BRÁULIO TAVARES – Essa entrevista foi realizada por ocasião do lançamento do livro Os martelos de Trupizupe, do escritor, poeta, compositor,
teatrólogo, roteirista, estudioso da cultura popular, o paraibano radicado no
Rio de Janeiro desde 1982, Bráulio Tavares. Além de poeta, escritor e
compositor, Bráulio Tavares estudou cinema na Escola Superior de Cinema da
Universidade Católica de Minas Gerais, é pesquisador de literatura fantástica,
compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o
Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca
Nacional, Rio, 1992), é colunista de jornal e escreve roteiro para shows,
cinema e televisão.
Nasceu em Capina Grande , na Paraíba, em
1950, morou em Belo Horizonte e Salvador, e vive no Rio de Janeiro desde 1982.
Gentilmente Bráulio Tavares conversa
conosco acerca de sua poesia, teatro, música, projetos, Internet e muitas
outras coisas desse multifacetado autor.
LAM - Bráulio, você é um
artista de muitas inquietações e mexe em muitas áreas. Primeiro vamos falar de
poesia já que estamos num Guia de Poesia. Conta, então, como foi que você
chegou à poesia?
Sou de uma família de poetas, pelo lado
paterno. Meu pai me ensinou desde cedo (e à minha irmã , Clotilde) a decorar
sonetos, além de regras básicas de métrica e rima. Ele sabia centenas de
sonetos de cor, era capaz de recitar durante horas, quando juntava os amigos em
casa para beber e tocar violão. Com 10, 11 anos de idade eu sabia de cor
inúmeros poemas de Castro Alves, Augusto dos Anjos, Olavo Bilac. Ler poesia lá
em casa era mais ou menos como ver televisão nas casas de hoje em dia. Era uma
atividade normal da família, e eu estranhava quando via que meus colegas de
escola não sabiam as coisas que eu sabia. A partir dos 16 anos descobri
Drummond, os modernistas, etc. Aos 20, comecei a me interessar pelo cordel e
pelos poetas populares nordestinos. É tudo a mesma coisa. Leio poesia
quase todo dia. De vez em quando "descubro" um poeta e fico digerindo
tudo dele. No momento tenho lido muita coisa de Rudyard Kipling e do
americano Robert Service, são dois caras que têm uma melodia métrica espantosa,
é cordel puro, dá vontade de cantar em voz alta. Uma beleza.
LAM - Você estreou em livro
com "A pedra do meio-dia, ou Artur e Isadora", em 1979 e, depois em
1980, com "As baladas de Trupizupe", ambos de cordel. Fala um pouco
desta identidade do seu trabalho com a literatura de cordel.
Entre 1972 e 1976, morando em Campina
Grande , minha cidade natal (de onde saí algumas vezes) fiquei amigo de
cantadores de viola, e ajudei a organizar o Congresso Nacional de Vileiros, um
festival que acontecia todos os anos. Era a época em que havia no
Brasil inteiro a produção chamada "poesia marginal", "poesia
independente", "geração mimeógrafo", etc. Eram poetas que
publicavam seus livrinhos de maneira artesanal, e promoviam recitais. Eu achava
que os poetas cariocas e paulistas estavam refazendo o caminho que os poetas
populares nordestinos tinham feito na virada do século 20, a partir de 1890: se
não é possível publicar livros de verdade, publiquem-se livros
"alternativos", e leve-se a poesia recitada para o meio da rua. O
cordel surgiu assim.
Resolvi usar, em vez do mimeógrafo (que
aliás teria sido mais fácil, meu pai tinha mimeógrafo em casa), o formato dos
folhetos de cordel. Publiquei estes dois títulos em Campina Grande , e em
1981 publiquei em Olinda "Cabeça elétrica, coração acústico".
"A pedra do meio-dia" é um cordel tradicional, indistinguível dos
cordéis "autênticos". Os outros dois não, são meras coletâneas
de poemas e canções.
LAM - De que forma você vê
a cultura popular nos tempos atuais de globalização?
