MAIO DE MIM
Sempre é maio quando
morro
No braço cruel de abris
me socorro
Maria vem nua em junho
Em julho foi meu 2º
aborto
De agosto guardo uma ou
duas lágrimas de Getúlio
- de um mesmo olho
colhidas – e na memória
Partida
A marca de um tiro no
peito do calendário
E em setembro as
primaveras se enforcam
Em outubro Inês é morta,
novembro não tem porta
(perdoem a rima casual!)
Dezembro soa a sino,
assassino ou retórico eco
Enche de ladainha
sonoras a soleira das casas
Nele grassa um bimbalhar
que assusta
E a neve artificial se
acumula nas entradas da ilusão
Percorrida por renas
automotivas e trenós a diesel
Cães de papiro, lobos
vespertinos e temporais vespas
Que assediam o
andarilho.
MUNDO E MUNDO
Mundo, cárcere longo
túmulo
Estrada onde peregrinos
morrem
Urna de pedra que
trancafia a voz
Cárcere do verbo, ampola
poluta
Opulento circo, pão
crasso
De onde fugiram pássaros
Para a morte do voo
icário
E nos exílios canoros da
sombra encontraram
A sanha, o som da
máscara, o sono cavo.
Mundo, lustre de ferro
solitário
Onde a luz crucificaram
E coroas de treva
ergueram
Sarjeta de pedra onde
jazo
Escuro onde me ataram
Desde as nascentes do
rosto
Desde os primórdios do
nome
Escombro onde a alma
perambula
À procura de um corpo
desolado
Quando a náusea se
aproxima
Para a cena do último
sopro.
DISCURSO CRESCENTE DE
MIM
Hoje estou só sem
vírgulas ou palavra súdita
Estou acamado nas nuvens
mucamas do poeta
Nefelibatando
infelizmente prenhe de imagens úmidas
À superfície da lua me
ato ao rosto do amor –
À beira mar de Vênus
curvo-me
Ao som de grandes cubos
degradados
No interior de grades
tresmalhado
Os arames da selva
corroem-me o início de mim
Panteras rondam-me o
abdome raro
O peito franco e
caminhos levam a albatrozes franceses
A jângal de alumínio e
pólvora, a feéricas feras leva-me
A poesia inútil
necessidade de ser-me
Além, muito além, dos
meios, dos caminhos, das sedes
Vogo vago ignavo signo
avitimado e surdo à palavra
Nada surge no meu auge
fúlgido alforje nada
Me lembra a não-náusea
de teu corpo arte
Que Sartre em Simone
bela bebeu,
À beira do lago augusto
arrostam-me
A libidinosas e abúlicas
correntezas
(o imaginário é oriente
fértil como as metafísicas do acaso)
Uno-me ao fôlego
lisboense das sereias
Meu ar ávido divido com
épuras e coivaras da vida
Ou inertes corações de
cedro dinamarquês ergo
Às canadenses miragens
do meu velho empório de sonho
Que alto professor de
poesia alicerçou de palavra
Mestre que sondou meus
demônios
Decifrou escuros urdiu
simulacros
Coabitou suicídios.
FRUTO DO VENTRE
Eis a adolescente sombra
a silhueta longínqua e
Frágil que erra na
cidade longa à margem
Da última rua do
agonizante século.
Eis o rosto que avós
remotas construíram em
Hábeis cópulas sob luas
animais.
Eis o fruto do ventre
amargo, a semente que
Perdura além da fúria a
árvore
Além do som da dor
maior.
Que outonos despetalam,
volúpias transbordando
Das tinas do gozo?
Eis o poema que o pó
cobrirá e como vão perfume
Evolará pelos
intrincados caminhos
Da vida e da morte.
PARA QUE POESIA?
Para que o sal siga seu
percurso branco
E a messe não desponte
esquinas
Para que a vida diária
da ira endêmica ou dourada se desespere
Para que a vida colérica
da larva alvará ou fálica morra (?)
Para que pássaros voem a
ciladas
Ou como chumbo caiam nas
calçadas sob dobre inútil
(para que o pó de cravo
e canela os console
Ou cubra o cinamomo seu
voo imóvel para a morte) (?)
Para que as vísceras dos
ancestrais resistam
E o rumor dos semestres
não impaciente senis (?)
Para que os manás das
manhãs continuem
A cair dos céus na boca
dos infelizes
E contaminem a náusea
dos agonizantes (?)
Para que nascentes de
bem-te-vis abram-se
Em copas carnosas, em
unguentos, babosas
E despejem cores
imperecíveis sobre enlutados (?)
Para que o rosto das
andorinhas de março nunca morra
Nem adormeça a claridade
dos beijas-flores diários.
POÉTICA (ARTE E AMOR)
Em ritmo de abismo o
pássaro siga
Meu poema seu atento e
obscuro trabalho
Oprima sombras, seja
capaz de círculos feridos
Trame comunhão entre
treva e coração
Nele as palavras escavem
textos, ossos, coivaras, rostos
Abram abismos ou
precipícios brancos
Incerta química cifre-o
de limbos, sons, pedras, abelhas
Em seu solo revolva-se
memória de velhas intempéries
POR QUE ESCREVO POESIA?
