A língua do povo Enrodilhada na aldeia No
solo da maledicência Não lambe os meus olhos Redemunho da seca Testemunho que
incendeia A língua do povo calada Não arranha A carne dos meus sonhos O sentido
dos meus passos A língua do povo Falada noutro chão Escrita nos abraços No
livro diverso No porão A língua do povo Abrigo da chuva Recusa do castigo
Construção Derrapa na curva No sertão No mar A língua do povo Morre sem ar Na
tortura No choque Através das mãos assassinas A língua do povo Inventa a
candura dos laços Na espera das meninas Sobrevive nos espaços vazios Noutras
esferas e brios Entre uma palavra e outra A língua do povo Muda o curso dos
rios Guarda o segredo do fogo Anda na contra mão É o extinto e o feto Resiste
ao abandono À confusão do afeto E à fome que sinto À recusa do tinto sono Aos
dias quentes Às noites frias Às multidões dementes A língua do povo Não tem
dono Veste fantasias Inconteste em suas manias Sobrevive às peçonhas Às guerras
Move montanhas Invade terras e planta Inventa um nome A língua do povo mata a
fome Retorna às florestas Nas arestas constrói obras Pede ajuda Fala como o
homem das cobras Durante anos fica muda Ou vai às festas Enganos das cortinas
de fumaça A língua do povo Sussurra através das frestas A língua do povo fica
nua na praça
Não Hoje arde o rumor inconteste O poema
está desamparado Na vertiginosa confissão E é deserto o corpo Que desfez-se em
múltiplos gozos No início das manhãs Agora esse corpo esquece Parece morrer Na
superfície dos enganos resolutos Não pensa em mastigar as rosas E velar o que
os olhos devoram O poema se retira Dá às costas Mira o espaço vazio Atraiçoa
repetidamente Na pontualidade perversa O poema desanda a chorar Presente na
memória Estende a língua na estrada Apresenta o amor A verdade Que salvaguarda
o futuro O poema fixo nas ondas fatídicas E morrediço numa balsa errante
Extraviado Desnorteado Carrega uma bússola Sem agulha ou porta Pendura no
pescoço Costura à pele Uma cápsula de sono O poema ressequido Imóvel Esquecido
na borda do abismo Guarda as chaves secretas Das rotas de fuga Sente cair sobre
si A ausência de sentido Um manto de eletricidade Mortal no devir Sobre o corpo
do poema Sozinho na cidade Na dor antiga e rigorosa Na lágrima suspensa
Inóspita que roça Esgrima do tema Enregela o próprio íntimo Permanece em
silêncio Cumpre sua pena Poema mudo e taciturno E ínfimo Desde aquele instante
Olha o mar Avista cadáveres boiando No medo estanque Próximos das lacunas Das
palavras Dos gestos sãos Nos signos das runas Nos búzios dos ouvidos Nos
sentidos Das linhas das mãos
Aquilo que alimenta A minha dor Tece
armadilhas Manto confortável Chumbo sobre os meus ombros Nas esquinas futuras O
que me impele À corda tensa Às desérticas travessias O que me afoga Quando boio
na memória Colo de observar estrelas O que me protegeu Que marcou meu olhar E o
cegou Diante da porta do conforto Convidou os meus músculos A abrirem as
janelas da casa
Irrespirável tronco Largo vazio Árido
sentido Afeto infante No descompassado ritmo Pulsa no peito Um granito escuro
No sagrado distante Indiferente olhar Que outros luzeiros Não mira Apenas o
vidro frio e duro Do poder da moeda Nas ruas desérticas Artificiais trajetos da
queda Verticalidade das métricas Sem empatia Sem o entusiasmo brando Das mãos e
das artérias Proximidade do íntimo horror Borda áspera que desafia O fio da
razão partida Sentada no adiposo trono Brinca no chão do delírio Na indiferença
No abandono da inútil crença Ausente Manipula cápsulas Fia tramas de cor Sob o
mormaço inclemente Vestes que repousam Por toda a parte Onde o abraço sem calor
