segunda-feira, maio 28, 2018

PALPO A QUIMERA E O TREMOR, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO


OS SENTIDOS DO POEMA

Ouço o véu ondulante de Maya
Bebo a ilusão em cálices lautos
Vejo o rosário cego
De que estão tecidas almas e noites
E tramados os segundos humanos
Toco as espumas divos gêmeas
E a concha deslumbrante da deusa
O aroma do ditirambo invade
Minhas líricas narinas, vou ao alfanje
Com que abato touros e clareio labirintos.

DERROTA PELA PEDRA

Pedra somos
E a dor não nos penetra porque não odiamos
O sentimento endurecido não resvala para sua face áspera.
Como pedra tombamos
A terra guarda a sombra, a cicatriz cintila
A mineral solidão ilumina o cansaço, clareia confins
Grutas traumáticas, orlas sem nome, verdades de argila.
Dia-a-dia mais
O humano morre em nós
Com tenacidade animal industrializamos a alma.
Dia-a-dia menos humanos somos
E mais pedras.
Os parcos silos de felicidades extinguimos
As ogivas da dor elevamos a céus de pedra e asco
Da pedra ao grito não há
Trânsito, pássaro, limite, motivo.
Do silêncio das coisas aveludadas erguem-se
O sal do artificio, as nozes da saliência, os uivos, as dízimas
Ou dúzias de semióticas cegas
(semânticas ocas).
Não somos melhores do que o orvalho.
Nem somos pedras cambrianas. Mas pó,
E do pó não escapará nossa alma.

EU ÁLAMO

é o afrodisíaco leito de hetairas
na antecâmara lúbrica do abismo
Augusto dos Anjos

Com sílabas cortes do poema
Ou sintagmas cortes de palavras
Ísis juntou o despedaçado corpo de Osíris
Pedaço por pedaço letra por letra:
Num sopro moldou-lhe alma.

ERA UM QUARTO EM LISBOA AINDA EM NOVEMBRO E CHOVIA

Acordei quando o quarto anjo vomitou
Em meu rosto esquerdo exalando
Biles apocalíptica em meu tétrico leito
E minhas cinco insônias se desesperaram
Então tomei um adriano ramos pinto branco sexo
E fiz este poema súbito como víbora no escuro
Depois outro com o barro ainda ébrio do primeiro
“meu sepulcro é índigo, minha rima gótica”
Dilúcila minha navalha amarela
É de Drácula meu sangue noturno
E meu olho solar de Apolo
O amor nunca morre em abril
Os pátios de Pernambuco são “trampolins para o futuro”.
Então vírgula dormi até às seis com Beatriz.

REALIDADE

Tudo é vaidade
Nada mais que vaidade
É a vida frenesi ou ilusão
A sombra de uma vaidade
A névoa de uma verdade.

EPITÁFIO CÔNICO
(em forma de crônica)

Morri ontem ao raiar do dia
A manhã ainda pássaro fora
Claridade estraçalhando-me lentamente
O sol apenas anunciado por clarões vazios
Eu que nasci num domingo
Dentro do córrego de minha mãe
Ante meu pai extático e a perícia do Tio Emigdio
Obstetra, morri
Em Recife
Não sei quando, como, por quê
Morri na solidão enregelada da metrópole
Anônimo como uma barata melancólica
Sitiado de silêncio árido e flores convulsas
As avenidas me viram morrer
E não sorriram
O enterro, procissão de nervos, prantos, poeira
Suores, rumores de barro e frieiras foi intranquilo e crasso
Ao baixar ao sepulcro senti
Cimentos pesarem em meu rosto
(e o espíirito desvencilhar-se da terrível armadura
da armadilha terrena, tomar ares de pássaro
longe dos reinos subterrâneos)
Dístico servia de marca na lápide de surdo mármore
“não obteve salvação pela poesia, felizmente!”

