segunda-feira, julho 09, 2018

HÍMEN DE MALLARMÉ, DE VITAL CORRÊA DE ARAÚJO


TEMPO NÃO FOGE, ABOLE

Por mais que o tempo não fuja de mim
Em debandadas horas
Abandonem-me as veias (e capilares horários)
Ou percorram meu corpo
Endiabrando-se pelos ínvios
Caminhos da vente (saltos
E cachoeiras de sinapses selvagens
Estremecendo-me a alma
Que acredite em édens)
E se imiscua da carnadura das idades
Como o sangue de um soneto
Ou de hecatombe cem agonias
(decretando a sucumbência do coração)
Resta algo a perder sempre.
(Este poema que continua
Na próxima página
Foi composto após
O sétimo uísque com gelo (single malt)
No numinoso terraço em ele
Da casa da montanha)
Não que sumidouros morressem.
Não que sílabas estivessem cansadas
Não que alma não mais ululasse
Como antigamente (latim do corpo).
Não que os lamentos se petrificassem.
Não que saudade fosse só rastro
Ou mentia (meio que encantada).
Não que domingos perdessem o branco.
Ou juros o ábaco.
Não que luar caísse como pedra ou coroa
Sobre jardim fúnebre (ataviado de cravos de lamúria).
Não que sangue da estrelas coagulasse olhos
E o leite da constelação rastejasse.
Só porque hoje é sábado.
E a vida ainda dorme
Enquanto eu não sobrevivi
À sexta-feira sem paixão
(após quarta-feira
De cinzas acesas).

PARA ENTENDER POESIA É PRECISO

Para entender poesia é preciso
Que leitor não ignore as constelações
Nem estigmas que crepitam
Na página branca
Onde poetas derramam seus delírios amarelando.
Onde erram licores
E rios atentos urram
Em busca das rimas d’água
De sonetos afogados
E baladas sonâmbulas.

ESCREVO POESIA POR QUÊ

Eu escrevo poesia porque vou morrer.
Porque a eternidade existe para a pedra
E não para a carne.
Porque o espírito é de barro.
Eu escrevo poesia para que não amanheça nunca
Para que meu rosto termine logo.
Para que eu não seja.
E o mundo me esqueça.
Para que tigres
Lambam meu féretro.
Para que fúnebre cravo
Rosa dissoluta
Lírio absoluto
Rastejem em meu rosto.
Extinto.

POEMA EM FRENTE E VERSO
(FRENTE)

Do limiar de pássaro projeto
Meu voo ao Averno
Minha lídima vinda ao inverno
Meu périplo direto ao acervo
(dos ossos das utopias e dentes combalidos do ardor)
Meu ir para o que volto projeto
Para o quando do rosto acordo
Enquanto manhã agoniza olhos
Sobre tratado monetário debruço
Último juro e injúria usurária
Compêndio do absurdo
Ao lado do leito coalhado de solidão
Arrumo com a lentidão dos gestos finais
E jogo o resto do devaneio (e dúvidas que sobrarem).

VERSO

Parâmetro de meu porvir de prata e dano
Vive da escavação de meu ego tíbio
Financeiro (e culinário) a pastar o abrupto
Além de viver da ração de orgasmo diário
A ouvir a dor vir do interior para o horizonte de si
Exterior que violenta o lírio, a alma, o sono
E joga-os contra as jazidas esquecidas do sal
Onde átimo de seiva cavo
Para adubo íntimo do mundo
A tudo devoto o nome alicerce vital onde
Sílabas esculpo com hiato e buril, túneis pronuncio
Para fortaleza do ânimo em ruína
E termino por enterrar o sono no lençol de pedra do id
Que é meu pronome final.

ALMA TEM NOME E DANO

Também morre o barro
A ébria luz do olhar branco
O sopro cega
A dor não ensurdece o grito que ela elabora
O betume se apossa do espírito
O deserto arde como a alma
Tão perto da autora e da pedra
E da perda do nome para a terra.

