AO
CORAÇÃO, A ÚNICA
ESPERANÇA
DOS HOMENS OCOS
Ao
coração marinheiro de Neruda
Ao
insondável coração de Borges
Ao dublinense
coração de Joyce
Ao
coração escocês dos Powell
Ao
coração sem alarde de Eliot
Ao
coração vivo de Vinicius
Ao
coração guerreiro de Ezra
(que
repousa numa baixela trácia)
Ao
errante coração de Homero
Ao
romano coração de Virgilio
Ao azul
coração de Gagárin
Ao
coração vermelho de Nazin Kimet
Ao
coração pernambucano de Cabral
Ao
coração gitano de Lorca
Ao tão
grande coração de Drummond.
Este
CORAÇÃO DE AREIA.
AO
CORAÇÃO DOS CRÉDULOS
O rosa
com que o crepúsculo colore
O rosto
cansado das casas
Os lençóis
rotos que são
A
obscena prova do sono
A ferida
que a intempérie cria
Na carne
do monumento
A ruína
do rosto e da pedra
Esse
duro ofício do tempo
O pétreo
uivo da areia
Que
espanca a máscara da face
A lua
árabe que ofegante
Se despe
em cada oásis
Os rijos
pajens de sedosa pele
A morte
que nos desnuda e comove
Os
bárbaros que o poeta alexandrino aguarda
As
ébrias adegas do sono
Onde as
fadigas dessedentas
Os
rosados murmúrios do entardecer
Despertando
a melancolia da pele
Esse
velho coração tão crédulo
E
cansado de ilusões.
POEMA NA
MESA DO PÁTIO DE SÃO PEDRO
Amo o
átimo de tempo que me habita
E o
pórtico de espaço que me espanca
Pois de
instante e sítio sou composto.
O infinito
não me doma
Pois sua
porta é efêmera
E sua
carne ardilosa
Não me
ilude a fome santa.
Odeio as
normas do trânsito metafísico
E os
umbrais do intestino filosófico.
Assaltam-me
de cólera
As tachas
do féretro
As rotas
do Érebo e as tulhas
De quinquilharia
fria
Do sétimo
dia.
Despreza
as montras do estomago e o acetileno
Que persegue
Diógenes e obumbra o cenho.
Amo urnas
senhas sonhos ditirambos.
Silvas de
silêncio artes nuas salmos
Tanto quanto
detesto torturas e escravos
Rejeito as
taças amantes da cicuta
Aceno com
apreço ao inferno
Acinzento
das tavernas e pubs do espírito.
Acima de
tudo amo o céu do Pátio
E a
douda noute e atenta
Que abarca
e me contempla.
SOMBRAS
SOMOS
Vagueio entre
os dias
Sou uma
sombra de lâmpadas apunhalada
Uma ambulância
de estrelas cegas
Um peregrino
de ruas mortas.
Nada tenho
deste mundo a não ser o sol
Que golpeia
mármores e atravessa portas
Que salta
lince sobre meus olhos e diz:
Abre teu
canto, grita teu poema
Com a
força dos esôfagos
E amplitude
dos prados.
Guardo das
noites aromas perdidos
E antigos
orvalhos
E às
manhãs tenras me dobro
Como uma
haste de trigo.
SINFONIA
E POMAR
Num
pomar em Tibur
Um efebo
olha o outono.
E a
brisa manuseia sua túnica cínica.
Em seu
olho adolescente late um breve crepúsculo.
E
flautas frígias
Agudas
como vozes de eunucos
São a
ele oferecidas
Numa
bandeja de longos búzios.
(CORAÇÃO,
CORAÇÃO)
É uma
ficção covarde
O
coração
Frágil
taça de emoção
Vaso de
fecundo olvido
Terra
inútil, músculo vazio.
(ao
homem oco e aos desafinados
corações
humanos).
FLORES
DA URBE
Apodrecem
as rosas e os ditirambos
Nas vias
opressas as petúnias são atropeladas.
Os cravos
se acasalam nas lapelas
Recentes
dos defuntos e mordem
Suas faces
frias como mármores.
O balsamo
louco gargalha, as calêndulas
Comem os
alfarrábios.
Magnólias
desatinas se suicidam
Em plena
praça no crivo
Das ruas
côncavas.
As hortênsias
violentam os emolumentos.
O baldo
devora o nimbo.
Violeta é
morta
Os nardos
envenenam o duodeno
Jacintos
vociferam nos conventos.
Nas longas
madrugadas medram as bruscas flores da insônia.
