poeta,
contista e cordelista, membro titular da Sociedade Brasileira de Médicos
Escritores (SOBRAMES – PE), e autor de diversas obras. Veja mais aqui.
CONGRESSO MATÉRIA- PRIMA
CONGRESSO
MATÉRIA- PRIMA – Acontecerá entre os dias 10 e 13 de julho de 2018, na
Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), em Portugal, o VII Congresso Internacional
Matéria-Prima: práticas das Artes Visuais no ensino básico e secundário - VII
Congresso Matéria-Prima, 2018, com o objetivo de lançar desafio aos professores
e investigadores em ensino das artes visuais, de partilhar novas perspectivas
operacionais de desenvolvimento curricular com focagem nos seus resultados
concretos. A proposta do evento está voltada ao tema geral do ensino das artes,
perspectivas e exemplos do terreno, pretendendo criar um espaço de partilha de
experiências com resultados de trabalhos desenvolvidos em unidades de trabalho
e respectivas reflexões sobre o sucesso, avaliação, adequação. Trata-se,
portanto, de cruzar olhares entre os profissionais experimentados, os
investigadores em práticas pedagógicas e em desenvolvimento curricular e os
alunos do mestrado em Ensino das Artes Visuais (UL) que ensaiam apoios nas
experiências educativas. Maiores detalhes aqui.
quinta-feira, abril 26, 2018
DANCE NO LIMA 2018
DANCE NO LIMA
2018 – Acontecerá entre os dias 25 e 27 de maio de 2018, às 19hs, no Teatro
Lima Penante/NTU, na Rua João Machado, 67 – João Pessoa – Paraíba, o Dance no
Lima, com o objetivo de promover apresentações de dança em todos os seus
estilos e tendências com o objetivo de difundir e estimular a diversidade, a
pesquisa e a produção em dança, incentivando a reflexão sobre temas atuais na
área visando ainda a criação de plateia. Maiores informações aqui.
quarta-feira, abril 25, 2018
O CARA DE FOGO, DE JAYME GRIZ
O FANTASMA NEGRO DO BUEIRO DA USINA CUCAÚ – [...] Encontrado o dobrão de
cobre, grande alvoroço da turma de trabalhadores e dos curiosos que apanhavam
os trabalhos de derrubada da capela. Parou todo mundo de trabalhar e de ordem
do cabo da turma, um sarará de Porto Calvo, que gritava mais para seus homens
do que trabalhava, chegou por mãos de um preto um ferro-de-cova que por este
passou a ser usado na escavação do lugar onde fora encontrada a moeda de cobre.
A certa altura do trabalho do preto o ferro-da-cova bateu em qualquer coisa lá
embaixo. Uma pedra ou um pedaço de ferro. Pareceu mais ferro do que pedra, pelo
som da pancada. O preto estremeceu e parou no seu trabalho. Levantando a cabeça
para os presentes, disse: - “É a botija!” E todos prorromperam em gritos: - “A
botija! a botija!” E o sarará berrou: - “Quem não é da turma, fora daqui! Fora!
