segunda-feira, fevereiro 24, 2020

OUTRA DAS POESIARTES DE CYANE PACHECO


A língua do povo Enrodilhada na aldeia No solo da maledicência Não lambe os meus olhos Redemunho da seca Testemunho que incendeia A língua do povo calada Não arranha A carne dos meus sonhos O sentido dos meus passos A língua do povo Falada noutro chão Escrita nos abraços No livro diverso No porão A língua do povo Abrigo da chuva Recusa do castigo Construção Derrapa na curva No sertão No mar A língua do povo Morre sem ar Na tortura No choque Através das mãos assassinas A língua do povo Inventa a candura dos laços Na espera das meninas Sobrevive nos espaços vazios Noutras esferas e brios Entre uma palavra e outra A língua do povo Muda o curso dos rios Guarda o segredo do fogo Anda na contra mão É o extinto e o feto Resiste ao abandono À confusão do afeto E à fome que sinto À recusa do tinto sono Aos dias quentes Às noites frias Às multidões dementes A língua do povo Não tem dono Veste fantasias Inconteste em suas manias Sobrevive às peçonhas Às guerras Move montanhas Invade terras e planta Inventa um nome A língua do povo mata a fome Retorna às florestas Nas arestas constrói obras Pede ajuda Fala como o homem das cobras Durante anos fica muda Ou vai às festas Enganos das cortinas de fumaça A língua do povo Sussurra através das frestas A língua do povo fica nua na praça

Não Hoje arde o rumor inconteste O poema está desamparado Na vertiginosa confissão E é deserto o corpo Que desfez-se em múltiplos gozos No início das manhãs Agora esse corpo esquece Parece morrer Na superfície dos enganos resolutos Não pensa em mastigar as rosas E velar o que os olhos devoram O poema se retira Dá às costas Mira o espaço vazio Atraiçoa repetidamente Na pontualidade perversa O poema desanda a chorar Presente na memória Estende a língua na estrada Apresenta o amor A verdade Que salvaguarda o futuro O poema fixo nas ondas fatídicas E morrediço numa balsa errante Extraviado Desnorteado Carrega uma bússola Sem agulha ou porta Pendura no pescoço Costura à pele Uma cápsula de sono O poema ressequido Imóvel Esquecido na borda do abismo Guarda as chaves secretas Das rotas de fuga Sente cair sobre si A ausência de sentido Um manto de eletricidade Mortal no devir Sobre o corpo do poema Sozinho na cidade Na dor antiga e rigorosa Na lágrima suspensa Inóspita que roça Esgrima do tema Enregela o próprio íntimo Permanece em silêncio Cumpre sua pena Poema mudo e taciturno E ínfimo Desde aquele instante Olha o mar Avista cadáveres boiando No medo estanque Próximos das lacunas Das palavras Dos gestos sãos Nos signos das runas Nos búzios dos ouvidos Nos sentidos Das linhas das mãos

Aquilo que alimenta A minha dor Tece armadilhas Manto confortável Chumbo sobre os meus ombros Nas esquinas futuras O que me impele À corda tensa Às desérticas travessias O que me afoga Quando boio na memória Colo de observar estrelas O que me protegeu Que marcou meu olhar E o cegou Diante da porta do conforto Convidou os meus músculos A abrirem as janelas da casa

Irrespirável tronco Largo vazio Árido sentido Afeto infante No descompassado ritmo Pulsa no peito Um granito escuro No sagrado distante Indiferente olhar Que outros luzeiros Não mira Apenas o vidro frio e duro Do poder da moeda Nas ruas desérticas Artificiais trajetos da queda Verticalidade das métricas Sem empatia Sem o entusiasmo brando Das mãos e das artérias Proximidade do íntimo horror Borda áspera que desafia O fio da razão partida Sentada no adiposo trono Brinca no chão do delírio Na indiferença No abandono da inútil crença Ausente Manipula cápsulas Fia tramas de cor Sob o mormaço inclemente Vestes que repousam Por toda a parte Onde o abraço sem calor Exibe os dentes Tiranos traços inconscientes Lentes dos cegos anos Dia após dia Muralha perversa dos enganos Reparte na invenção da dor Diversa fantasia Nos múltiplos abandonos