A cultura popular é tudo que é feito por
iniciativa própria de um grupo de pessoas. Quando isto é absorvido pela
indústria cultural, passa a ser outra coisa. Aconteceu, mais recentemente, com
o hip-hop. Os artistas ficam tentando manter o discurso e a postura de quem
surgiu num gueto, mas no momento em que se abrem possibilidades de
enriquecimento rápido para uma minoria, a coisa toda muda. Não digo que deixe
de prestar, ou que não tenha mais valor. Mas vira outra coisa.
Aconteceu isto com a música sertaneja do
Sudeste e Centro-Oeste, aconteceu com o Rock-BR. A grande contradição é que os
artistas tentam se profissionalizar, ganhar uma grana, aí descobrem que não há
meio termo, é ficar eternamente no gueto, faturando uma merreca, ou entrar para
a indústria, subir na escala social, e dançar conforme a música deles. Esta é a
regra. Pode haver exceções.
LAM - Fala como foi que
surgiu o mote do "Nordeste independente", a parceria com o Ivanildo
Vila Nova e a idéia que se pretende passar com o que foi dito e que caiu tão
bem ao gosto popular.
Existe um certo ressentimento, em muitos
nordestinos, com o modo como são tratados no Rio e São Paulo, como cidadãos de
quinta categoria, como uma porção de broncos, analfabetos, mal-educados, etc.
Eu fiz essa música para tentar aumentar a nossa autoestima, dizendo que "a
gente não precisa do resto do Brasil". Não é uma música para ser levada ao
pé da letra. O Nordeste não sobreviveria, separado. É uma provocação
bem-humorada, uma chamada para que o nordestino tenha orgulho de si próprio, e
para que os demais nos respeitem. Mas numa boa, sem briga, sem ressentimento.
As pessoas com quem convivo no Rio e em São Paulo admiram o Nordeste, conhecem,
respeitam. Agora -- gente burra, preconceituosa, desinformada, tem tanto
lá como cá.
LAM - No recém-lançado
livro, "Os martelos de Trupizupe", você traz antes de cada poema um
texto onde é contextualizado cada poema e, também, onde fica flagrante suas
inquietações e apreensões do mundo. Como se trata de uma reunião poética de
1972 até 2003, fala um pouco como foi o processo de escolha do que ficou por
resultado no livro.
Eu gosto muito do verso de martelo, é um
verso lindo, já escrevi muitíssimas coisas usando esse verso. Quis apenas fazer
uma seleção dos que me pareciam mais representativos, e variados. Eu não sou
desses poetas cronológicos, que de tantos em tantos anos publicam seus poemas
mais recentes. No caso destes, você pode acompanhar a evolução deles de livro
para livro. Eu não. Todo livro meu reúne desde poemas da adolescência ou
juventude até coisas escritas há pouco tempo. Todo livro meu é um resumo da
história toda. Este livro também é assim.
LAM - A variedade temática
que vai desde coisas de religião, ficção científica, lições de vida, política,
meio mundo de coisas que estão expressos nas páginas d´Os martelos de
Trupizupe, reflete o seu olhar do mundo? Como o Bráulio Tavares vê o
momento atual, sai mote para ser glosado?
O processo básico da poesia é justamente
este, mote e glosa. O mundo fornece os motes, a gente os desenvolve. É a
notícia de jornal, é o filme da TV, é a vida doméstica, é a vida amorosa, é a
política, o futebol, a literatura, a imaginação. Um poeta não pode dizer que
não existe assunto. O que ele não está achando é uma forma de tratar os
assuntos.
LAM - Fala um pouco a
respeito de como surgiu Trupizupe, o raio da silibrina, já que ele está no seu
teatro, na sua poesia e é marcante na sua obra.
É um nome engraçado que minha mãe dizia
lá em casa. Descobri depois que é um personagem do folheto "Chegada de
Lampião no Inferno", de José Pacheco. No teatro, é o herói da minha peça
"O Casamento de Trupizupe com a Filha do Rei", ou "Trupizupe, o
Raio da Silibrina", de 1979. Um herói espertalhão, parecido com o João
Grilo do "Auto da Compadecida". Mas já o utilizei em letras de
música, em contos, etc. É um nome engraçado, marcante. E um personagem meio
universal, já o usei também num conto de ficção científica, "The Ghost in
the Machine" (assim mesmo, com título em inglês), publicado na antologia
"Verde... Verde..." aqui no Rio, na década de 1980.
