sexta-feira, junho 22, 2018

BORGES & EUGÉNIO, DE VITAL CORRÂ DE ARAÚJO



BORGES & EUGÉNIO

A palavra aberta
Como reconhecer anjos?
Pelos testículos cândidos
(as veias da poesia nuas
o fêmur do verbo exposto
a fratura do espírito em riste)
a Bono Vox (U-2_
Compêndio neste volume duas coletâneas de poemas
(Borges e Eugénio e Testículos cândidos) compostos
em tempos diferentes: 2010 e 2011, que se assemelham
face alguma singularidade temática, que favorece a
consolidação.

FUNÇÃO DO POETA/FIM DA POESIA
À dor de (não) dar realidade aos desejos
A Jomar Muniz de Brito
Aos limites cristalinos e lascivos do ser

Todos os poemas já foram escritos
Resta reescrevê-los (todos)
Até que toso os poemas estejam escritos.
O tempo suspenderá as sessões
Em seus palcos
E seu curso imaginário (a Bachelard).
Escritores passam a vida repetindo palavras, cenas, situações
(cobrando continuidades falsas)
Sempre as mesmas palavras
Em situações diversas (ou não)
Polindo-as, repolindo-as (desfazendo-as)
Apartando-as, desapertando-as
Do curral da página
Em busca da experiência definitiva e perfeita
(a Unanummo).

AGONIA DO POETA

Aqui começa a decomposição do poeta
Pútrida erosão de suas rimas (árticas)
E odor malévolo das sextinas rústicas
Se espraiam como infecção galopante
Pelas raias do intestino (diverticulítico)
Pelos lombos do tomo, pelos vales da página
Se espalha como água que onda transporta
Narinas da estrofe tumefacta
Aqui começa torneio cruel
E infrutífera queda das metáforas
Vitória grotesca da metafísica da carne
Aqui começa iodada e ininterrupta
(porque perpétua, invencível)
Putrefação dos eruditos (e suas graxas retóricas)

COGNOMINADO POETA

Ele participa com máscaras e fermentos
Da vida
E do vigor desse jogo absorto e imaginário
Portanto vil
Chamado poesia
Vem a dor do ver assim o mundo
(de cabeça para baixo a pútrida
Palavra que o mascara)
Ele se orgulha
De possuir o mais perigoso dos dons
(e o mais inocente dos ofícios ósseos do espírito)
Dono que é de bens impunes (e herdados)
Persistentes, inesgotáveis
Do espólio da palavra
Ele sente a profundidade antiga
(e a profanidade viva)
Do insumo que ao ente do sonho assedia
Ele sente
O que o ilumina
De ilimitadas ilusões
Ele é o coração da verdade e sua vítima: poeta.

TERCEIRO POEMA

Amor não é onda
Vermelho assome
Ou vingue azul de náusea.
Amor é quando
Paramos do coração viram chamas
Ou ecos do que sentes assim
Que rosas se insurjam
Contra os simulacros da primavera
(contra as pátrias dos espinhos
Contra os cravos, cavalos verdes, botinas, esporas
E trapos mal-cheirosos do povo).
(Amor é cinza
Do que restar de vivo
Após o abandono).
Amor é o de Píramo e Tisbe
(que o vermelho da tragédia perpetua
Nas rosas e páginas dos jardins sem édens).

RUÍNA DO AMOR E INTERROGAÇÕES AZUIS

O tempo corroeu mármores, corações
Arruinou o amor
Desejo é olvido, Baco vinho ambíguo
Sinfonia de jacintos e andorinhas
Cópula de margaridas e beija-flores
Coito de rouxinóis e madressilvas
Boda de magnólias e bem-te-vis
Melodia de unguentos e canoros sêmens
Sinfonia de repuxos e corações partidos
(Bruxelas de luz ou cegas candeias de carne?)
Esculpir do barro entranhas de pássaros
E decifrar sombras do átrio de labirintos
Bálsamo sacrossanto das bocetas morder


NOVOS ÍCAROS
VOOS REDIVIVOS

Eróticos ícaros de ímpetos impiedosos
Suturados de viço e cor acorriam
Ao coração infinito, ao vertiginoso atanor
Heroicos sem cesuras a eretos céus ascendiam
À liça inabalável em prol da luz primeva
À imortalidade do fogo (que Heráclito cuspia)
Ao crivo infernal ou embraseado éden (gótico)
De embuçados arabescos nutriam-se areias
Nimbos que absorviam mágoas
E oceanos de cera se formavam
Em torno dos círculos de seu voo lateral (letal como a cera)
(e sublime porque o impiedoso sol invejou)
Ante os dardos flamejantes liquefez-se (o dom) ou fizeram-se
(o voo, a cera, a astúcia, o diadema)
Da líquida queda a vida os ampare
Ou o poema os arremeta à eternidade.

AOS AMANTES

Amantes acorrentam a tarde
A suas ânsias corpóreas
Aos cais dos desejos acurados
Desembarcam do porto dos abraços
Naus insensatas dos sentidos ancoram
No mar do corpo
Abeiram-se a suas bocas de água
Enquanto lua vaga sucumbe a seus gritos
Que gávea dos orgasmos galardoa.

