segunda-feira, setembro 05, 2022

TODO ÁPICE CAMBALEIA, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO

 

 

TÁBUA DE DEDICAÇÕES

 

Ao abismo apenas ponto negro de uma geometria absoluta

ao silêncio dos espaços inertes ofereço meu urro imerso no cosmo vivo

à “por que algo existe e não nada?”

 

Ao metro, ordem mas não medida

ao tempo hindu

hélices sânscritas ou socráticas?

 

Tempo curvo, lento ou vertiginoso?

 

À manhã, só o inicio das longas noites insensatas e distantes

ao âmbito da náusea

ao cone da sombra.

 

 

 

Há algo do sal da vertigem que cultivo

junto à madeixa deixada na escuridão

rente à folha da relva truncada

numa página antiga esmagada como verme

adjunto a catálogo esquecidos no rosto.

 

Há muito a fazer nada

tudo está em alta

quando a noite demora

(a aurora enlouquece)

e as coisas ficam vazias

há muito faço nada

(tudo com palavras)

muito não só este poema

que exige sustento

imaginação substantiva

pá de metáfora

trato de metonímia (pesada)

ração exata de adjetivo exausto

e certeza de saber que o dom da

interpretação é exaustivo e perece

além da cota justa de malha da alma

ampla se exige certa trapaça

com o corpo lascivo da palavra

portanto fora o poema que é vital

exigir mais que a vida (que é trânsito)

exigir trâmite de eternidade do verbo

(que também exige sustento

plausibilidade qualquer e apreciação constante).

 

VERSOS SEM MIM

ORAÇÕES DE LOUÇA

PRECES SEM MARFIM

 

O âmbito dessa vida tão surdo

torna-nos nulos. Abrigados da intempérie

perecemos, a alma exausta retira-se

da cena imunda do mundo. Nada nos faz

retroagir da indecência e do descuido

pelo espírito que se espoja no luxuoso lixo.

O madeiro da cruz, a boa lenha da alma

tudo já não nos consagra, só amarga.

Gerador de ira instala-se na vida mais íntima.

À frente da vida ocidental, gira moeda mundana.

Num palmo de tempo, numa pegada de sopro

vão se os únicos resquícios da vida humana.

A cruz em troços, o rumo omisso

graduada a dor com mérito analgésico vital

o caminho do Gólgota estrangulado.

O sofrimento já não suporta a humana indiferença

seca o martírio, sura Cristo. Hoje

usurário joga a ação da vida

contra mortal (ou transitório) dividendo.

Do átomo anônimo ou vândalo

de tua luz ilumino a alma nua

escuro espírito em puro pânico

na carne desmedida indiferente ao sopro

alma que erra por escusa da vida

e erma busca ainda o grão lúcido

a porção dividida, o termo perdido

adentro de meandros noturnos sigo

sem a esperança da clareira curta

e sem quedas que o sangue não resgate

o ser do mundo prosaico é que sinto

a distante poética como lugar sem retiro

apenas vão que a dúvida conquista

enleia a mais falsa teia

a mercê da dor dialética negas

a esse teu ser sem sentido ou amparo

da palavra livre e humana.

 

O QUE É POESIA, SEM AFINAL

 

Poesia é a introdução da palavra na causa escura

objeto como meio do fim iniciado

do fim apenas começando o intervalo branco

coisas moveis, anos movediços, diapasão de sais

tangente invioláveis, poliedros nus e afáveis

luz do verbo tangendo à página círculos de partículas

sob ômega de ágata egípcia

porcelana de raiz grega e cor troiana

tripla fuga do oboé de Bach

mineral da manhã assolando sal

e o som desperto pela fúria inocente

da madrugada nômade e intransponível

sob lua incógnita pousada

no espaço secreto da infinidade.

 

Surto de santa insônia poesia intensifica

olho ora a pálpebras de joelho

ao santo crepúsculo que inspira pena

é com fulcro nessa vigília lenta

que falso poeta se movimenta

alude a tamarindos, abole madrepérolas.

 

Esqueço cansaço que é de cedilhas e aço

e recorro a espelhos mutilados de aleluias

ondas rigorosas e tardes furiosas

como a palavra imagem refletida no esmalte.

