segunda-feira, maio 07, 2018

CORAÇÃO DE AREIA, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO


AO CORAÇÃO, A ÚNICA
ESPERANÇA DOS HOMENS OCOS

Ao coração marinheiro de Neruda
Ao insondável coração de Borges
Ao dublinense coração de Joyce
Ao coração escocês dos Powell
Ao coração sem alarde de Eliot
Ao coração vivo de Vinicius
Ao coração guerreiro de Ezra
(que repousa numa baixela trácia)
Ao errante coração de Homero
Ao romano coração de Virgilio
Ao azul coração de Gagárin
Ao coração vermelho de Nazin Kimet
Ao coração pernambucano de Cabral
Ao coração gitano de Lorca
Ao tão grande coração de Drummond.
Este CORAÇÃO DE AREIA.

AO CORAÇÃO DOS CRÉDULOS

O rosa com que o crepúsculo colore
O rosto cansado das casas
Os lençóis rotos que são
A obscena prova do sono
A ferida que a intempérie cria
Na carne do monumento
A ruína do rosto e da pedra
Esse duro ofício do tempo
O pétreo uivo da areia
Que espanca a máscara da face
A lua árabe que ofegante
Se despe em cada oásis
Os rijos pajens de sedosa pele
A morte que nos desnuda e comove
Os bárbaros que o poeta alexandrino aguarda
As ébrias adegas do sono
Onde as fadigas dessedentas
Os rosados murmúrios do entardecer
Despertando a melancolia da pele
Esse velho coração tão crédulo
E cansado de ilusões.

POEMA NA MESA DO PÁTIO DE SÃO PEDRO

Amo o átimo de tempo que me habita
E o pórtico de espaço que me espanca
Pois de instante e sítio sou composto.
O infinito não me doma
Pois sua porta é efêmera
E sua carne ardilosa
Não me ilude a fome santa.
Odeio as normas do trânsito metafísico
E os umbrais do intestino filosófico.
Assaltam-me de cólera
As tachas do féretro
As rotas do Érebo e as tulhas
De quinquilharia fria
Do sétimo dia.
Despreza as montras do estomago e o acetileno
Que persegue Diógenes e obumbra o cenho.
Amo urnas senhas sonhos ditirambos.
Silvas de silêncio artes nuas salmos
Tanto quanto detesto torturas e escravos
Rejeito as taças amantes da cicuta
Aceno com apreço ao inferno
Acinzento das tavernas e pubs do espírito.
Acima de tudo amo o céu do Pátio
E a douda noute e atenta
Que abarca e me contempla.

SOMBRAS SOMOS

Vagueio entre os dias
Sou uma sombra de lâmpadas apunhalada
Uma ambulância de estrelas cegas
Um peregrino de ruas mortas.
Nada tenho deste mundo a não ser o sol
Que golpeia mármores e atravessa portas
Que salta lince sobre meus olhos e diz:
Abre teu canto, grita teu poema
Com a força dos esôfagos
E amplitude dos prados.
Guardo das noites aromas perdidos
E antigos orvalhos
E às manhãs tenras me dobro
Como uma haste de trigo.

SINFONIA E POMAR

Num pomar em Tibur
Um efebo olha o outono.
E a brisa manuseia sua túnica cínica.
Em seu olho adolescente late um breve crepúsculo.
E flautas frígias
Agudas como vozes de eunucos
São a ele oferecidas
Numa bandeja de longos búzios.

(CORAÇÃO, CORAÇÃO)

É uma ficção covarde
O coração
Frágil taça de emoção
Vaso de fecundo olvido
Terra inútil, músculo vazio.
(ao homem oco e aos desafinados
corações humanos).