Exibe os dentes Tiranos traços inconscientes Lentes dos cegos anos Dia após dia
Muralha perversa dos enganos Reparte na invenção da dor Diversa fantasia Nos
múltiplos abandonos
Nem sono Nem fome Nem lágrima Esconderijo
íntimo Sequer um copo d'água A cabeça líquida e deitada Na memória do cadafalso
Nenhuma angústia exposta Ou temor do reencontro divino Jamais o olhar peregrino
Exceto com as mãos vazias E trêmulas nas costas Lúmens cegos Cílios decepados
da vigília Círculos nas têmporas Estampido Choque de realidade Remoto gemido
Tampouco as nuvens E suas invenções Suas formas Suas chuvas O livro
incandescente A pétala estéril A flor dormente No incinerado jardim Escuro e
doente E esse sono que não vem Atrelado às Horas À barganha À miséria Às
demoras Às cordas Às lajes de concreto Aos morros desabando Aos corpos
esquecidos Insepultos desde o ventre Nenhuma árvore Nenhum desespero Fome de
zelo Aridez no solo do instante As notícias não flutuam Nas pesadas marés
Carregadas nas letras Pesadas no chumbo dos anos Asas cortadas que sangram Pés
descalços em chamas Quase não andam Sobre a superfície do país Nos cacos dos
sonhos Nas línguas cortadas Nas escadas de lâminas Informações apagadas Trincar
dos dentes Navios de gelo Mandíbulas sem olhos Silenciosas à espreita Caminha a
dor Através dos séculos À frente dos silêncios Suspensa no medo Afogada no suor
Dia e noite Azeite dos motores perversos Arranca os olhos Dos pesadelos Os
anéis de brasa Os cabelos Entre os vãos Tritura os versos Na ponta dos pés E
dos dedos Com calos nas mãos
Escrevo porque temo o mar A solidão das
profundezas Do misterioso útero Que apaga e turva a chama E salva a brasa da
fogueira primeva Como se o fogo corredor Delineando as serras Segurasse minha
mão Trêmula e incapaz De desenhar o vocábulo Como se brincasse de ser caverna E
traço E a palavra perdesse o medo De fazer as malas e partir Escrevo porque
Enfim perdi o medo da morte E não tenho outra saída Após conhecer a dor A
lágrima de sal do deserto O estampido na nuca do desconhecido Que atinge minha
noite E eu o reconheço Na minha corrente sanguínea Eu vejo seus olhos fechados
Há infinitos séculos entre o murmúrio E o gesto de guardar os fogos acesos Eles
sou eu Na desistência dos hábitos Onde estão os livros abertos Os mortos
sensíveis O eco das vozes desesperadas Escrevo porque acordo E morro E não
tenho medo De dar o próximo passo
É interessante escrever, criar, pensar
sobre as paisagens, no presente imediato, querendo sair do século XX. Despencam
das nuvens, imensos blocos: de gelo, de açúcar e de algodão. É, como dizem os
sobreviventes que carregam mais de um par de olhos dentro dos seus matulões, o
peso do pensamento. Quando tocam o alto das nossas cabeças, estão próximos dos
primeiros abismos. Atravessar um oceano ou uma trilha erma, não incinera os
pés, também somos o caminho de volta. Passear noutro tempo oculto da insubstituível
memória, polir a intuição, até enxergar precisamente o outro; prestidigitar os
mistérios remanescentes desses incorporais e acreditar na loucura; seguir,
enfim, entre as perguntas que esse século nos fez e continua insistindo em nos
fustigar. Tentar imaginar as respostas, observando os comportamentos
dissonantes; prestar atenção às inevitáveis máscaras relacionais; sair das
últimas cavernas, enfrentando ou fugindo, o assombro das nossas aparições, nas
águas paradas dos lagos. Escrever caminhando tanto, às vezes, confunde-se com
um bater de asas. Corporificar o entusiasmo ou a dor de cada letra e dos vazios
entre elas. Sustentar as lâminas das palavras, sangrar as mãos, debulhar em
tantos séculos, a breve existência.