Fica de longe!” Afastando-se os curiosos, prosseguiram os trabalhos. Foram
arrancadas outras lajes em derredor do espaço escavado e depois, com o uso de
pás, chegou-se finalmente ao ponto onde estava a coisa tocada pelo
ferro-de-cova. O sarará fez parar os trabalhos e ele próprio desceu à escavação
e examinou o que estava lá. E falou: “É uma caixa de ferro”. Outra vez
prorromperam novos gritos: - “A botija! a botija!”. [...]. Trecho do conto O
fantasma negro do bueiro da usina Cucaú, inserido na obra O cara de fogo (Museu
do Açúcar, 1969), do poeta, jornalista, economista e folclorista Jayme
Griz (1900-1981), analisado no artigo Lendas, crendices e abusões: alegoria e
história em O Cara de Fogo, de Jayme Griz (Revista Entrelaces, Jan.-Mar, 2018, pelo bolsista PIBIC-CAPES do Departamento de Letras da
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Ivson Bruno da Silva, sob
orientação do professor João Batista Pereira, concluindo que: [...] Decerto, o conto de Jayme Griz ultrapassa as
tentativas de ser enquadrado no âmbito dos pressupostos conceituais da
literatura fantástica. A recorrência ao mito, ao folclore, à oralidade e ao
mundo rural que o acolhe, além da singular e afetiva abordagem como ele transfigura
o insólito, dificulta situá-lo nos condicionantes teóricos usualmente adotados
para o estudo do gênero. Ao fim e ao cabo, permaneçamos com a essência do que
suas histórias emulam: a capacidade de instituir a sabedoria por meio da
memória e da tradição. Lembremo-nos de que os temas dos seus contos somos todos
nós, são nossas histórias, mantidas vivas cada vez que são verbalizados
repetidamente, necessitando sempre de quem as escute para não se perderem na
escuridão dos tempos: “E como ouço ainda esses distantes ecos...”. Veja
mais do artigo aqui e mais de Jayme Griz aqui e aqui.
segunda-feira, abril 23, 2018
ANA DE FERRO, A RAINHA DOS TANOEIROS
ANA
DE FERRO, A RAINHA DOS TANOEIROS – O espetáculo Ana de Ferro - A rainha
dos tanoeiros, produzido
pelo Grupo Teatral Risadinha, texto da carioca Miriam Halfim, está com
apresentações previstas para os próximos dias 28 e 29 de abril, no Teatro Marco
Camarotti (Sesc Santo Amaro, rua Treze de Maio, nº 455), em Recife, unindo história
e ficção conta a história do relacionamento vivido entre Ana de Ferro e
Maurício de Nassau, no período holandês pernambucano. Maiores informações pelo
fone (81) 3216-1728 ou aqui.
domingo, abril 22, 2018
BUROCRACIAL DE VITAL CORRÊA DE ARAUJO
sou poeta
nomeado por
concurso
(conserva de
vida letrada
para patíbulos
da posteridade)
sou o timbre
da voz pública
carne de fé
oficial
para a fome do
porvir
cidadão da
sinédoque
servo da
sinecura
caneta do
mando
e do mundo
soldado do
estado puro
do lucro e da
lírica
munido senso
do aço e do
cívico
(cínico roedor
dos ossos do
ofício)
sou poeta
tributário da
lei
obedeço
às gramáticas
da palavra
os poemas da
pecúnia
fabrico poemas
sentado
nas almofadas
dos gabinetes
ou nos
corredores
sem alfombra
perdido
na sala de
espera
da esperança
prisioneiro
do relógio de
ponto
final.
MEMÓRIA DAS
MÃOS
a viva solidão
penetra o
corpo
extinto de
espera
atiça a
saudade
o longo frio
da noite
nas agudas
chamas
do silêncio
o sonho acende
lentamente
se esculpe a
espera
da matéria
do mármore do
tempo
rebentam
imagens de
carícia
no seio
selvagem
(memória
ou imaginação
das mãos?)
BUROCRATA EM
ATO
burocrata à
cata
de processos
obesos
buscando
nos autos
esconsos
a raiz das
rubricas
a metafisica
dos
indeferidos
e os sem (cem)
efeitos
da decisão
letal
de público
executada
pelo diário
oficial
dentro do
prazo
conforme os ritos
da morte
processual.
INÍCIO DO
EXPEDIENTE
o burocrata
abre
o envelope da
manhã
e lavra
no livro
próprio o termo
de abertura do
dia:
arruma-se na
cadeira,
observa a
agenda,
abre a gaveta,
organiza
o edifício dos
carimbos,
guilhotina uma
pilha
de autos
prioritários,
separa com
sapiência
o expediente
diário,
coloca no
arquivo
os processos
antigos,
indaga das
notícias
do jornal
oficial,
(antes de ler
a última
edição
de seus
despachos),
expulsa os
resquícios de sol
do seu
gabinete grave,
fecha as
cortinas,
liga a
sinfonia fria
do ar
condicionado,
acende um
cigarro,
repete o café,
cruza os
sapatos:
começa mais um
dia
burocrático.