Nem sono Nem fome Nem lágrima Esconderijo íntimo Sequer um copo d'água A cabeça líquida e deitada Na memória do cadafalso Nenhuma angústia exposta Ou temor do reencontro divino Jamais o olhar peregrino Exceto com as mãos vazias E trêmulas nas costas Lúmens cegos Cílios decepados da vigília Círculos nas têmporas Estampido Choque de realidade Remoto gemido Tampouco as nuvens E suas invenções Suas formas Suas chuvas O livro incandescente A pétala estéril A flor dormente No incinerado jardim Escuro e doente E esse sono que não vem Atrelado às Horas À barganha À miséria Às demoras Às cordas Às lajes de concreto Aos morros desabando Aos corpos esquecidos Insepultos desde o ventre Nenhuma árvore Nenhum desespero Fome de zelo Aridez no solo do instante As notícias não flutuam Nas pesadas marés Carregadas nas letras Pesadas no chumbo dos anos Asas cortadas que sangram Pés descalços em chamas Quase não andam Sobre a superfície do país Nos cacos dos sonhos Nas línguas cortadas Nas escadas de lâminas Informações apagadas Trincar dos dentes Navios de gelo Mandíbulas sem olhos Silenciosas à espreita Caminha a dor Através dos séculos À frente dos silêncios Suspensa no medo Afogada no suor Dia e noite Azeite dos motores perversos Arranca os olhos Dos pesadelos Os anéis de brasa Os cabelos Entre os vãos Tritura os versos Na ponta dos pés E dos dedos Com calos nas mãos

Escrevo porque temo o mar A solidão das profundezas Do misterioso útero Que apaga e turva a chama E salva a brasa da fogueira primeva Como se o fogo corredor Delineando as serras Segurasse minha mão Trêmula e incapaz De desenhar o vocábulo Como se brincasse de ser caverna E traço E a palavra perdesse o medo De fazer as malas e partir Escrevo porque Enfim perdi o medo da morte E não tenho outra saída Após conhecer a dor A lágrima de sal do deserto O estampido na nuca do desconhecido Que atinge minha noite E eu o reconheço Na minha corrente sanguínea Eu vejo seus olhos fechados Há infinitos séculos entre o murmúrio E o gesto de guardar os fogos acesos Eles sou eu Na desistência dos hábitos Onde estão os livros abertos Os mortos sensíveis O eco das vozes desesperadas Escrevo porque acordo E morro E não tenho medo De dar o próximo passo


É interessante escrever, criar, pensar sobre as paisagens, no presente imediato, querendo sair do século XX. Despencam das nuvens, imensos blocos: de gelo, de açúcar e de algodão. É, como dizem os sobreviventes que carregam mais de um par de olhos dentro dos seus matulões, o peso do pensamento. Quando tocam o alto das nossas cabeças, estão próximos dos primeiros abismos. Atravessar um oceano ou uma trilha erma, não incinera os pés, também somos o caminho de volta. Passear noutro tempo oculto da insubstituível memória, polir a intuição, até enxergar precisamente o outro; prestidigitar os mistérios remanescentes desses incorporais e acreditar na loucura; seguir, enfim, entre as perguntas que esse século nos fez e continua insistindo em nos fustigar. Tentar imaginar as respostas, observando os comportamentos dissonantes; prestar atenção às inevitáveis máscaras relacionais; sair das últimas cavernas, enfrentando ou fugindo, o assombro das nossas aparições, nas águas paradas dos lagos. Escrever caminhando tanto, às vezes, confunde-se com um bater de asas. Corporificar o entusiasmo ou a dor de cada letra e dos vazios entre elas. Sustentar as lâminas das palavras, sangrar as mãos, debulhar em tantos séculos, a breve existência.

Quando a língua Muda Os seus sinais Eu perco a fala Reinvento a palavra E desvio o curso do dia Há olhos tristes Que riem Quando a língua muda Seu intento E as horas Se reescrevem sozinhas

De longe Parecia um barco E não era Nem o parto da primavera Folha de papel Ou avião Mãos acenando insones Memento na escuridão Desejo de vera E de vida Morte à mingua Suicida Esquecimento ou perdão Lamento das fomes Língua desaparecida dos homens Pela hora da morte Ou da despedida

Nem sempre A palavra espera em vão Tantas vezes áspera Flutuante brincadeira No sermão Na feira Iridescente esfera Transparente e derradeira Clareira Cratera Imensa ou sob uma lente Corda tensa Na inesperada quimera

