terça-feira, maio 15, 2018

50 POEMAS ESCOLHIDOS PELO AUTOR, VITAL CORRÊA DE ARAUJO


À

À túnica de relâmpagos do céu
À brancura das almas cruéis
À casa, a seus voos azuis e velhas levezas rasantes
Às pastosas geometrias da morte
Aos impunes precipícios do sono
Ao céu, intenso terraço de estrelas e pesadelos
Aos vícios redibitórios
Aos pecados occipitais
Ao tempo, a seus alentos e sopros supremos
Aos desertos do amor
À melancolia dos leões
Às piras onde crepitam césares
E assam títeres sul-americanos
Imersos em cremes pantanosos
Aos escombros de mim mesmo
Ao mar palpitante de gaivotas
E seus horizontes de albatrozes
Às negras ondas que curam areais
À lembrança das mobílias estraçalhadas
Pela lâmina das horas passadas
Nas alamedas do teu rosto.

(CORAÇÃO, CORAÇÃO)

É uma ficção covarde
O coração:
Frágil taça de emoção
Vaso de fecundo olvido
Terra inútil músculo baldio
(ao homem oco
e aos desafinados
corações humanos)

ENTERREM MEU OLHOS

Enterrem meus olhos longe das ciladas do tempo
Perto das estrelas, entre esferas e mosaicos do céu
Ou na cerâmica do horizonte, além das gaivotas.
Que eles não ouçam rumor a vermes
Nem úmeros deteriorados ou meu coração
A devorá-lo eternidade de gusanos
E meus inúmeros neurônios dissolvendo-se
Poça putrefata, ásperas secreções em debandada
(estirando-se pela caixa craniana como rio escuro)
O crânio empapado, silêncio absoluto
Ecoando nas frias fímbrias do meu cadáver
(a voz de algum verme deglutida pelo silêncio insuperável).
Enterrem meus olhos lá no Olimpo
Entre harpias e quimeras
Perto do lado mais alto
Longe da náusea terrena
Nos planaltos que vivem além do poente
Nas montanhas entrincheiradas no infinito
Enterrem meus olhos perto das estrelas
Longe do tempo, da sarjeta das horas e deixem
Meu coração arruinar-se
No banquete escatológico
As vísceras na cova abandonadas
Entregues à sanha dos carnívoros sais da terra.
Enterrem meus olhos no amanhecer.

POEMA DE LINHO

I
(tecelua)
Árduo urdume cravo
No verde corpo do agave
Na trama da palavra ergo
Ditirambos embriagados
No sono da cambraia tramo
Sonhos de cetim alado.
II
(soltecer)
Ergo monumentos de bramante
Estátuas jeans
Com o índigo da vida estampado
Na alma brim

A FUGA DO ROSTO

Narciso se contempla absorto
No amante que o aquoso
Espelho cria da matéria
Formosa do seu rosto
Ao beijar-se vê o lábio
Trêmulo da água ao sopro
Do amor mover-se como
De si fugisse a face
Ao suspiro de Narciso
Se encrespa a água
E a imagem amada
De si mesmo se estilhaça.

DEO GRATIA

Pastoreias meu coração, rumas-me ao sono entre estrelas
Em teu rosto bebo a redenção, teu nome redime meu destino
De sete cintilações é fecundo o rumor materno
O brilho da tua face iluminou-me o berço
Tu velas-me a existência, a alma acalmas, aplacas0me o medo
De aconchego e concha é feito teu corpo.
O linho de tua sombra me acalanta, de sonho
Guarneces-me inteiro e puro contra as máculas do tempo.
És claridade e flor, mãe minha, meu amor.
Vim de tuas águas, cálidas e límpidas, deste-me a vida.
Ser me tornaste, de tua seiva vim, sou teu sumo.
Graças a Deus, Deográcia, sou um dos teus poemas.
Vim de tuas entranhas, tão lúcidas e ternas
De tua carne jovem e forte fui construído
Doaste-me a febre do ser, de humanidade reveste o teu útero.
Hoje a prata do poente e o ouro da gratidão te cobrem, Deográcia!

É INCURÁVEL O CORAÇÃO

Por que não jorram
Do coração alvoradas
Abrindo janelas e veredas
Neste ser convulso e inútil
Cofre de olvidos e dores?
Por que não irrompem manhãs
De suas terras noturnas
Abrindo porteiras e derrotando
As portentosas hostes do impuro
Que nele imperam em jorros escuros?

NÚPCIAS ESCURAS

É morto Adônis, choram amantes
E Vênus desesperada beija-lhe o rosto
Que o vasto sono conquistou
Vão por Adônis suspirando fontes
Púrpuras rosas por ele se tornam
E Vênus lamenta: ser imortal é minha pena
Não posso segui-lo às núpcias escuras
Aos templos da morte, onde sombra
Seria sempre sua amante.

O QUE É O CORAÇÃO

O que é o coração
Além de ser um órgão oco e muscular
Habitante da cave do tórax
E bebedor de sangue – esse vinho
Tinto e sonambulo que noite afora
Rege as sinfonias do corpo e nutre de imagens
Nossas fantasias imperdoáveis?
O que é o coração
Além de ser essa bomba vital
Maestro crucial que sob o ritmo cardíaco
Da sua batuta comanda a espécie
E a odisseia humanas?
Coração, casa velha, solitário caçador
Catre de emoção, pátio incansável
Turvo leopardo, andarilho rubro, arroio louco
Oásis súbito, desatinado amigo, imperfeito parceiro
Terra inútil, músculo vazio, noturna e covarde ficção
Cofre, nave, grito, quimera incurável
Guerra sem armistício, canção

POEMA SEM TÍTULO

Noites passam
Em minhas artérias claras
E em seus rubros meandros
Bebem madrugadas.

SEIOS

Seios são rijos
Deuses redondos
Para o culto
Alpino do lábio
São canções de carne
Que mordem a boca
E encantam
A alma da mão.

ECONÔMICA

Há vagas
Para máquinas.
Não há vagas
Para homens.

POÉTICA

O vinho da palavra
Chama-se metáfora.
Sua embriaguez
A poesia.

50 POEMAS ESCOLHIDOS PELO AUTOR – Poemas extraídos da obra 50 Poemas escolhidos pelo autor (Galo Branco, 2004), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo. Veja mais aqui, aqui e aqui.