domingo, junho 03, 2018

ORA PRO NOBIS SCANIA VABIS, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO



MEU CORAÇÃO

Meu coração está ébrio e delira
Navegando pelos escolhos da tristeza
Na busca de qualquer porto bêbado
Para abrigo de suas dores e medos
Meu coração está embriagado e gargalha
Na proa dos sonhos mais antigos
Porque os novos já naufragaram
Batidos pelos ventos do terceiro milênio
Ele está bêbado e alegre
Como uma menina
Atacado pela ilusão do brinquedo
Que é a vida.

PERMANÊNCIA DO POENTE
Ao decadente ocidente delicado

Da soberba alvorada ímpeto
Dos pássaros cortante grito
A garganta de clarim dos galos
As metalúrgicas hastes da claridade
A imensa iluminação das manhãs
Suas metálicas luzes de madrepérola
Da aurora o renovado útero
A álvara parafernália
Todo o fulgor do alumínio matinal
Ou o lance de pinos do sol
Na mesa do meio-dia
Tudo junto ou não
Jamais abolirá o acaso.

VÊNUS VEM

Vênus vem do sumo
Do sumo nu
Da nudez magnânima
Que anima o homem
A dor marítima acalma
O amor rochoso
E o rumor submerso da graça
Ela traz para o sigilo
Para a cantata que dobra a boca dos pássaros
Sino alado.
Seu olhar modela a concha
Do coração humano
Convoca todas as febres
Todas as vertigens conclama
Leva prosélitos a todos os desatinos
(do seu olhar militam dores
e cinco gestos nele se debruçam
dele nascem ares desabitados)
Abre a veia de todas as solidões
Liberta âncoras
Do jugo de marés e sargaços
E das pétreas ondas leva
Os desejos para a tona
Onde a espuma espera.

GOZOZO GOZO

A íris selvagem, o rebelado fulgor
A volúpia do olhar incendiando o outro
Maduros cios habitando o seio
O torso do candelabro imerso
No incêndio do corpo, a chama pálida da alma
Iluminando o êxtase, a lâmina dos olhos
A navalha da carne (o sulco da noite suja escorrendo)
Abrindo as ébrias paisagens do gozo
Mamilo em riste, falo endoidecido
Do breve leito lençóis lascivos salpicados
Por úmidas estrelas de gozo
O céu das ancas (e o éden do púbis)
Me enlouquecendo, acendendo-me tão noturno
A nudez da água, o fogo voluptuoso
O ereto instante parco e supremo
A pequena morte atiçando os olhos
Coração disparado como vulcão hebraico.
(Estremece a mão, a tonta alma arfa
O alento corporal cresce, fruto que rebenta
Átomos bêbados da luz lascívia
Mordem-se como cães esfomeados: o amor).

MANIFESTAÇÃO SOBRE O POEMA

Poema
Sopro estagnado
Coagulo de palavras na página
Louvor à noite escura dos sentidos
Júbilo das veias fechadas do texto
Festa das manhãs abertas da alma.

OLHOS DO TÚMULO

Quem era o morto
Não pergunte à lapide
A memória do mármore é vã
Falível ata a dos homens
Os olhos do túmulo contemplam
Duas datas fatais (e não falam)
Nomes também vão ao pó
Com as pedras da lápide
E os olhos do túmulo.

DA CRIAÇÃO

Lições de asas, cinzas de ervas
Vazios exatos, rostos reconstituídos
Com a matéria das últimas máscaras
(destroços do irrevelado ainda)
Barro edênico e solitário
Paraiso sem nome ou palavra
Ruinas do nume, sopro inominado.
Tantas rosas efêmeras
Tornam eterno jardim.
(assim é a poesia deste tempo
Sem mim).

D’ÁGUA DIGO
“O cervo é um vento escuro”

Agua estagnada
Goteja para o nada
Assola o céu coalhado
Nuvens grávidas
Salta sobre moendas de sal
Como sapo da lapela das estrelas
E se persiste (o mó)
Oca a pedra
Greta abre na rocha
Eterna da noite
Rio (de almas e luzes) embosca a pedra
Presa (e íntegra) e a líquida em saboques
E só cinza de reflexos, eco
Do porvir (vaso) trincado, salva
E se água sucumba ao lábio estremece como
Espelhos atraiçoados pelo som opaco (e inóspito)

POEMA

Cristal irredutível
A um grito de luz
A um átomo do espírito
A um vítreo fulgor do gesto
A um mágico rigor da água
A uma molécula do tempo
A um espasmo do ar nosso
(núpcia de pena e tinta
Abraço de céu e treva
Num enlace da palavra argentina)
Poema, cristal irredutível
A uma harpa de orvalho
A uma seiva de granito
A um sopro de barro
(num cálice de basalto recolhido).
(Poema, íntimo humo cavo
Fôlego sem limite do verbo
Corpo de palavra, antro do espírito)
(Ainda que sonhes
Não verá o sangue
Do cristal ferido)

PERDA DO ROSTO

Perde o rosto
Para o tempo (infinito) o homem
E para a morte (que é eterna)
E torna o rosto
Faminto pasto de vermes
Unguento de incansáveis gusanos
Ceia fera (eficaz banquete)
Que ébrias sombras testemunham
(de alto a baixo)

ORA PRO NOBIS SCANIA VABIS - O livro Ora pro nobis Scania Vabis (Bagaço, 2010), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, possui prefácio de Rogério Generoso (A estética da poesia moderna), O que torna moderna a poesia moderna?, do próprio autor, Ouvida de poetas, Approach critica com base nas ideais de Os signos em rotação, de Octavio Paz, Suma de Rogério Generoso, Manuel Florentino Corrêa de Araújo Poeta, e é dividido das seguintes partes: Cântico branco, A morte e o rosto, Mandíbula eleata, Educação pela palavra poema, Coração de barro barroco coração e Estou (meditação de pedra), com posfácio Poeta hermético, e daí, de Cláudio Veras, Ex Positis. Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.