Não Eu não tenho coragem De dizer o que já vi Quando abri a porta E não era ninguém Ou era apenas um trovão Dentro de mim A morte não me deixa só Eu me equilibro Louca Funâmbula nos abismos Estranha nas proximidades do querer Geografia é o arco da palavra Abrindo os olhos sozinho No tempo malabar do nada Território é flecha Tonta Veloz Brenha Caverna À volta da memória da fogueira Há o afeto O raio que ilumina cada letra A estrada O susto As dúvidas Os latidos E o cansaço que insiste De olhos fechados No lugar da ferida Solidão de Filoctetes No abandono de Ulisses Ela não estava mais ali Sequer tinha pernas Ou garganta para a cidade Sítio é lugar Tempo Uma ilusão perversa Para quem toca a superfície Ou dorme ao relento de si Mergulho fundo e sozinha Destemida como se inscrevesse Nas telas das paredes antigas O que salvo do esquecimento Conchas Mantilhas Filigranas do desejo Carvão E rosas desidratadas nos livros Fragmentos de tantas esperas Discurso e púlpito Escrevo Para perder o medo das feras Que vagam insones nas horas O sono sempre virá Nem que seja o último

Há dois séculos e duas décadas, carrego em mim, a criança curiosa e secreta, que me salva e me guardará até o último sopro. Ela me traz as músicas e os ladrilhos, as cores do tempo, os perigos e os medos primevos, lidos nos semblantes dos adultos e dos amigos, naqueles dias escuros. Nela, me refugio em silêncio. Com ela, reinvento o riso. Na solidão, quase perpétua, me abrigo. Nas memórias que guardamos, eu e ela, desses tantos e imensos dias, seguimos e choramos nossas incontáveis perdas. Colecionamos imagens e afagamos o resto dos nossos sonhos. Rimos, ao lembrarmos dos meninos incrédulos, daqueles que jamais viram nossa tímida beleza, os cegos antigos. Fomos vistas nas molduras picotadas das fotografias. Parecíamos, desde bebês, arregalar nossos olhos, encandeados pelos flashes, ao mundo dos adultos e das serpentes. Observamos a dor alheia e a engolimos. Essa menina, insiste, apesar de tudo. Destemida, diante da tênue linha, entre todas as vidas e todas as mortes. Ambas trêmulas, quando nos deparamos com a mentira alheia, entre desistir ou seguir, trincando os dentes. Sempre uma menina fera e vera, destinada às estranhezas, obstinada e valente, enumerando as fraquezas, vislumbrando, o amor são e o interesse doente. Nem sei como nos salvamos até aqui. Nos penduraram jóias, desde muito crianças, brincamos de lapinha. Tivemos que colecionar insetos, pedras, livros, para não corrermos o risco de boiar nas superfícies dos espelhos. Fugimos juntas: uma, sobre às costas da outra, para não nos tornarmos vazias. Vivemos numa redoma transparente, na miragem dos territórios sem limites, em um jardim bonito. Desconhecemos os mistérios dos nossos recônditos. Esperamos, inquietas, o amor inteiro, claro, furioso, violento contra a mentira que ouvimos, desde cedo. Aguardamos o amor verdadeiro, como se fosse a sabedoria dos passos senis e lentos, uma lufada de vento, um aviso de chuva. Essa menina resiste e me ensina, ao acordar, todas as manhãs, que é preciso fechar os olhos ao ordinário mundo. Essa menina conseguiu me tornar sua gêmea, alguém simples, como nossas brincadeiras. Nossa dor é oculta e elegante, perante os outros, transparente. Nossa dor, parece invisível, como nosso riso e nosso pranto.