FLORES DA URBE

Apodrecem as rosas e os ditirambos
Nas vias opressas as petúnias são atropeladas.
Os cravos se acasalam nas lapelas
Recentes dos defuntos e mordem
Suas faces frias como mármores.
O balsamo louco gargalha, as calêndulas
Comem os alfarrábios.
Magnólias desatinas se suicidam
Em plena praça no crivo
Das ruas côncavas.
As hortênsias violentam os emolumentos.
O baldo devora o nimbo.
Violeta é morta
Os nardos envenenam o duodeno
Jacintos vociferam nos conventos.
Nas longas madrugadas medram as bruscas flores da insônia.
Constelações de cactos apunhalam
O solitário hall dos edifícios
E coroam com tulipas de neon
Os sulcos sonâmbulos da taça.
Fedem as begônias.
O hímen da angélica agride
Os talos da árvore urbana.
Florescem as açucenas da cólera
No interstícios da náusea.
Nos jardins públicos pululam
Pirilampos mecânicos
Sem lume ou alma.
Nos céus da cidade voejam
Borboletas automáticas
Sem cor ou graça
E no peito da avenida vicejam
Andorinhas sem ventre.
Aves de metal bicam os olhos
Dos casulos de aço mudo.
Choram
Os abetos decapitados.
As orquídeas vomitam
O ouro dos vasos.
Acácias bêbadas atropelam
O peito dos magnatas.
As dálias de Baudelaire tombam
Nos becos amarelados.
Madressilvas sangram no olfato.
Jardins são decepados
Com a foice dos semáforos.
Agonizam artemísias
Nos canteiros centenários.
Avencas gritam
Nas varandas fatigadas.
Riem os cravos brancos
Na soleira dos velórios.
As coroas mortuárias se instalam
No rosto dos mortos importantes
E se locupletam de sua boca fria.
As papoulas opinam
Sobre os eneágonos do fumo
E denunciam a jade das hecatombes.
Nenúfares se acantonam
No amanhecer do sangue.
A dor esfaqueia os miosótis.
Na hera prospera a morte.
As grinaldas berram.
Selas de espinhos fendem
O coração dos nubentes.
Nas celas sem lua
As perpétuas sonham
Com utopias roxas.
Os lírios bebem escorpiões.
As samambaias famintas
Devoram as tarântulas do jasmim.
Rouxinóis imóveis fendem o silêncio
Das tundras metropolitanas.
Inóspitos sargaços nadam no logro
E se afogam no ódio das gardênias urbanas.
As lentas luzes das pétalas
Enlouquecem os girassóis
O pólen da cada hora emigra
Nos lívidos jardins da urbe
Para longe dos homens.

POEMA DE LINHO PARA LIGIA CELESTE
(Poema de linho para Lígia a artista que se foi no tempo em busca de paragens mais brancas)

No céu da tela, luas
De linho bordadas
Com mãos de domingo.
No horizonte cândido,
O sol de alvaiade
Expulso do pincel
E treliças de sal.
No dedo, tranças
De agave cor de neve
E nos dentes místicos do urdume
Orações de açúcar debulhadas
Da bíblia de alfenim.
No âmago, a noite de sisal
Alvejada pela face
Das líricas tempestades
De luz íntegra
(sem tremores de cor
ou abalos de grito)
no todo, a soma
das brandas álgebras
de mistério e alvorada.
Na paz aveludada,
O jogo de cola e elo
De marfim conformando a trégua
E o xadrez apaziguado das espumas.
Na nudez dos condões,
O fio da sina e axiomas do sim
Além da lição solar
Dos arabescos de giz.
Na saia, malhas de arroz metafísico
E cisnes amanhecendo
Nutrindo a candura
No ar alabastrino.
No olho, as tênues redes do tempo
Pescadas pela mão, tocaiando
As horas tresmalhadas
Tecidas na alma e contempladas
Dos alpendres de leite
De onde brotam
As brumas da trama
As alvas caatingas
Os labirintos urbanos.
Na carne alada,
Os gestos lépidos
Dos alinhavos no cetim
Logo flagrados.
Na retina, as cicatrizes falando
Aos habitantes dos alvos sulcos
Das cândidas paisagens
De lã e arame geradas
Da mão celeste com paixão precisa.
Na luz, a sombra láctea
O apuro dos domingos exatos
E o êxtase claro
Na tela marcado.
Na lenda, entretecidos
Aves nubentes
E puros equinócios de brim.
No coração, o branco assombro
A alfombra polar
E aves de linho sangrando
O oceano sem mácula
De Lígia Celeste.


CORAÇÃO DE AREIA - Poemas recolhidos da obra Coração de Areia (Fundarpe, 1994), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo. A obra em referência foi aprovada por unanimidade pelo Conselho Editorial da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco  (Fundarpe/Secretaria de Educação, Cultura e Esportes), publicada em convênio com a Companhia Editora de Pernambuco (CEPE). Veja mais aqui, aqui e aqui.