sábado, junho 09, 2018

AVE SÓLIDA, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO



O POETA

O que move o poeta
No instante da poesia
Ele não sabe
(nem adivinha).
Somente sabe, sente
Que é movido,
E move-se.
Como um deus
Servido por suas criaturas.

ALICERCES DA LUZ

Luz alicerça edifícios sombrios
Penumbras ruinosas, sois calcinados
Dias mortos, exílios azuis, delirantes altares
Pássaros devorados pelo desejo noturno
Por noites abraçadas a lampejos cegos
Luas alcantiladas de ósseos cães metálicos
No hostil planeta em que morremos.

VIABILIZE O INVISÍVEL

Se você não morreu ainda vive
Em si encaracolado
Na concha da palavra Ser
Os olhos morrem primeiro
Depois o rosto, por fim o futuro
(enterrem o universo em mim)
Quando cães abandonam a veia
Deixa de latir a parca, consola uivo
Assola quimera desolada e nua
O vinho desata do corpo da alma
A boca rende-se ao amaro
O coração procura sua ruína
Mas esse você não sou
Eu que já morto estou
Adeus sentidos do mundo
É inútil qualquer querer
E o próprio céu se faz cinza
A dor rasteja, festeja o abandono.

AS VEIAS NOTURNAS DO DESEJO

Os aromas da alma se dessedentam à tarde
Nas trilhas que suor abre na pele
Amparam-se nos rictus da saliva
Ou nas corredeiras livres do sêmen.
Perfumes noturnos escorrem dos seios da sombra
Para o meio-dia, para o auge do pântano
Para as vozes do século
Quando enlouquecem as palavras
E as imagens náufragas se levantam
Contra a férrea aurora (impiedoso outono).
Contra os olhos da sede, contra as pálpebras da incúria.
Mãos absortas no vazio adivinham a náusea
(que nauseabundam os dedos).
No silêncio a libido eleva o brado
E retumba o desejo nas veigas da culpa
Nos castelos da praia, nas folhas da relva de vidro
Nos destinos da proa.
No poente dos corpos cercado de estertores
E veias que recendem a jardins putrefatos
Ou afogam-se em flores funerárias pertinazes (e azuis)
Resta o desejo noturno, estanque, desesperado.

A ALMA NA SALA

Sexo, preciosa petisqueira
A alma, o arco da sala
Peito, velha prateleira
WC, o traste do coração
Braços têm a forma de cadeira
E os sentidos são janelas
Tórax apenas um lavabo
Os sonhos qualquer sábado.

ERÓTICA E SERPENTE

A sensação erótica é uma serpente
Imersa num cálice que freme
(na noite do sangue que fenece).
Entre papoulas voluptuosas.
No dorso das vertigens nuas.
Arde o bote.

PAA ELA CURVAM-SE ARCO-ÍRIS

Ela vem do levante, de opalescentes
Luzes de madrepérola nascente aureolada
De agonizantes jacintos coroada
Adestrada por bem-te-vis gentis
Junto ao rosto bando de rosas
Vem abrindo botões carmins
Autorizando desabrocharem pássaros de seus lábios
Preparando alvoradas de jasmins
Azafama de cores derramada do jardim.
Com elas chusmas de luz copulam com aves viris
Nas águas de marfim do amanhecer
E os céus como imensos potes côncavos abrem-se
Em lentas copas de perfumes perfeitos
À sua majestosa passagem tremem escuros
Madressilvas beijam-se, andorinhas sonham, a tristeza chora
Quando ela passa, magnifica de carne os espíritos.
Quando ela chega arcos de violinos fluem
Da veia escura vem luz e música
E ela passa sob curva triunfal de arco-íris
Entre ambrosias que gritam
E seivas que se levantam
Dos úmidos gestos de alegria
Fervilhando cânticos de lenho ao céu do lume.

TAREFA

Todo anjo é terrível
(e lavável).
Anjos estão fatigados da invencível
Vigia e dos secretos diademas, das cismas e dúvidas do homem
Que guardam em seus alforjes sais de êxtase e fuga.
Tombam cansados os anjos
Exaustos da volúpia de existir.
Aéreo e áspero ofício de vigiar.
(Voo de anjo dissolve algemas
Rechaça o aço da intempérie, destrói
O metal das almas, torna a dor devaneio).
Os anjos e sua vasta existência
A Rilke ofereceram
Divas legiões de metáforas
E o segredo da palavra.

20 DE MAIO DE 1915
Natal de meu pai
Eclipse da minha avó
Aos 16 anos

Paz perfumada pelas urzes da várzea
Do tugúrio de São José
Pousou pesadamente sobre a última pazada
Da tumular caliça de maio
Daquele maio obliquo e caliginoso
Daquele vinte de maio distante, melancólico, presente
Em que minha jovem avó morreu
Para o meu velho pai nascer
Em que minha vó enterrou-se na memória
Partiu, abandonou-nos jovem
Para que esses versos tristes
Eu pudesse escrever.
Ave, Vinte de Maio de 1915
Eu também te festejo e choro.

CÁLCULO DA BORBOLETA

No cálculo da borboleta Deus ousou.
Sua geometria alada, a leveza do traço
Quase aéreo, a cor pudica e voraz
O indelével bordado, a pureza extrema
O trisado supremo, elementar, vital, a severa
E ardilosa arquitetura de seda da asa
A brisa etérea e vagarosa, ou quase imaginário
Ar, onde ela paira
A delicadeza ampla que perpassa
E a pomposa melancolia quando vagueia
(os olhos presa da ondulação perfeita).
(poema à borboleta que tece
Arabescos de cor ao vento e mostra
Que a beleza não é difícil).

AVE SÓLIDAO livro Ave sólida (Bagaço, 2010), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, traz epígrafes de Octávio Paz, Lazama Lima & Marcus Acccioly, A propósito de Ave Sólida & Adendo por Cláudio Veras, comentário na contra-capa de Sebastien Joaquim & César Leal, dividido pelas partes Lance de búzios sempre abolirá o acaso, Visível invisível & Intermezzo lírico. Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.