LOJAULA
o objeto
enjaulado
na vitrine
da loja
em colóquio mudo
com o olhar
selvagem
do consumidor
doente
em estado
de descrédito
preso
no lado de
fora
da jaula
sem direito
de entrar
na loja
e consumir
o desejo do
objeto
alojado
no lado de
dentro
da jaula.
MÍTICA
A Edjar Powell
um galo grego
de canto
escultural
que apanhe
o sol caído
da descuidosa
mão
de Fídias e
fabrique
num voo
homérico
a mitologia no
quintal.
POEMAFOME
(MÃO-POEMA)
um poema-soco
contra todas
as sórdidas
formas da fome
contra todas
as claras
fontes da fome
um poema-punho
contra todos
os plenos
planos da fome
uma mão-poema
contra a face
de flor
da fome
uma mão-poema
contra o
pulmão frágil
da fome
uma mão-poema
em torno do
esôfago
da fome
um poema-corpo
que seja
comida
para a sede
de ira
do homem-fome
um poema mão
à fome
um poema sim
ao homem
(sem fome).
A PALAVRA
CALADA
A Luiz Carlos
Guimarães
desfibra a palavra
quando cala
quando o caule
da árvore fala
que é vento
verbo e alicerce
anoitece
quando as
selvas
todas são
sugadas
e o trêmulo
das folhas
proibido
quando os
discursos
são lacrados
dentro das
praças
sitiadas
e o som negado
aos ouvidos
e o grito
cortado
na garganta
e o medo
aberto
no meio
abrupto
do dia
desfibra a
palavra
quando a
árvore da fala
e os frutos
dos gritos
são demolidos
pelos
silêncios vivos.
MORTO URBANO
os defuntos
urbanos
jazem plácidos
inconclusos e
confortáveis
estendidos
na sua morte
minuciosa
burocráticos
formolizados
imersos na
tristeza
e na alfazema
entre flores
sorridentes
com a etiqueta
da identidade
inútil
espetada
nos pés em
leque frio.
SEIOS
cumes de carne
sem metáforas
rijos
deuses
redondos
para o culto
alpino
das mãos
pouso
da ave dos
lábios
seres binários
de pele ágil
para a sede
tátil
dos dedos
para a fome
decimal
dos desejos
seios
sinuosos
mistérios
róseos
abertas
geometrias na carne
vivos cristais
do desejo
que detonam
a claridade
adormecida no
corpo
seios
formas carnais
do instinto
que contêm o
gesto
de tocá-los
e a sede
de bebê-los
instantâneos
seios de âmbar
e de espuma
seios de náilon
e de lua
seios de
veludo
carmesins
seios que
latejam
e gritam
frenéticos
como pássaros
impressos
no corpo amado
presos do
desejo
de afagos
seios
canções de
carne
que mordem a
boca
e encantam a
alma
da mão.
BUROCRACIAL – O livro Burocracial (Pirata, 1982), prêmio
Escrita de Poesia (SP), do escritor, jornalista, advogado, professor,
conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, é o segundo dos vários títulos publicados pelo autor que, conforme o
poeta, advogado e artista plástico, Iran Gama, no prefácio da obra,
assinala: [...] Burocracial é, pode-se
dizer, um resumo biográfico, exposto por olhos de crase que se adentraram nos
carimbos da vida, com todas as suas rorinas e até mesmo o sabor recente da
novidade. Só que não é o resumo biográfico do poeta, cujos momentos, com
êxtase, Vital Corrêa de Araujo apreendeu na exata dimensão da vida, do amor, da
morte, e de toda a sua horizontalidade. [...]. Veja mais
aqui, aqui, aqui e aqui.
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