TÁBUA DE DEDICAÇÕES
Ao abismo apenas ponto negro de uma geometria absoluta
ao silêncio dos espaços inertes ofereço meu urro imerso
no cosmo vivo
à “por que algo existe e não nada?”
Ao metro, ordem mas não medida
ao tempo hindu
hélices sânscritas ou socráticas?
Tempo curvo, lento ou vertiginoso?
À manhã, só o inicio das longas noites insensatas e
distantes
ao âmbito da náusea
ao cone da sombra.
HÁ
Há algo do sal da vertigem que cultivo
junto à madeixa deixada na escuridão
rente à folha da relva truncada
numa página antiga esmagada como verme
adjunto a catálogo esquecidos no rosto.
Há muito a fazer nada
tudo está em alta
quando a noite demora
(a aurora enlouquece)
e as coisas ficam vazias
há muito faço nada
(tudo com palavras)
muito não só este poema
que exige sustento
imaginação substantiva
pá de metáfora
trato de metonímia (pesada)
ração exata de adjetivo exausto
e certeza de saber que o dom da
interpretação é exaustivo e perece
além da cota justa de malha da alma
ampla se exige certa trapaça
com o corpo lascivo da palavra
portanto fora o poema que é vital
exigir mais que a vida (que é trânsito)
exigir trâmite de eternidade do verbo
(que também exige sustento
plausibilidade qualquer e apreciação constante).
VERSOS SEM MIM
ORAÇÕES DE LOUÇA
PRECES SEM MARFIM
O âmbito dessa vida tão surdo
torna-nos nulos. Abrigados da intempérie
perecemos, a alma exausta retira-se
da cena imunda do mundo. Nada nos faz
retroagir da indecência e do descuido
pelo espírito que se espoja no luxuoso lixo.
O madeiro da cruz, a boa lenha da alma
tudo já não nos consagra, só amarga.
Gerador de ira instala-se na vida mais íntima.
À frente da vida ocidental, gira moeda mundana.
Num palmo de tempo, numa pegada de sopro
vão se os únicos resquícios da vida humana.
A cruz em troços, o rumo omisso
graduada a dor com mérito analgésico vital
o caminho do Gólgota estrangulado.
O sofrimento já não suporta a humana indiferença
seca o martírio, sura Cristo. Hoje
usurário joga a ação da vida
contra mortal (ou transitório) dividendo.
Do átomo anônimo ou vândalo
de tua luz ilumino a alma nua
escuro espírito em puro pânico
na carne desmedida indiferente ao sopro
alma que erra por escusa da vida
e erma busca ainda o grão lúcido
a porção dividida, o termo perdido
adentro de meandros noturnos sigo
sem a esperança da clareira curta
e sem quedas que o sangue não resgate
o ser do mundo prosaico é que sinto
a distante poética como lugar sem retiro
apenas vão que a dúvida conquista
enleia a mais falsa teia
a mercê da dor dialética negas
a esse teu ser sem sentido ou amparo
da palavra livre e humana.
O QUE É POESIA, SEM AFINAL
Poesia é a introdução da palavra na causa escura
objeto como meio do fim iniciado
do fim apenas começando o intervalo branco
coisas moveis, anos movediços, diapasão de sais
tangente invioláveis, poliedros nus e afáveis
luz do verbo tangendo à página círculos de partículas
sob ômega de ágata egípcia
porcelana de raiz grega e cor troiana
tripla fuga do oboé de Bach
mineral da manhã assolando sal
e o som desperto pela fúria inocente
da madrugada nômade e intransponível
sob lua incógnita pousada
no espaço secreto da infinidade.
Surto de santa insônia poesia intensifica
olho ora a pálpebras de joelho
ao santo crepúsculo que inspira pena
é com fulcro nessa vigília lenta
que falso poeta se movimenta
alude a tamarindos, abole madrepérolas.
Esqueço cansaço que é de cedilhas e aço
e recorro a espelhos mutilados de aleluias
ondas rigorosas e tardes furiosas
como a palavra imagem refletida no esmalte.