 

Segundo Lezama, Da Vinci dixit:

A pintura nasceu da necessidade primitiva

do homem recortar o contorno e o acaso

de sua sombra no muro.

 

Poema é tal qual vaivém de água da onda

da palavra indo e vindo sem sair do lugar

lavando sentidos para rejuvenescê-los.

 

Dê tom atonal certo à palavra inválida

que poema torna-se poema só.

 

Poeta, guardador de rebanho de anjos e enjoos.

Como um cão é o verso, vazio e lição.

 

A boa lenha do pastor de almas pagas

logo queima e o fogo desaba sobre dádivas nuas.

 

Fogueira santa devora cinza de dízimo

às dúzias atirados ao fogo unigênito

à chama donzela, ao incêndio da cura.

 

Se a matéria verbal exposta

na orelha da página

se a palavra não assim nem assado

se nada se inefabiliza

não há poema.

 

Cínico fim do verbo.

 

E se tudo for inexorável

o que será do nada facultativo?

Inefabilize o verbo: poema.

 

Usufruir da desintegração

orgânica a ouvir ruídos

da dissolvência dos neurônios cansados

é real e pior que insolvências

ou estouros bancários

frases negociais dão lucro animal.

 

A desintegração de uma nação triste

como um senão, virgula deslocada

ou cópula sem comunhão.

 

Não há mais povo, só corpos.

 

E senões sem fins. Confins

dos seres sociais trapaceados.

 

Amo ráfagas de alfinem e chusmas de caneca

amo sobretudo. E talvez.

 

Ergo pirâmide de eco cada manhã

e sorvo lento e alto orvalho da rosa

mão em concha astuta, lábio

em êxtase primário, êxtase da saliva.

 

Até que rumor pereça

e gesto se extinga do punho.

 

Não desperta relva ou orvalho

não aturda o pássaro. Ou apedreje brisas.

 

À sombra de cactos exaustos

esconda sua insânia

com vagar ou demora de taipa.

 

Vértebras de palavras

dão bons poemas dorsais.

 

Punce da matéria do verbo

cristalinos ecos poliedros de gritos

e rumores amarelados.

 

Bussolas e lebres de águas coligo.

 

Seus olhos morosos pareciam anjos.

Sedosos, talvez. Mas esquivos.

Losangos usados por anjos barrocos

à catedral da tarde

ficaram enferrujados

mas sararam.

 

Círculos de linga e veios

onde clorofila crepite

os envasados verdes

como circos de sangue

exorbitaram veias e incensos

exigiram supurações rígidas

em atenção ao progresso

dos sais minerais trancafiados

nas veias artérias surdas da usura.

 

Reflexos desolados restaram.

 

Hoje habito fogo, voo de cinza

símbolo escuro, incêndio de fé.

 

Venho na sombra vulto de luz vazia.

 

A Fatalidade de Eros não temo.

 

Desentranhado da essência

habituado ao vazio sem raiz.

 

Do espelho extraio máscara

o cansaço puniu o rosto

e a verdade sancionou o feito.

 

Nada funciona com a precisão da morte

elegante, maltrapilha, de súbito ou de migalhas

ela é soberana total irrecorrível e fátuo seu decreto

juíza sem tribunal de sentença fria.

 

TODO ÁPICE CAMBALEIA – Poemas extraídos da obra Todo ápice cambaleia (Criaart, 2022), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, que é composto por uma errata inaugural e contando com 5 partes: a primeira, A beira do abismo é redonda; depois, O infinito é pequeno; a terceira, Eternidade é inútil; a quarta, Tendões do amanhã. Logo em seguida, a sessão Criticoutras reúne os artigos: Uma imaginação dialética, do professor Sébastien Joachin, e Em VCA, o ápice é ypsilon, do poeta e professor Admmauro Gomes. Por fim o Posfácio: A poesia em queda livre no abismo – ou o posfácio que era pra ser prefácio e não é, este que escrevi depois que compus uma série de ilustrações para o volume. Veja mais aqui, aqui e aqui.