OS SENTIDOS DO POEMA
Ouço o véu ondulante de
Maya
Bebo a ilusão em cálices
lautos
Vejo o rosário cego
De que estão tecidas
almas e noites
E tramados os segundos
humanos
Toco as espumas divos
gêmeas
E a concha deslumbrante
da deusa
O aroma do ditirambo
invade
Minhas líricas narinas,
vou ao alfanje
Com que abato touros e
clareio labirintos.
DERROTA PELA PEDRA
Pedra somos
E a dor não nos penetra
porque não odiamos
O sentimento endurecido
não resvala para sua face áspera.
Como pedra tombamos
A terra guarda a sombra,
a cicatriz cintila
A mineral solidão
ilumina o cansaço, clareia confins
Grutas traumáticas,
orlas sem nome, verdades de argila.
Dia-a-dia mais
O humano morre em nós
Com tenacidade animal
industrializamos a alma.
Dia-a-dia menos humanos
somos
E mais pedras.
Os parcos silos de
felicidades extinguimos
As ogivas da dor
elevamos a céus de pedra e asco
Da pedra ao grito não há
Trânsito, pássaro,
limite, motivo.
Do silêncio das coisas
aveludadas erguem-se
O sal do artificio, as
nozes da saliência, os uivos, as dízimas
Ou dúzias de semióticas cegas
(semânticas ocas).
Não somos melhores do
que o orvalho.
Nem somos pedras
cambrianas. Mas pó,
E do pó não escapará
nossa alma.
EU ÁLAMO
“é o afrodisíaco leito de hetairas
na
antecâmara lúbrica do abismo”
Augusto dos Anjos
Com sílabas cortes do
poema
Ou sintagmas cortes de
palavras
Ísis juntou o
despedaçado corpo de Osíris
Pedaço por pedaço letra
por letra:
Num sopro moldou-lhe
alma.
ERA UM QUARTO EM LISBOA
AINDA EM NOVEMBRO E CHOVIA
Acordei quando o quarto
anjo vomitou
Em meu rosto esquerdo exalando
Biles apocalíptica em
meu tétrico leito
E minhas cinco insônias se
desesperaram
Então tomei um adriano
ramos pinto branco sexo
E fiz este poema súbito
como víbora no escuro
Depois outro com o barro
ainda ébrio do primeiro
“meu sepulcro é índigo,
minha rima gótica”
Dilúcila minha navalha
amarela
É de Drácula meu sangue
noturno
E meu olho solar de
Apolo
O amor nunca morre em
abril
Os pátios de Pernambuco
são “trampolins para o futuro”.
Então vírgula dormi até
às seis com Beatriz.
REALIDADE
Tudo é vaidade
Nada mais que vaidade
É a vida frenesi ou
ilusão
A sombra de uma vaidade
A névoa de uma verdade.
EPITÁFIO CÔNICO
(em forma de crônica)
Morri ontem ao raiar do
dia
A manhã ainda pássaro
fora
Claridade estraçalhando-me
lentamente
O sol apenas anunciado
por clarões vazios
Eu que nasci num domingo
Dentro do córrego de
minha mãe
Ante meu pai extático e
a perícia do Tio Emigdio
Obstetra, morri
Em Recife
Não sei quando, como,
por quê
Morri na solidão
enregelada da metrópole
Anônimo como uma barata
melancólica
Sitiado de silêncio
árido e flores convulsas
As avenidas me viram
morrer
E não sorriram
O enterro, procissão de
nervos, prantos, poeira
Suores, rumores de barro
e frieiras foi intranquilo e crasso
Ao baixar ao sepulcro
senti
Cimentos pesarem em meu
rosto
(e o espíirito
desvencilhar-se da terrível armadura
da armadilha terrena,
tomar ares de pássaro
longe dos reinos
subterrâneos)
Dístico servia de marca
na lápide de surdo mármore
“não obteve salvação
pela poesia, felizmente!”
DECLARAÇÃO SEM PRINCÍPIO
(ou areai, Senhor, o
futuro dos novilhos d’ouro
ou bezerros de
carne-e-0sso!)