DECLARAÇÃO SEM PRINCÍPIO
(ou areai, Senhor, o futuro dos novilhos d’ouro
ou bezerros de carne-e-0sso!)

Algo muco-purulento o corpo da pátria assedia
Aprofunda-se ira cidadã nas veias do Brasil.

LEITURA

Inermes alfarrábios, neles
Leio o pó do futuro, vejo
Rostos passados, vozes de ruinas
Dias que virão enterrados.

AOS MORTOS DE ABRIL
(poema realista)
À América Latina sepultada sob o escombro da tortura

Os mortos, imagino-os ossos esquecidos
Sob lápides esclerosadas quase cegas
Dilapidadas pelas horas e o remorso dos vivos
Solapados no silêncio inumano da campa
Que o tempo amarelo ignora
E o acaso vitupera com os dardos da história.
Suas cinzas floresceram entre datas lapidares
Ventos corrosivos erodiram o coração de cemitérios
E o pâncreas do morto avolumado
Brilhou entre vísceras amarelas.
A dor eles deixaram
Lavrar a terra em que viveram
Encarcerados em corpos puros
Presa de almas desoladas.
Mares apodrecem na memoria dos mortos
E cais se suicidam em seus rostos lentos.

BARCA DOS SENTIDOS

Os meus sentidos são aldeias longas
Atravessadas de desejos velhos
São povoados sem nome
Abandonadas ovelhas
Ervilhas rodeadas de abelhas
São meus tristes sentidos
Viveiro de estrelas nas veias
Relâmpagos ecoando no olho
Gerúndios revoando
Sob a hélice da sintaxe
Ante a prosódia do instante.

GRITO DE PEDRA

Deixem-me só com a pedra e o grito
Numa campa de papoulas
Sinos de hortelã às dez horas
Entreguem-me à gravidade
Do azul marinho
Num horto de algas
E liquens infinitos
Às líricas oblações da praia deem-me
Movam-se às portas do sono
Que a hora é de fuga e sal.

CONFISSÃO A IVONILDE

Siclos de cássia
Torres de mirra
Urros de rimas
Centímetros de cálamo
Razias de ritos
Desses de sarça
Balsamos em jorro
Dez hins de azeite
Onze côvados de unguentos
Dúzias de gozo
Grosas de rosas
Resmas de alecrins
Bacias de cinamomos
Cubas de tempo
Metros de incenso
Revoadas de bem-te-vis
Não valem
Um poro de tua pele
Um cêntimo de teu cheiro.

O AMOR CURA

A tristeza sem nome o orgulho vazio
A saudade que despedaça
Cura o amor
A espera sem data a vaidade idiota
O desespero sem porta a certeza janota
Cura o amor
A ilusão da vida o suor da lida
Lágrimas esquecidas
Cura o amor.

RIMBAUD ABANDONADO

Vejo Rimbaud abandonado vagando sem bússola ou cais
Pelos desertos de sua alma náufraga
Como ária dos areais em brasa da África
Como pároco de pedra e abandono
Como nômade que busque oásis perdidos
Vejo Rimbaud perambular nos cânions de teus olhos
Em busca da palavra mineral
Da cor da lágrima do meio-dia
À cata de um coração ou de uma migalha de orvalho
De um rosto franco enterrado na areia
À procura da sede inatingível.
O barro do deserto ocultando esterco
A aura das fezes contaminando a noite
A radiante alma obscura clâmide
Atirada contra sombras ardentes
Contra o sol e o fragor torrencial da dor.


PALPO A QUIMERA E O TREMOR – O livro Palpo a quimera e o tremor (Bagaço, 2009), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, possui prefácio de Delmo Montenegro: Prefácio (sobre um motivo de Vinicius de Moraes), Só as paredes confesso, de Valdene Duarte, Fragmentos críticos de César Leal (ensaio publicado no Diário de Pernambuco) e A poesia por vir, do próprio autor. Veja mais aqui, aqui e aqui.