LAM - Já que falamos de
teatro, vamos a ele: como Bráulio Tavares vê o teatro popular, notadamente o
desenvolvido no Nordeste brasileiro?
Não acompanho muito, porque moro no Rio.
Eu acho que esse veio de tatro popular nordestino poderia ser mais cultivado.
Tem Ariano, Luís Marinho, Vital Santos, Altimar Pimentel, Lourdes Ramalho,
tantos autores que criaram uma tradição. Acho que se explora pouco esta
tradição hoje, mas pode ser desinformação minha, porque não vejo teatro no
Nordeste há muitos anos, vejo só um pouquinho do que vem até o Rio de Janeiro.
Não dá para opinar com segurança.
LAM - Sua relação com a
música sempre foi muito estreita, desde trilhas para teatro até a parceria
agora com Lenine. Fala um pouco dessa relação: poesia, teatro e música.
Bom, eu toco violão desde os 13 anos, se
bem que nessa idade eu já tocava o tanto que toco hoje... Não sou grandes
coisas musicalmente, mas tocar, cantar e compor são coisas necessárias à vida.
Não são uma "profissão", não são uma "carreira". Não gosto
dessas palavras, dão a impressão de que uma coisa só presta se a gente
conseguir vendê-la a alguém. Gosto de fazer músicas parecidas com as músicas
que gosto, e dizer coisas que me parecem interessantes. Fazer canção é uma
coisa simples. Claro que fazer uma Grande Canção é outra coisa, mas e daí? Tom
Jobim não compunha uma "Águas de Março" toda semana. Fazer música,
escrever, fazer poesia, isso é a respiração da mente, é a entrada e saída de
oxigênio e gás carbônico. Sem isso a mente pára.
LAM - Você já escreveu,
publicou e foi premiado abordando ficção científica. Qual o fascínio que a
ficção científica exerce sobre o Bráulio Tavares?
Em primeiro lugar, ficção científica não
é "Star Wars", não é "Star Trek", não são esses filmes,
livros e quadrinhos que rolam por aí. Isso aí é a parte comercial da FC. Isso
está para a FC assim como Britney Spears está para o rock.
FC é William Gibson, Ted Chiang, Bruce
Sterling, Ursula Le Guin, Kim Stanley Robinson, Greg Egan. São escritores que
escrevem muitíssimo bem, e que falam do mundo de hoje.
A FC é a única literatura que fala da
totalidade da experiência humana. O romance de hoje em dia se divide em
regionalismo rural e existencialismo urbano, vive fechado na repetição de temas
de mais de cem anos atrás. E só. Quem, nos anos 1950, falava em clones, em
ecologia, em computadores, em tsunamis? A ficção científica. São as únicas
pessoas que sabem o que está acontecendo no mundo, neste instante.
LAM - Antenado como é, qual
a sua opinião a respeito da Internet? A seu ver, ela tem contribuído para
a difusão do seu trabalho?
A Internet é o Paraíso Terrestre. Um
paraíso artificial, por certo, e dos que viciam. Mas nada se compara a
essa possibilidade real de localização rápida de qualquer informação, a essa
possibilidade de contato por escrito (e em alguns casos, com voz e imagem) com
pessoas do outro lado do mundo, em tempo real. Mudou tudo. Agradeço aos céus
ter vivido tempo bastante para ter participado disto. É bom demais!!!
LAM - Você que já foi
jornalista esportivo, guitarrista de rock, funcionário público, roteirista de
tv, secretário do do seu time de futebol o 13, mexendo prá lá e prá cá,
quais os projetos que Bráulio pretende ainda desenvolver?
Tenho meia dúzia de livros em diferentes
estágios de conclusão. Um livro de crônicas, "243", com o material
que publiquei em 2003 na minha coluna no "Jornal da Paraíba". Um
livro sobre poesia, a sair pela Editora 34 (São Paulo). Um romance de
ficção científica, "Rádio Telepatia", ainda incompleto, porque fazia
parte de um projeto que foi cancelado, mas que posso retomar a qualquer
momento. Um livro sobre Cantoria de Viola, que ficou muito grande e a editora
me sugeriu fazer alterações, estou pensando em transformá-lo em dois. Uma nova
antologia de contos fantásticos para a Editora Casa da Palavra, na sequência do
sucesso de "Páginas de Sombra" (2003).