Eu conto o mínimo: Naquela tarde, quando o mormaço a imobilizou no sofá da casa da Ilha das Cobras, enquanto fechava os olhos e sentia o espanto e o horror, voltarem transformados e distendidos, para o lugar da estranheza, ouviu batidas no portão de ferro. Identificou serem no limite entre o público e o privado, pois o som, nesses casos, são carregados da tensão das esperas. Imaginou que os longos minutos, pudessem exasperar a visita. Não estava esperando ninguém àquela hora. Havia acabado de fechar o livro e ouvia cantar, a mulher louca da Torre Minúscula, além de construir imagens no lusco-fusco do que surge no avesso da íris. Se fosse mais jovem, se não estivesse reproduzindo um grito de guerra; caso não escolhesse construir uma arquitetura delicada, na profusão do afeto e das linguagens estéticas que, diariamente a engoliam, junto com o resto das suas forças, levaria àquela mulher, sua insanidade e afinação, garganta revestida de notas e claves, para os palcos da cidade. Enquanto pensava nisso e ouvia as batidas anônimas e insistentes, correu e deixou cair uma das pantufas, em um período histórico marcado por fumaça, absinto, música e, sobretudo, discussões mantidas em fogo alto. Seguiu apressada, com apenas uma das pantufas de palha. Abriu a porta e convidou a visita, uma senhora magra, com um corte de cabelo inusual, um cigarro à mão e vestida com elegância, para entrar. Seria mais distinta, não fossem as cores rubro-negras das suas vestes. Se ela pedisse uma opinião ou tocasse no assunto, diria para acrescentar um bordado, um colar, um broche, todos na cor branca, desse modo, a harmonia seria imediata e evidente. À mínima menção de convidá-la a entrar, viu que ela era desinibida e soltava baforadas gordas no jardim. Entre o portão e o peixe dourado, a fumaça criou uma nuvem artificial, instantânea. Descreveu, enquanto se dirigiam à sala principal, denominada de Inferno, o sentido de cada obra, a localização do atelier, os móbiles e a instalação iniciada pelos morcegos. Passaram pelo Purgatório, desceram a escada, deixando um rastro turvo detrás de si. A visita, se é assim que devemos apelidá-la, preferiu sentar em um banco de madeira, enquanto, de pés descalços, a anfitriã, afundou no alvo sofá. Esperou que ela escolhesse o cinzeiro, passasse uma vista nas obras e nos livros e iniciasse o diálogo. Antes, encabulada por não entender o nome que ela dissera ao entrar, se era um vulgo ou o nome de batismo, pediu desculpas e interrompeu sua fala: Como você se chama? É que não escutei quando você se me apresentou. A visita riu e perguntou se poderia responder, após beber uma xícara de café. Seguiu-se à afirmativa, duas cores distintas de fumaça e a resposta: "Sylvia van Harden". Foi um diálogo insólito. Quando anoiteceu, viu que continuavam tecendo os fundamentos daquele diálogo. A louca da Torre Mínima, as fotografou, enquanto acendiam um cigarro após o outro. Soube, tempos depois, que aquela casa fora demolida.

Eu conto o mínimo: Quando entregou a criança para o amigo segurar e o cura derramar sobre sua cabeça a água santificada, momento em que quase todas as crianças choram, sem querer denotou o segredo e sua resposta. Era o pai, mas não poderia dar seu nome à filha da índia, mesmo havendo nascido predominantemente com os traços da família paterna. Relutou em tomar a recém nascida ali, diante de todos, segurar sua mãe pelo punho, à maneira dos homens violentos do passado, principalmente porque era rude e apaixonado. Não quis, preferiu deixá-las ir embora, onde sua filha sanguínea seria criada por outro homem, seu subalterno. Esse homem era odiado pelo senhor poderoso, era ele quem dormia diariamente com aquela índia que corria livre nas terras do asmático coronel seco, de pé em cima de um cavalo ou pulava, dando sarabandas, nos cacimbões próximos às minas de cristal de rocha. Ele era mais velho do que ele e seu marido, mas parecia mais novo pois não carecia ter mais de dois ofícios: vistoriar as terras para evitar conflitos e ganhar dinheiro, comprando, engordando e vendendo rezes. Sabe-se que vivia com duas irmãs, que serão descritas no momento oportuno. Sabemos sobre sua vida, devido à história oral que nos chegou e meia dúzia de fotografias antigas, em cujos versos, são legíveis as distintas dedicatórias. Começaremos com a mãe da bela índia, sendo laçada, pega a dente de cachorro, como se dizia à época. Quando o vimos pela primeira vez, parecia purficado através da água que banhou aquele bebê.

Há um homem comum Dentro de cada homem Com seus dentes E memórias coladas Aos pescoços de suas presas Como moscas imóveis Na aderência do papel Junto aos fragmentos Minúsculos dos sonhos Há um homem comum Dentro do homem raro Que toca as bordas dos abismos E vê o fogo entrelaçar A carne viva A morte branca Dos ossos da palavra Há uma fogueira acesa Dentro de cada um desses homens Os olhos do sensível Choram ao ouvir o galope Estranho das ferraduras antigas Dos cascos primeiros E suas feridas Grades corrosivas dos gestos Há dentro dos homens Lágrimas comuns de sangue Rios de prazer e dor Imensos e caudalosos Inundando os seus vazios


CYANE PACHECO – Reunião de textos e artes da escritora e artista visual Cyane Pacheco. Veja mais aquiaqui, aqui, aqui  & aqui.