Algo muco-purulento o
corpo da pátria assedia
Aprofunda-se ira cidadã
nas veias do Brasil.
LEITURA
Inermes alfarrábios,
neles
Leio o pó do futuro,
vejo
Rostos passados, vozes
de ruinas
Dias que virão
enterrados.
AOS MORTOS DE ABRIL
(poema realista)
À América Latina
sepultada sob o escombro da tortura
Os mortos, imagino-os
ossos esquecidos
Sob lápides esclerosadas
quase cegas
Dilapidadas pelas horas
e o remorso dos vivos
Solapados no silêncio
inumano da campa
Que o tempo amarelo
ignora
E o acaso vitupera com
os dardos da história.
Suas cinzas floresceram
entre datas lapidares
Ventos corrosivos
erodiram o coração de cemitérios
E o pâncreas do morto
avolumado
Brilhou entre vísceras
amarelas.
A dor eles deixaram
Lavrar a terra em que
viveram
Encarcerados em corpos
puros
Presa de almas
desoladas.
Mares apodrecem na
memoria dos mortos
E cais se suicidam em
seus rostos lentos.
BARCA DOS SENTIDOS
Os meus sentidos são
aldeias longas
Atravessadas de desejos
velhos
São povoados sem nome
Abandonadas ovelhas
Ervilhas rodeadas de
abelhas
São meus tristes
sentidos
Viveiro de estrelas nas
veias
Relâmpagos ecoando no
olho
Gerúndios revoando
Sob a hélice da sintaxe
Ante a prosódia do
instante.
GRITO DE PEDRA
Deixem-me só com a pedra
e o grito
Numa campa de papoulas
Sinos de hortelã às dez
horas
Entreguem-me à gravidade
Do azul marinho
Num horto de algas
E liquens infinitos
Às líricas oblações da
praia deem-me
Movam-se às portas do
sono
Que a hora é de fuga e
sal.
CONFISSÃO A IVONILDE
Siclos de cássia
Torres de mirra
Urros de rimas
Centímetros de cálamo
Razias de ritos
Desses de sarça
Balsamos em jorro
Dez hins de azeite
Onze côvados de
unguentos
Dúzias de gozo
Grosas de rosas
Resmas de alecrins
Bacias de cinamomos
Cubas de tempo
Metros de incenso
Revoadas de bem-te-vis
Não valem
Um poro de tua pele
Um cêntimo de teu cheiro.
O AMOR CURA
A tristeza sem nome o
orgulho vazio
A saudade que despedaça
Cura o amor
A espera sem data a
vaidade idiota
O desespero sem porta a
certeza janota
Cura o amor
A ilusão da vida o suor
da lida
Lágrimas esquecidas
Cura o amor.
RIMBAUD ABANDONADO
Vejo Rimbaud abandonado
vagando sem bússola ou cais
Pelos desertos de sua
alma náufraga
Como ária dos areais em
brasa da África
Como pároco de pedra e
abandono
Como nômade que busque
oásis perdidos
Vejo Rimbaud perambular
nos cânions de teus olhos
Em busca da palavra
mineral
Da cor da lágrima do
meio-dia
À cata de um coração ou
de uma migalha de orvalho
De um rosto franco
enterrado na areia
À procura da sede inatingível.
O barro do deserto
ocultando esterco
A aura das fezes contaminando
a noite
A radiante alma obscura
clâmide
Atirada contra sombras
ardentes
Contra o sol e o fragor
torrencial da dor.
PALPO A QUIMERA E O TREMOR
– O livro Palpo a quimera e o tremor (Bagaço, 2009), do
escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, possui
prefácio de Delmo Montenegro: Prefácio (sobre um motivo de Vinicius de Moraes),
Só as paredes confesso, de Valdene Duarte, Fragmentos críticos de César Leal
(ensaio publicado no Diário de Pernambuco) e A poesia por vir, do próprio
autor. Veja
mais aqui, aqui e aqui.