POEMAS

Não te quites com o que virá
Não te comprometas com céus
Não te consoles com piedade ou véus
Não acostumes teus olhos
A miragens ou promessas de luz (falsa)
Não comercies indulgências baratas
No mercado bursátil da providência vale a farsa
Não condescendas com sinas amenas
Pois o esplendor do abismo é vivo.
Nem todo lume é falso.
Nem toda razão inútil.
Gramaticas não são dádivas edênicas.
A sintaxe é a paralisia da palavra.
Reio. Rédea insana. Maldição do verbo.

DESGOSTO DE DEUS

Quando tudo ainda estava-se criando
E o Senhor ocupado suava da lida inútil
Do infinito esforço vão
As divas mãos já muito gastas
De tanto amaciar o barro
E modelar a vida
Com a argila da imaginação oleira
(oficio desse Ser Artista tão Alto)
Forja ainda incompleta
(a usina do Demiurgo plena)
O distante domingo apenas uma meta
Ele a meditar ainda no profundo cálculo da borboleta.
Sentiu de súbito
Num relâmpago do divo pensamento
A inutilidade de tudo aquilo
O desperdício do sopro (divino)
Mas não desistiu (infelizmente).

CAMINHO MORTAL DO POEMA

Pelos lábios do dicionário
E becos sintáticos
E ciladas da gramática sigo
Em direção ao centro do poema
Em busca do sentido perdido.
Atravesso pupilas das moscas
Exército indecoroso dos gusanos gramaticais
Sempre a postos em todo o percurso
Alçando o âmago do ômega
A linfa alfa morro.

COITADO LEITOR

O leitor de poesia – por vício ocupacional
Do texto parnasiano (sobrevivente
inusitado)
que aqui se chamou de romântica
tende (ou continua) a procurar conceitos
no poema e não imagens. Então, quebra a cara.
Escorrega, desliza pela página como um parque
Aquático
Passa ridículo. Segue em, branco, longe da verdade.
Por isso a poesia detém sua verdade.
Ínsita, soberana, peculiar (apodítica).
A atitude desse leitor ignato
É decifrar conceitos (e se embasbacar com imagens)
Descobrir definições, fechar silogismos.
É viciado em exegese, como um advogado. Por
Instinto ou definição.
Busca o sabor da ostra poética
Sobre a crosta. O acepipe lógico.
O bônus gramatical. Coitado!

POEMA: VEIA DA PALAVRA

A poesia respira pelos pores e cones (cubos e ícones)
Dos fragmentos das frases.
A frase íntegra é o pulmão da prosa.
A poesia conta a história da palavra
Sua odisseia filosófica, narra
O desvario de seus sentidos (nada óbvios).
A prosa usa a palavra como bucha de canhão.
Mix de vozes e sílabas
Compõe o poema.
A poesia é o conhecimento do obsceno (verbal).

POESIA

Poesia casulo de palavras
Antro de proliferação de fragmentos verbais
Prole de sentidos rimbaudianos
Usina de sintagmas onde demiurgos
Siderurgiam vozes do amálgama de aço das palavras
Extraem sentidos, multiplicam imagens
Engenho da imaginação da linguagem
Ostra de significantes, concha
De vivas sílabas reluzindo
Como amapolas ou nenúfares perfeitos.
(cinamomos azuis, anêmonas gentis, asfódelos hirsutos)
É nácar a mãe da pérola do verbo.
É níquel a alma (e o corpo) do vocábulo.
A poesia é um casamento de palavras (amasiadas).
Poesia casamata de verbos sublevados.
Plúmbea, púbica, alquímica verdade do mundo.

HÍMEN DE MALLARMÉ O livro Hímen de Marllarmé (Autor, 2013), do escritor, jornalista, advogado, professor, conferencista e tradutor Vital Corrêa de Araújo, é dividido pelas partes Sal noturno, Alfa, Beta, Delta, Teta, Gama e Ômega. Veja mais aqui.