Eu escrevo poesia porque
vou morrer.
Porque a eternidade
existe para a pedra
Não para a carne
Porque o espirito é de
barro
Eu escrevo para que não
amanheça
Para que meu rosto
termine
Eo olhar escureça antes
do pássaro nascente
Escrevo para que as
folhas tombem na tarde
Escrevo para que minhas
veias gritem
E os omoplatas
derruam-se sob pesares
Sob fardos de medo do
mundo eu ceda
Eu escrevo para que os
mortos se amontoem
Em meu ombro escuro em
minha face esquerda
Nos poços cavos de minha
consciência nua
Em meu leito abstrato e
convulso
Nos lençóis úmidos de
esperma anônimo
Escrevo para reviver
espúrios amores
Para triunfo da noite e
derrota da morte
Para gáudio de
madrugadas feridas
Escrevo porque vou
morrer
E preciso deixar um
poema no mundo.
LEGADO DE UMA TARDE DO
RECIFE
Desta tarde restaram
ossos sonolentos
E alguma cinza
A fugidia imagem de
corças lentas ao crepúsculo
(lago de grave creme a
aurora deixou
Para a indeclinável
toalete da noite)
Somente sobraram
bastardos rumores
Da metrópole agozinante.
Era uma tarde
invertebrada.
E meus olhos morreram.
CRENÇA
Nunca acredites em
pátios sem lua...
Ou na truculência dos
aromas mortuários
Nunca navegues nas
espáduas de tardes montanhosas
Nem nos rios abstratos
de dezembro
- que Capricórnio
espreita
Nunca creias em promessa
de mulher
Ou em poemas escritos na
água
Ou rubricados na areia.
Só creias no cheiro
carnal e cruel do amor
(do amor excelso das
mulheres)
FUGA DO ROSTO
Narciso se contempla
absorto
No amante que o aquoso
Espelho cria da matéria
Formosa do seu rosto
Ao beijar-se vê o lábio
Trêmulo da água ao sopro
Do amor mover-se como
De si fugisse a face
Ao suspiro de Narciso
Se encrespa a água
E a imagem amada
De si mesma se
estilhaça.
TRAVESSIA CEGA
Atravessei estações,
rochedos, banhados, abrolhos,
Lampejos, constelações
atravessei
Pedras, sonambulas
multidões, urnas, amuletos,
Vírgulas, gritos, ralos
de almas dons de sombras
Hostes de fantasmas,
intestinos, números, topázios,
Atravessei ruas e
rosários rotas nuas
De flores, luas e
cavalos atravessei doires, curvas
Mares, extenuado o
inútil abismo atravessei
Rios, vozes, ruidosos
ossuários atravessei sem o
Conforto de uma certeza.
DECLARAÇÃO IRRESPONDÍVEL
I
Intrincados lamaçais,
poços de estrelas
Buracos-negros iníquos,
suavidades horizontais
Barreiras, encômios,
oclusões, singularidades
É meu intercurso
poético-carnal.
II
Minha poesia é qualquer
coisa:
Menos edificante.
FALO (CONFISSÃO DE NERO)
Eu, César, à cata de
cônsules lascivos
E rijos guardas
pretorianos
Para deleite de minhas
noites sem incêndio
Eu, César, em cada manhã
buscando indecisos azuis
Em tragos profundos
fogos sorvendo em irisados
Cálices de irada pira
romana
Eu, César, que grasso
nos territórios portuários
Em busco do arrimo de um
homem do povo
Eu, César, em sonâmbulas
deliberações anunciando
As hostes do futuro
ilhadas em minhas mãos impuras.
PROGRAMA
Morrer sob o clero
implacável do relâmpago
Vendo a mitra do trovão
beber-me o rosto
Ir-me ao ermo na rota do
sem rumo turvo
Tocar o hímen da
incerteza e o muro
Que as esperanças não
ultrapassaram.
TEMPO GÓTICO
A silenciosa arquitetura
Da igreja gótica obra
Da parábola e teia do
tempo
Fruto da mão, trigo
Da imaginação de homens
minuciosos
Os esplendores das
rendas
Tramas ávidas, feéricos
Covis de rosáceas
Chusmas de vitrais
Rasgam olhos
Onde dança louca
Embriagada íris barroca.
TODO ME ABANDONO
TODO O ABANDONO
Sob jugo do vasto êxtase
Basalto úmido
Logo sucumbo
Do labirinto peregrino
longo
Nu me encontro
E na pele amante da
noite
Todo me abandono.
SÓ ÀS PAREDES CONFESSO – A obra Só às
paredes confesso (Bagaço, 2007), do
escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital
Corrêa de Araújo, foi agraciado com o Prêmio Edmir Domingues,
da Academia Pernambucana de Letras, em 2007, prefaciado pelo professor Sébastien
Joachim, da Universidade Federal de Pernambuco/Paraíba, “Sublime e não-lugar do poeta & da poesia em Vital Corrêa de Araújo”,
e por Cláudio Veras Toledo, “A poesia do
século 21”. Veja mais aqui, aqui e aqui.