Quando a língua Muda Os seus sinais Eu
perco a fala Reinvento a palavra E desvio o curso do dia Há olhos tristes Que
riem Quando a língua muda Seu intento E as horas Se reescrevem sozinhas
De longe Parecia um barco E não era Nem o
parto da primavera Folha de papel Ou avião Mãos acenando insones Memento na
escuridão Desejo de vera E de vida Morte à mingua Suicida Esquecimento ou
perdão Lamento das fomes Língua desaparecida dos homens Pela hora da morte Ou
da despedida
Nem sempre A palavra espera em vão Tantas
vezes áspera Flutuante brincadeira No sermão Na feira Iridescente esfera
Transparente e derradeira Clareira Cratera Imensa ou sob uma lente Corda tensa
Na inesperada quimera
Não Eu não tenho coragem De dizer o que
já vi Quando abri a porta E não era ninguém Ou era apenas um trovão Dentro de
mim A morte não me deixa só Eu me equilibro Louca Funâmbula nos abismos
Estranha nas proximidades do querer Geografia é o arco da palavra Abrindo os
olhos sozinho No tempo malabar do nada Território é flecha Tonta Veloz Brenha
Caverna À volta da memória da fogueira Há o afeto O raio que ilumina cada letra
A estrada O susto As dúvidas Os latidos E o cansaço que insiste De olhos
fechados No lugar da ferida Solidão de Filoctetes No abandono de Ulisses Ela
não estava mais ali Sequer tinha pernas Ou garganta para a cidade Sítio é lugar
Tempo Uma ilusão perversa Para quem toca a superfície Ou dorme ao relento de si
Mergulho fundo e sozinha Destemida como se inscrevesse Nas telas das paredes
antigas O que salvo do esquecimento Conchas Mantilhas Filigranas do desejo
Carvão E rosas desidratadas nos livros Fragmentos de tantas esperas Discurso e
púlpito Escrevo Para perder o medo das feras Que vagam insones nas horas O sono
sempre virá Nem que seja o último
Há dois séculos e duas décadas, carrego
em mim, a criança curiosa e secreta, que me salva e me guardará até o último
sopro. Ela me traz as músicas e os ladrilhos, as cores do tempo, os perigos e
os medos primevos, lidos nos semblantes dos adultos e dos amigos, naqueles dias
escuros. Nela, me refugio em silêncio. Com ela, reinvento o riso. Na solidão,
quase perpétua, me abrigo. Nas memórias que guardamos, eu e ela, desses tantos
e imensos dias, seguimos e choramos nossas incontáveis perdas. Colecionamos
imagens e afagamos o resto dos nossos sonhos. Rimos, ao lembrarmos dos meninos
incrédulos, daqueles que jamais viram nossa tímida beleza, os cegos antigos.
Fomos vistas nas molduras picotadas das fotografias. Parecíamos, desde bebês,
arregalar nossos olhos, encandeados pelos flashes, ao mundo dos adultos e das
serpentes. Observamos a dor alheia e a engolimos. Essa menina, insiste, apesar
de tudo. Destemida, diante da tênue linha, entre todas as vidas e todas as
mortes. Ambas trêmulas, quando nos deparamos com a mentira alheia, entre
desistir ou seguir, trincando os dentes. Sempre uma menina fera e vera,
destinada às estranhezas, obstinada e valente, enumerando as fraquezas,
vislumbrando, o amor são e o interesse doente. Nem sei como nos salvamos até
aqui. Nos penduraram jóias, desde muito crianças, brincamos de lapinha. Tivemos
que colecionar insetos, pedras, livros, para não corrermos o risco de boiar nas
superfícies dos espelhos. Fugimos juntas: uma, sobre às costas da outra, para
não nos tornarmos vazias. Vivemos numa redoma transparente, na miragem dos
territórios sem limites, em um jardim bonito. Desconhecemos os mistérios dos
nossos recônditos. Esperamos, inquietas, o amor inteiro, claro, furioso,
violento contra a mentira que ouvimos, desde cedo. Aguardamos o amor
verdadeiro, como se fosse a sabedoria dos passos senis e lentos, uma lufada de
vento, um aviso de chuva. Essa menina resiste e me ensina, ao acordar, todas as
manhãs, que é preciso fechar os olhos ao ordinário mundo. Essa menina conseguiu
me tornar sua gêmea, alguém simples, como nossas brincadeiras. Nossa dor é
oculta e elegante, perante os outros, transparente. Nossa dor, parece
invisível, como nosso riso e nosso pranto.
