À
À túnica de relâmpagos
do céu
À brancura das almas
cruéis
À casa, a seus voos
azuis e velhas levezas rasantes
Às pastosas geometrias
da morte
Aos impunes precipícios
do sono
Ao céu, intenso terraço
de estrelas e pesadelos
Aos vícios redibitórios
Aos pecados occipitais
Ao tempo, a seus alentos
e sopros supremos
Aos desertos do amor
À melancolia dos leões
Às piras onde crepitam
césares
E assam títeres
sul-americanos
Imersos em cremes
pantanosos
Aos escombros de mim
mesmo
Ao mar palpitante de
gaivotas
E seus horizontes de
albatrozes
Às negras ondas que
curam areais
À lembrança das mobílias
estraçalhadas
Pela lâmina das horas
passadas
Nas alamedas do teu
rosto.
(CORAÇÃO, CORAÇÃO)
É uma ficção covarde
O coração:
Frágil taça de emoção
Vaso de fecundo olvido
Terra inútil músculo
baldio
(ao homem oco
e aos desafinados
corações humanos)
ENTERREM MEU OLHOS
Enterrem meus olhos
longe das ciladas do tempo
Perto das estrelas,
entre esferas e mosaicos do céu
Ou na cerâmica do
horizonte, além das gaivotas.
Que eles não ouçam rumor
a vermes
Nem úmeros deteriorados
ou meu coração
A devorá-lo eternidade
de gusanos
E meus inúmeros
neurônios dissolvendo-se
Poça putrefata, ásperas
secreções em debandada
(estirando-se pela caixa
craniana como rio escuro)
O crânio empapado,
silêncio absoluto
Ecoando nas frias
fímbrias do meu cadáver
(a voz de algum verme deglutida
pelo silêncio insuperável).
Enterrem meus olhos lá
no Olimpo
Entre harpias e quimeras
Perto do lado mais alto
Longe da náusea terrena
Nos planaltos que vivem
além do poente
Nas montanhas
entrincheiradas no infinito
Enterrem meus olhos
perto das estrelas
Longe do tempo, da
sarjeta das horas e deixem
Meu coração arruinar-se
No banquete escatológico
As vísceras na cova
abandonadas
Entregues à sanha dos
carnívoros sais da terra.
Enterrem meus olhos no
amanhecer.
POEMA DE LINHO
I
(tecelua)
Árduo urdume cravo
No verde corpo do agave
Na trama da palavra ergo
Ditirambos embriagados
No sono da cambraia
tramo
Sonhos de cetim alado.
II
(soltecer)
Ergo monumentos de
bramante
Estátuas jeans
Com o índigo da vida
estampado
Na alma brim
A FUGA DO ROSTO
Narciso se contempla
absorto
No amante que o aquoso
Espelho cria da matéria
Formosa do seu rosto
Ao beijar-se vê o lábio
Trêmulo da água ao sopro
Do amor mover-se como
De si fugisse a face
Ao suspiro de Narciso
Se encrespa a água
E a imagem amada
De si mesmo se
estilhaça.
DEO GRATIA
Pastoreias meu coração,
rumas-me ao sono entre estrelas
Em teu rosto bebo a
redenção, teu nome redime meu destino
De sete cintilações é
fecundo o rumor materno
O brilho da tua face
iluminou-me o berço
Tu velas-me a
existência, a alma acalmas, aplacas0me o medo
De aconchego e concha é
feito teu corpo.
O linho de tua sombra me
acalanta, de sonho
Guarneces-me inteiro e
puro contra as máculas do tempo.
És claridade e flor, mãe
minha, meu amor.
Vim de tuas águas,
cálidas e límpidas, deste-me a vida.
Ser me tornaste, de tua seiva
vim, sou teu sumo.
Graças a Deus,
Deográcia, sou um dos teus poemas.
Vim de tuas entranhas,
tão lúcidas e ternas
De tua carne jovem e
forte fui construído
Doaste-me a febre do
ser, de humanidade reveste o teu útero.
Hoje a prata do poente e
o ouro da gratidão te cobrem, Deográcia!
É INCURÁVEL O CORAÇÃO
Por que não jorram
Do coração alvoradas
Abrindo janelas e
veredas
Neste ser convulso e
inútil
Cofre de olvidos e
dores?
Por que não irrompem
manhãs
De suas terras noturnas
Abrindo porteiras e
derrotando
As portentosas hostes do
impuro
Que nele imperam em
jorros escuros?
NÚPCIAS ESCURAS
É morto Adônis, choram
amantes
E Vênus desesperada
beija-lhe o rosto
Que o vasto sono
conquistou
Vão por Adônis
suspirando fontes
Púrpuras rosas por ele
se tornam
E Vênus lamenta: ser
imortal é minha pena
Não posso segui-lo às
núpcias escuras
Aos templos da morte,
onde sombra
Seria sempre sua amante.
O QUE É O CORAÇÃO
O que é o coração
Além de ser um órgão oco
e muscular
Habitante da cave do
tórax
E bebedor de sangue –
esse vinho
Tinto e sonambulo que
noite afora
Rege as sinfonias do
corpo e nutre de imagens
Nossas fantasias
imperdoáveis?
O que é o coração
Além de ser essa bomba
vital
Maestro crucial que sob
o ritmo cardíaco
Da sua batuta comanda a espécie
E a odisseia humanas?
Coração, casa velha,
solitário caçador
Catre de emoção, pátio
incansável
Turvo leopardo,
andarilho rubro, arroio louco
Oásis súbito, desatinado
amigo, imperfeito parceiro
Terra inútil, músculo
vazio, noturna e covarde ficção
Cofre, nave, grito,
quimera incurável
Guerra sem armistício,
canção
POEMA SEM TÍTULO
Noites passam
Em minhas artérias claras
E em seus rubros
meandros
Bebem madrugadas.
SEIOS
Seios são rijos
Deuses redondos
Para o culto
Alpino do lábio
São canções de carne
Que mordem a boca
E encantam
A alma da mão.
ECONÔMICA
Há vagas
Para máquinas.
Não há vagas
Para homens.
POÉTICA
O vinho da palavra
Chama-se metáfora.
Sua embriaguez
A poesia.
50 POEMAS ESCOLHIDOS PELO AUTOR – Poemas extraídos da
obra 50 Poemas escolhidos pelo autor (Galo Branco, 2004), do
escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo. Veja mais aqui, aqui e aqui.