Constelações
de cactos apunhalam
O solitário
hall dos edifícios
E coroam
com tulipas de neon
Os sulcos
sonâmbulos da taça.
Fedem as
begônias.
O hímen
da angélica agride
Os talos
da árvore urbana.
Florescem
as açucenas da cólera
No interstícios
da náusea.
Nos jardins
públicos pululam
Pirilampos
mecânicos
Sem lume
ou alma.
Nos céus
da cidade voejam
Borboletas
automáticas
Sem cor
ou graça
E no
peito da avenida vicejam
Andorinhas
sem ventre.
Aves de
metal bicam os olhos
Dos casulos
de aço mudo.
Choram
Os abetos
decapitados.
As orquídeas
vomitam
O ouro
dos vasos.
Acácias bêbadas
atropelam
O peito
dos magnatas.
As dálias
de Baudelaire tombam
Nos becos
amarelados.
Madressilvas
sangram no olfato.
Jardins são
decepados
Com a
foice dos semáforos.
Agonizam
artemísias
Nos canteiros
centenários.
Avencas gritam
Nas varandas
fatigadas.
Riem os
cravos brancos
Na soleira
dos velórios.
As coroas
mortuárias se instalam
No rosto
dos mortos importantes
E se
locupletam de sua boca fria.
As papoulas
opinam
Sobre os
eneágonos do fumo
E denunciam
a jade das hecatombes.
Nenúfares
se acantonam
No amanhecer
do sangue.
A dor
esfaqueia os miosótis.
Na hera
prospera a morte.
As grinaldas
berram.
Selas de
espinhos fendem
O coração
dos nubentes.
Nas celas
sem lua
As perpétuas
sonham
Com utopias
roxas.
Os lírios
bebem escorpiões.
As samambaias
famintas
Devoram as
tarântulas do jasmim.
Rouxinóis
imóveis fendem o silêncio
Das tundras
metropolitanas.
Inóspitos
sargaços nadam no logro
E se
afogam no ódio das gardênias urbanas.
As lentas
luzes das pétalas
Enlouquecem
os girassóis
O pólen
da cada hora emigra
Nos lívidos
jardins da urbe
Para longe
dos homens.
POEMA DE
LINHO PARA LIGIA CELESTE
(Poema
de linho para Lígia a artista que se foi no tempo em busca de paragens mais
brancas)
No céu
da tela, luas
De linho
bordadas
Com mãos
de domingo.
No horizonte
cândido,
O sol de
alvaiade
Expulso do
pincel
E treliças
de sal.
No dedo,
tranças
De agave
cor de neve
E nos
dentes místicos do urdume
Orações de
açúcar debulhadas
Da bíblia
de alfenim.
No âmago,
a noite de sisal
Alvejada
pela face
Das líricas
tempestades
De luz íntegra
(sem
tremores de cor
ou abalos
de grito)
no todo,
a soma
das
brandas álgebras
de
mistério e alvorada.
Na paz
aveludada,
O jogo
de cola e elo
De marfim
conformando a trégua
E o
xadrez apaziguado das espumas.
Na nudez
dos condões,
O fio da
sina e axiomas do sim
Além da
lição solar
Dos arabescos
de giz.
Na saia,
malhas de arroz metafísico
E cisnes
amanhecendo
Nutrindo
a candura
No ar
alabastrino.
No olho,
as tênues redes do tempo
Pescadas
pela mão, tocaiando
As horas
tresmalhadas
Tecidas na
alma e contempladas
Dos alpendres
de leite
De onde
brotam
As brumas
da trama
As alvas
caatingas
Os labirintos
urbanos.
Na carne
alada,
Os gestos
lépidos
Dos alinhavos
no cetim
Logo flagrados.
Na retina,
as cicatrizes falando
Aos habitantes
dos alvos sulcos
Das cândidas
paisagens
De lã e
arame geradas
Da mão
celeste com paixão precisa.
Na luz,
a sombra láctea
O apuro
dos domingos exatos
E o
êxtase claro
Na tela
marcado.
Na lenda,
entretecidos
Aves nubentes
E puros equinócios
de brim.
No coração,
o branco assombro
A alfombra
polar
E aves
de linho sangrando
O oceano
sem mácula
De Lígia
Celeste.
CORAÇÃO DE AREIA - Poemas
recolhidos da obra Coração de Areia (Fundarpe, 1994), do escritor, jornalista,
advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo. A
obra em referência foi aprovada por unanimidade pelo Conselho Editorial da
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe/Secretaria de Educação, Cultura e
Esportes), publicada em convênio com a Companhia Editora de Pernambuco (CEPE).
Veja mais aqui, aqui e aqui.