Eu conto o mínimo: Naquela tarde, quando
o mormaço a imobilizou no sofá da casa da Ilha das Cobras, enquanto fechava os
olhos e sentia o espanto e o horror, voltarem transformados e distendidos, para
o lugar da estranheza, ouviu batidas no portão de ferro. Identificou serem no
limite entre o público e o privado, pois o som, nesses casos, são carregados da
tensão das esperas. Imaginou que os longos minutos, pudessem exasperar a
visita. Não estava esperando ninguém àquela hora. Havia acabado de fechar o
livro e ouvia cantar, a mulher louca da Torre Minúscula, além de construir
imagens no lusco-fusco do que surge no avesso da íris. Se fosse mais jovem, se
não estivesse reproduzindo um grito de guerra; caso não escolhesse construir
uma arquitetura delicada, na profusão do afeto e das linguagens estéticas que,
diariamente a engoliam, junto com o resto das suas forças, levaria àquela
mulher, sua insanidade e afinação, garganta revestida de notas e claves, para
os palcos da cidade. Enquanto pensava nisso e ouvia as batidas anônimas e
insistentes, correu e deixou cair uma das pantufas, em um período histórico
marcado por fumaça, absinto, música e, sobretudo, discussões mantidas em fogo
alto. Seguiu apressada, com apenas uma das pantufas de palha. Abriu a porta e
convidou a visita, uma senhora magra, com um corte de cabelo inusual, um
cigarro à mão e vestida com elegância, para entrar. Seria mais distinta, não
fossem as cores rubro-negras das suas vestes. Se ela pedisse uma opinião ou
tocasse no assunto, diria para acrescentar um bordado, um colar, um broche,
todos na cor branca, desse modo, a harmonia seria imediata e evidente. À mínima
menção de convidá-la a entrar, viu que ela era desinibida e soltava baforadas
gordas no jardim. Entre o portão e o peixe dourado, a fumaça criou uma nuvem
artificial, instantânea. Descreveu, enquanto se dirigiam à sala principal,
denominada de Inferno, o sentido de cada obra, a localização do atelier, os
móbiles e a instalação iniciada pelos morcegos. Passaram pelo Purgatório,
desceram a escada, deixando um rastro turvo detrás de si. A visita, se é assim
que devemos apelidá-la, preferiu sentar em um banco de madeira, enquanto, de
pés descalços, a anfitriã, afundou no alvo sofá. Esperou que ela escolhesse o
cinzeiro, passasse uma vista nas obras e nos livros e iniciasse o diálogo.
Antes, encabulada por não entender o nome que ela dissera ao entrar, se era um
vulgo ou o nome de batismo, pediu desculpas e interrompeu sua fala: Como você
se chama? É que não escutei quando você se me apresentou. A visita riu e
perguntou se poderia responder, após beber uma xícara de café. Seguiu-se à
afirmativa, duas cores distintas de fumaça e a resposta: "Sylvia van
Harden". Foi um diálogo insólito. Quando anoiteceu, viu que continuavam
tecendo os fundamentos daquele diálogo. A louca da Torre Mínima, as fotografou,
enquanto acendiam um cigarro após o outro. Soube, tempos depois, que aquela casa
fora demolida.
Eu conto o mínimo: Quando entregou a
criança para o amigo segurar e o cura derramar sobre sua cabeça a água
santificada, momento em que quase todas as crianças choram, sem querer denotou
o segredo e sua resposta. Era o pai, mas não poderia dar seu nome à filha da
índia, mesmo havendo nascido predominantemente com os traços da família
paterna. Relutou em tomar a recém nascida ali, diante de todos, segurar sua mãe
pelo punho, à maneira dos homens violentos do passado, principalmente porque era
rude e apaixonado. Não quis, preferiu deixá-las ir embora, onde sua filha
sanguínea seria criada por outro homem, seu subalterno. Esse homem era odiado
pelo senhor poderoso, era ele quem dormia diariamente com aquela índia que
corria livre nas terras do asmático coronel seco, de pé em cima de um cavalo ou
pulava, dando sarabandas, nos cacimbões próximos às minas de cristal de rocha.
Ele era mais velho do que ele e seu marido, mas parecia mais novo pois não
carecia ter mais de dois ofícios: vistoriar as terras para evitar conflitos e
ganhar dinheiro, comprando, engordando e vendendo rezes. Sabe-se que vivia com
duas irmãs, que serão descritas no momento oportuno. Sabemos sobre sua vida,
devido à história oral que nos chegou e meia dúzia de fotografias antigas, em
cujos versos, são legíveis as distintas dedicatórias. Começaremos com a mãe da
bela índia, sendo laçada, pega a dente de cachorro, como se dizia à época.
Quando o vimos pela primeira vez, parecia purficado através da água que banhou
aquele bebê.
Há um homem comum Dentro de cada homem
Com seus dentes E memórias coladas Aos pescoços de suas presas Como moscas
imóveis Na aderência do papel Junto aos fragmentos Minúsculos dos sonhos Há um
homem comum Dentro do homem raro Que toca as bordas dos abismos E vê o fogo
entrelaçar A carne viva A morte branca Dos ossos da palavra Há uma fogueira
acesa Dentro de cada um desses homens Os olhos do sensível Choram ao ouvir o
galope Estranho das ferraduras antigas Dos cascos primeiros E suas feridas
Grades corrosivas dos gestos Há dentro dos homens Lágrimas comuns de sangue
Rios de prazer e dor Imensos e caudalosos Inundando os seus vazios
CYANE
PACHECO – Reunião de
textos e artes da escritora e artista visual Cyane Pacheco. Veja mais aqui, aqui,
aqui, aqui & aqui.