Segundo Lezama, Da Vinci dixit:
A pintura nasceu da necessidade primitiva
do homem recortar o contorno e o acaso
de sua sombra no muro.
Poema é tal qual vaivém de água da onda
da palavra indo e vindo sem sair do lugar
lavando sentidos para rejuvenescê-los.
Dê tom atonal certo à palavra inválida
que poema torna-se poema só.
Poeta, guardador de rebanho de anjos e enjoos.
Como um cão é o verso, vazio e lição.
A boa lenha do pastor de almas pagas
logo queima e o fogo desaba sobre dádivas nuas.
Fogueira santa devora cinza de dízimo
às dúzias atirados ao fogo unigênito
à chama donzela, ao incêndio da cura.
Se a matéria verbal exposta
na orelha da página
se a palavra não assim nem assado
se nada se inefabiliza
não há poema.
Cínico fim do verbo.
E se tudo for inexorável
o que será do nada facultativo?
Inefabilize o verbo: poema.
Usufruir da desintegração
orgânica a ouvir ruídos
da dissolvência dos neurônios cansados
é real e pior que insolvências
ou estouros bancários
frases negociais dão lucro animal.
A desintegração de uma nação triste
como um senão, virgula deslocada
ou cópula sem comunhão.
Não há mais povo, só corpos.
E senões sem fins. Confins
dos seres sociais trapaceados.
Amo ráfagas de alfinem e chusmas de caneca
amo sobretudo. E talvez.
Ergo pirâmide de eco cada manhã
e sorvo lento e alto orvalho da rosa
mão em concha astuta, lábio
em êxtase primário, êxtase da saliva.
Até que rumor pereça
e gesto se extinga do punho.
Não desperta relva ou orvalho
não aturda o pássaro. Ou apedreje brisas.
À sombra de cactos exaustos
esconda sua insânia
com vagar ou demora de taipa.
Vértebras de palavras
dão bons poemas dorsais.
Punce da matéria do verbo
cristalinos ecos poliedros de gritos
e rumores amarelados.
Bussolas e lebres de águas coligo.
Seus olhos morosos pareciam anjos.
Sedosos, talvez. Mas esquivos.
Losangos usados por anjos barrocos
à catedral da tarde
ficaram enferrujados
mas sararam.
Círculos de linga e veios
onde clorofila crepite
os envasados verdes
como circos de sangue
exorbitaram veias e incensos
exigiram supurações rígidas
em atenção ao progresso
dos sais minerais trancafiados
nas veias artérias surdas da usura.
Reflexos desolados restaram.
Hoje habito fogo, voo de cinza
símbolo escuro, incêndio de fé.
Venho na sombra vulto de luz vazia.
A Fatalidade de Eros não temo.
Desentranhado da essência
habituado ao vazio sem raiz.
Do espelho extraio máscara
o cansaço puniu o rosto
e a verdade sancionou o feito.
Nada funciona com a precisão da morte
elegante, maltrapilha, de súbito ou de migalhas
ela é soberana total irrecorrível e fátuo seu decreto
juíza sem tribunal de sentença fria.
TODO ÁPICE
CAMBALEIA – Poemas extraídos da obra Todo ápice
cambaleia (Criaart, 2022), do escritor, jornalista, advogado, professor,
conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é composto por uma
errata inaugural e contando com 5 partes: a primeira, A beira do abismo é
redonda; depois, O infinito é pequeno; a terceira, Eternidade é inútil; a
quarta, Tendões do amanhã. Logo em seguida, a sessão Criticoutras reúne os
artigos: Uma imaginação dialética, do professor Sébastien Joachin, e Em VCA, o
ápice é ypsilon, do poeta e professor Admmauro Gomes. Por fim o Posfácio: A
poesia em queda livre no abismo – ou o posfácio que era pra ser prefácio e não
é, este que escrevi depois que compus uma série de ilustrações para o volume.
Veja mais aqui, aqui e aqui.