Certa vez, ainda adolescente, acho que
por volta de 74 – contava mais ou menos com os meus 14 ou 15 anos ou por aí -,
entrei numa loja de discos e, como sempre, fui procurar coisas novas e, de
preferência, sórdidas – coisa que muito me apraz, a exemplo das descobertas do
som de Cage, o dodecafonismo todo, Uakti, exsperimentalismos e afins, dentre
outros - para ouvir. Nisso encontrei um disco estranho. Olhei a capa, a
contracapa, não conhecia e fui até o balcão e comprei. Assim, sem perguntar nem
nada. Lembro que, na hora, algumas pessoas escondiam um sorriso, parece que
mangando de mim. Fiquei intrigado enquanto esperava o troco, fiscalizando se
havia pisado em bosta, se estava cagado ou se alguma coisa risível do mais
indesejável estivesse na minha aparição. Encabulado, achava que alguma coisa
andava errado comigo. Não me contive e perguntei: - Algum problema? - Não, é
que esse disco faz mais de ano que está aqui e ninguém quer. Já vendemos e
devolveram. Como existe cliente para tudo, felizmente ele saiu. Espero que não
peça devolução ou troca. E fui avisado, mesmo assim, nem ouvi. Arrisquei,
sempre arrisco. E não me arrependo.
Cheguei em casa e com a primeira música
fiquei estupefato. Que coisa mais linda! Fui checar o nome da faixa:
"Bebê". Tudo muito estranho. Deixei correr e veio
"Carinhoso". Nossa, já tinha ouvido esse clássico de diversas formas,
mas daquele jeito soava muito melhor. Aí deixei correr o disco e quando chegou
em "Sereiarei", percebi algo troncho, criativo, inacreditável:
gansos, perus, galinhas, patos, coelhos, orquestra, banda e tudo junto! Minha
nossa! Depois virei para o lado b e estava lá: "Asa Branca" e
"Gaio da roseira". Peguei a capa do disco e vi o nome do disco:
"A música livre de Hermeto Paschoal". Era de 1973. Repeti a audição,
ouvi umas trocentas vezes e me apaixonei. Aí voltei na loja e encomendei tudo
que tivesse dele. Ninguém sabia, ninguém nunca viu, só aquele mesmo.
Anos depois, passando em frente da mesma
loja, um dos funcionários me chamou:
- Ei, Luiz, chegou um disco do doido que
você gosta?
- Quem?
- Aquele que você encomendou tudo o que
tivesse dele!
- Foi? Cadê?
Peguei o álbum com um nome em inglês,
"Slaves Mass", o "Missa dos Escravos", de 1976, contando
com a participação especial de Airto Moreira e Flora Purim.
Na faixa título, tomei de uma surpresa ao
ver o dedilhado de um violão acompanhando um porco que tinha o rabo torcido,
parece. Eita! Aí eu já tinha buscado saber de tudo sobre ele, poucas notícias,
claro. Só que sempre associado a Geraldo Vandré, o mais conhecido, e Heraldo do
Monte e o Quarteto Novo.
Com isso, fiquei sabendo do seu primeiro
disco "Hermeto", de 1970. E saí comprando tudo:
"Zabumbê-bum-á" – que me inspirei e escrevi a peça “O prêmio” -, e
"Hermeto Pascoal ao vivo no Montreaux Jazz Festival", ambos de 1979.
Neste último viajei todas as faixas até uma, a mais especial, chamada
"Montreaux". Depois foi a vez de "Cérebro magnético", que
tem uma música lindíssima chamada "Música das nuvens e do chão" que
ousei colocar uma letra, chamada "Cantador", publicada, inclusive, no
meu livro "Canção de Terra", sabendo, depois, ser esta uma das
músicas que mais possui letra na vida e escrita por uma penca de gente
importante da música brasileira. Fiquei na minha. Em seguida, "Hermeto
Pascoal e grupo", de 1982; "Lagoa da Canoa, município de
Arapiraca", de 1984, título este dedicado à sua terra natal; "Brasil
Universo", de 1986; "Só não toca quem não quer", de 1987;
"Hermeto Pascoal solo - por diferentes caminhos", de 1988;
"Festa dos deuses", de 1992; "Eu e eles", de 1999; e o
"Mundo verde esperança" e por aí vai.
Uma outra coisa, é que em 1997, Hermeto
escreveu o "Calendário do Som", com 366 músicas, cada uma para cada
dia do ano, mostrando sua versatilidade e maestria musical.
Nascido em Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca,
Alagoas, em 22 de junho de 1936, ele diz: "O primeiro som que eu fiz foi
na hora em que eu nasci. Eu e minha mãe, o duo". E transferiu-se aos 14
anos, já tocando flauta, para o Recife onde começou a tocar piano num trio
albino criado por ele, um seu irmão José e mais o grande Sivuca, chamado
"Mundo em chamas". Em 1964, juntou-se a Airto Moreira e Humberto
Clayber no Sambrasa Trio. Dois anos depois, integrava o Quarteto Novo, com
Heraldo do Monte, Theo de Barros e Airto Moreira. Disso, nos anos 70, já nos
Estados Unidos, fez arranjos para Miles Davis, Wayne Shorter, Joe Zawinul, Gil
Evans, Elis Regina, Ron Carter, Raul de Souza, Taiguara, Astor Piazzola, dentre
outros, arrebatando o cognome de bruxo do som pelo experimentalismo.
Toda vez que ele desce pelo Nordeste, eu
vou vê-lo.
A primeira vez foi em 1986 ou 87, parece,
no Centro de Convenções, em Olinda, quando tive o prazer de ver ele e o Maestro
Duda improvisando no palco. Um concerto inesquecível. O bom mesmo foi no final
de tudo: os músicos se perfilaram sob o comando do Hermeto e desceram pela plateia
ao som do frevo pernambucano.
A outra vez foi no Maceió Jazz Festival.
Primeiro entrou o excelente Duofel. Quase no fim da dupla começou a chover no
espaço aberto. Quando Hermeto estava se aprontando para subir no palco, caiu o
maior pé d´água. Nossa! A tempestade foi tão violenta que chegou a suspender o
fornecimento de energia elétrica por horas. Saí frustrado naquele dia por não
ter visto Hermeto, mas ganhei um brinde dos bons. Dois dias depois, Duofel
abriu. Hermeto fez um concerto inesquecível e do jeito dele: bruxaria da muita.
E no final da tarde, já anoitecendo, veio Gilberto Gil fechando tudo num show
memorável.
Mas Hermeto, como sempre, ficou zoando no
meu juízo. Cheguei em casa e saí ouvindo os vinis, cds e tudo que possuo do som
dele. Deleite inenarrável.
Realmente, Hermeto merece ser ouvido - e
como! Confesso ser um dos apreciadores mais fascinados com a música deste
grande alagoano que faz parte da música universal. Vale a pena, vamos nessa?
Veja
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