O POETA
O que move o poeta
No instante da poesia
Ele não sabe
(nem adivinha).
Somente sabe, sente
Que é movido,
E move-se.
Como um deus
Servido por suas
criaturas.
ALICERCES DA LUZ
Luz alicerça edifícios sombrios
Penumbras ruinosas, sois
calcinados
Dias mortos, exílios azuis,
delirantes altares
Pássaros devorados pelo
desejo noturno
Por noites abraçadas a
lampejos cegos
Luas alcantiladas de ósseos
cães metálicos
No hostil planeta em que
morremos.
VIABILIZE O INVISÍVEL
Se você não morreu ainda
vive
Em si encaracolado
Na concha da palavra Ser
Os olhos morrem primeiro
Depois o rosto, por fim
o futuro
(enterrem o universo em
mim)
Quando cães abandonam a
veia
Deixa de latir a parca,
consola uivo
Assola quimera desolada
e nua
O vinho desata do corpo
da alma
A boca rende-se ao amaro
O coração procura sua
ruína
Mas esse você não sou
Eu que já morto estou
Adeus sentidos do mundo
É inútil qualquer querer
E o próprio céu se faz
cinza
A dor rasteja, festeja o
abandono.
AS VEIAS NOTURNAS DO
DESEJO
Os aromas da alma se
dessedentam à tarde
Nas trilhas que suor
abre na pele
Amparam-se nos rictus da
saliva
Ou nas corredeiras
livres do sêmen.
Perfumes noturnos
escorrem dos seios da sombra
Para o meio-dia, para o auge
do pântano
Para as vozes do século
Quando enlouquecem as
palavras
E as imagens náufragas
se levantam
Contra a férrea aurora
(impiedoso outono).
Contra os olhos da sede,
contra as pálpebras da incúria.
Mãos absortas no vazio
adivinham a náusea
(que nauseabundam os
dedos).
No silêncio a libido
eleva o brado
E retumba o desejo nas
veigas da culpa
Nos castelos da praia,
nas folhas da relva de vidro
Nos destinos da proa.
No poente dos corpos
cercado de estertores
E veias que recendem a
jardins putrefatos
Ou afogam-se em flores
funerárias pertinazes (e azuis)
Resta o desejo noturno,
estanque, desesperado.
A ALMA NA SALA
Sexo, preciosa
petisqueira
A alma, o arco da sala
Peito, velha prateleira
WC, o traste do coração
Braços têm a forma de
cadeira
E os sentidos são
janelas
Tórax apenas um lavabo
Os sonhos qualquer
sábado.
ERÓTICA E SERPENTE
A sensação erótica é uma
serpente
Imersa num cálice que
freme
(na noite do sangue que
fenece).
Entre papoulas
voluptuosas.
No dorso das vertigens
nuas.
Arde o bote.
PAA ELA CURVAM-SE
ARCO-ÍRIS
Ela vem do levante, de
opalescentes
Luzes de madrepérola nascente
aureolada
De agonizantes jacintos
coroada
Adestrada por bem-te-vis
gentis
Junto ao rosto bando de
rosas
Vem abrindo botões
carmins
Autorizando desabrocharem
pássaros de seus lábios
Preparando alvoradas de
jasmins
Azafama de cores
derramada do jardim.
Com elas chusmas de luz
copulam com aves viris
Nas águas de marfim do
amanhecer
E os céus como imensos
potes côncavos abrem-se
Em lentas copas de
perfumes perfeitos
À sua majestosa passagem
tremem escuros
Madressilvas beijam-se,
andorinhas sonham, a tristeza chora
Quando ela passa,
magnifica de carne os espíritos.
Quando ela chega arcos
de violinos fluem
Da veia escura vem luz e
música
E ela passa sob curva
triunfal de arco-íris
Entre ambrosias que
gritam
E seivas que se levantam
Dos úmidos gestos de
alegria
Fervilhando cânticos de
lenho ao céu do lume.
TAREFA
Todo anjo é terrível
(e lavável).
Anjos estão fatigados da
invencível
Vigia e dos secretos
diademas, das cismas e dúvidas do homem
Que guardam em seus
alforjes sais de êxtase e fuga.
Tombam cansados os anjos
Exaustos da volúpia de
existir.
Aéreo e áspero ofício de
vigiar.
(Voo de anjo dissolve
algemas
Rechaça o aço da intempérie,
destrói
O metal das almas, torna
a dor devaneio).
Os anjos e sua vasta existência
A Rilke ofereceram
Divas legiões de metáforas
E o segredo da palavra.
20 DE MAIO DE 1915
Natal de meu pai
Eclipse da minha avó
Aos 16 anos
Paz perfumada pelas
urzes da várzea
Do tugúrio de São José
Pousou pesadamente sobre
a última pazada
Da tumular caliça de
maio
Daquele maio obliquo e
caliginoso
Daquele vinte de maio
distante, melancólico, presente
Em que minha jovem avó
morreu
Para o meu velho pai
nascer
Em que minha vó
enterrou-se na memória
Partiu, abandonou-nos
jovem
Para que esses versos
tristes
Eu pudesse escrever.
Ave, Vinte de Maio de
1915
Eu também te festejo e
choro.
CÁLCULO DA BORBOLETA
No cálculo da borboleta
Deus ousou.
Sua geometria alada, a
leveza do traço
Quase aéreo, a cor
pudica e voraz
O indelével bordado, a
pureza extrema
O trisado supremo,
elementar, vital, a severa
E ardilosa arquitetura
de seda da asa
A brisa etérea e vagarosa,
ou quase imaginário
Ar, onde ela paira
A delicadeza ampla que
perpassa
E a pomposa melancolia
quando vagueia
(os olhos presa da ondulação
perfeita).
(poema à borboleta que
tece
Arabescos de cor ao
vento e mostra
Que a beleza não é difícil).
AVE SÓLIDA – O livro Ave
sólida (Bagaço, 2010), do escritor, jornalista, advogado, professor,
conferencista e tradutor Vital Corrêa de
Araújo, traz epígrafes de Octávio Paz, Lazama
Lima & Marcus Acccioly, A propósito de Ave Sólida & Adendo por Cláudio
Veras, comentário na contra-capa de Sebastien Joaquim & César Leal, dividido
pelas partes Lance de búzios sempre abolirá o acaso, Visível invisível &
Intermezzo lírico. Veja mais aqui, aqui,
aqui, aqui e aqui.