VERDADE APODÍTICA

Se fôssemos incinerar
Toneladas de falsa poesia
Que se publica no Brasil
A cada ano o fogo
Eterno seria suficiente?

VERÃO ANIMAL
À praia de Boa Viagem
berço de meus filhos
náutico sítio de minha adolescência

Verão, limiar do pecado, estação
Dos desejos desencadeados
Animal claro, a veia
Latejando como abelha de cambraia
Enxame de luz acossando o corpo
Escuro do passado
Verão que a pele arde
Sonha com mordidas
Seu rumor ardente
Já se flagra
Contra toda indolência
E qualquer máscara
O verão abre seu curso preclaro
Sua nudez de pássaro e geometria
Nas areias que ardem
Da praia de Boa Viagem
E traz seus potros ávidos
De luz e sal para dentro
De nossos rostos árticos

SIMULACRO DE LUZ

Ao crepúsculo do ídolo a razão perde
Substancia e sensibilidade
Brilhos de pântano simula
Com suas perdas e lápides
Impiedosas vozes oferece ao sigilo
Emaranha-se de mudos utensílios
E esvai-se a lapidar vãs pérolas escuras
A rés do ocaso que ergue seu triunfo
Simulacro das cores abandonadas do meio-dia
A alma vã não perde por esperar
O afã de quando acorde
Ao som orgiástico do corpo em festa
Blasfema com ela
Cansaço da esperança
Faz presente incansavelmente
Na sina humana
Que carniças deixa a aurora
Pinos que o meio-dia abandona
Lixões de cores do crepúsculo
Legado à noite de Deus (dará
Abandono do Criador
O desprezo humano?)

DESESPERA
(todos os poemas já foram escritos
resta reescrevê-los)

Vocábulos de cavalo e ternura me chegaram
De súbito se empoleiraram
No varal imaginário
Deparei-me no papel com a urgência da vertigem
(branco do papel linho do céu continha
Oculto texto de loucura relva sem juízo)
Esperei na página a montagem
O vórtice dos sintagmas (fúria verbal sincera)
Expus a nu o pensamento (e a doença
A cura e a loucura)
E rol louco das palavras veio de súbito
Assombro para úmido tom caligráfico, mancha pura
Esperei a paciência e o tempo transpassa-lo
(com seu alfanje selvagem confrontá-lo)
Até recobrir impiedosa pátina
(de horas e lodo do limbo e da alma)
E revela-los à página desesperada
E calarem todos os cavalos do vocábulo
(de horas e lodo do limbo e da alma)
E revelá-los à página desesperada
E calarem todos os cavalos do vocábulo
Patas, trotes, crinas, consoantes labiarem-se
Como se fossem vogais dos lábios
Do desejo, salivas da sede do corpo
Da carne da alma.

VASO DE CINZA

As cinzas de Fênix foram
Religiosamente recolhidas
Depositadas num vaso cinéreo bege
E jogadas no prado ático
(páramo da ressurreição órfica
Elemento do poema terrestre)
(guardados da boceta de Pandora?)

RETICÊNCIAS E SILÊNCIO

Quando as frágeis galáxias se cansarem
De seu périplos cósmicos intranquilos
(ou de suas rotações irresponsáveis)
De seus náufragos e gratos brilhos estagnados
E luzes perpendiculares (e cursos enlouquecendo) quando
A face úmbria da lua iluminar-se de dor
Quando o vasto empíreo arrefecer-se
Entropia devorando intestinos celestes
(com os dentes das energias coaguladas)
Quando cometas e suas rápidas cabeleiras
Aproximarem-se dos barbeiros buracos-negros...

EU CONFESSO

O que vou dizer não ouça (leitora tola e última).
Se ler, cale, ó tonta amiga. És a última (esperança)
Leitora desse conto íntimo, cavo hausto
De palavra ébria, náufraga, ázima.
Vou narrar aventuras da alma. Alma
Que atravessou vísceras sem data e crepúsculos tantos
Que transitou pela espessura dos séculos.
E ronda pela eternidade deserta (sem guia
Abrigo, oriente, morte, endereço, azimute, lenço)
Pelos ermos da carne vaga ofuscada
Por ecos de outra estrada.
Onde se perde o nunca. Onde
O quando perambula, o agora pende, onde
O antes passará após o depois.
Move-se rumo ao íntimo.
Da volúpia do espírito. Bússolas
De sal sinalizam a alma exilada
Da carne (seu úmido paraíso), oriente escuro
Itinerário real da sombra da sombra da sombra do poema.

BORGES & EUGÉNIOO livro Borges & Eugénio (Bagaço, 2012), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, traz epígrafes de Eugénio de Andrade: um dos maiores poetas do século vinte, Arte Literária, a obra dividida pelas partes Pontos dos Is traços dos Tês, Incrédulo verbo, A verdade é frágil a perfeição inflexível, Noturno de Boa Viagem e poema último, Testículos cândidos (poemas) o (verdadeiro e sincero) sexo dos anjos – como reconhecer anjos? Por seus testículos cândidos. Os anjos são machos! -, Canto a minha ou a tua morte & Sobre Borges e A cada um negue odre de sede. Veja mais aqui, aqui e aqui.