Também tenho material gravado em
quantidade bastante para fazer um CD ao vivo, com faixas gravadas em diferentes
épocas e diferentes cidades. E tenho planos de fazer um CD de
estúdio.
Mas tudo isto eu faço nas horas vagas.
Minha profissão é roteirista, e no momento estou trabalhando em dois roteiros:
um para um filme baseado nas peças de Antonio Nóbrega, a ser dirigido por
Walter Carvalho, e um filme sobre capoeira a ser dirigido por João Daniel
Tikhomiroff, de São Paulo, baseado num romance de Marco Carvalho.
OBRAS DE BRÁULIO TAVARES:
Romance: A máquina voadora (Rocco, 1994).
Contos: A espinha dorsal da memória /
Mundo fantasmo (Rocco, 1996).
Poesia: Balada do andarilho Ramón
(Pirata, 1980), Sai do meio, que lá vem o filósofo (edição do autor, 1982), O
homem artificial (Sette Letras, 1999).
Ensaio: O que é ficção científica
(Brasiliense, 1986), O anjo exterminador (Rocco, 2002).
Cordel: A pedra do meio-dia, ou Artur e
Isadora (ed. do autor, 1979; Editora 34, 1998), As baladas de Trupizupe (ed. do
autor, 1980), Cabeça elétrica, coração acústico (Casa das Crianças de Olinda,
1981), Peleja de Braulio Tavares, o Raio da Silibrina, com Astier Basílio, o
Arquipoeta das Borboremas (ed. dos autores, 2003).
Antologias: Raimundo Santa Helena
(cordel) (Hedra, 2003), Páginas de Sombra: contos fantásticos brasileiros (Casa
da Palavra, 2003).
Humor: Como enlouquecer um homem: as
mulheres contra-atacam (Editora 34, 1994).
Bibliografia: Fantastic, fantasy and
science fiction literature catalog (Fundação Biblioteca Nacional, 1992)
Os “Martelos de Trupizupe” foi lançado em
janeiro de 2009 pela Editora Engenho de Arte, da escritora Clotilde Tavares,
irmã do autor. Conforme release fornecido pela editora, este livro de Braulio
Tavares é inédito e reúne todos os versos que o poeta fez em formato de "martelo
agalopado", a décima em versos decassílabos cultivada pelos cantadores de
viola nordestinos.
Na apresentação, o autor explica o que é
o "martelo" e em seguida vêm os poemas, cada um contextualizado
quando e porque foi escrito. Dessa forma, o livro ultrapassa o conceito de
"livro de poesia", e fica muito mais interessante porque os textos de
Braulio Tavares sobre os poemas são engraçados, informativos e também, de certa
forma, memorialistas.
Alguns destes poemas foram musicados e
gravados por artistas como Elba Ramalho ("Nordeste Independente",
escrito com Ivanildo Vila Nova) e Lenine ("O Marco Marciano",
musicado por Lenine). Outros foram utilizados pelo autor em peças teatrais como
"O Casamento de Trupizupe com a Filha do Rei", na trilha musical de
espetáculos de outros autores, como o "Oxente gente, cordel" dirigido
na Bahia por João Augusto em 1979, ou em filmes como "Parahyba, mulher
macho" de Tizuka Yamasaki. Quase todos os textos são inéditos em livro.
"Os Martelos de Trupizupe" tem 120 páginas, e é ilustrado. O projeto
gráfico, editoração e capa são da Engenho de Arte.
Para adquirir o excelente "Os
martelos de Trupizupe" é só enviar mail para clonews@digi.com.br, solicitando o seu
exemplar. E para acompanhar a coluna diária do Bráulio Tavares no Jornal da
Paraíba, é só acessar: http://jornaldaparaiba.globo.com/braulio.htm.
Entrevista concedida em 2009 pro
Guia de Poesia. E veja mais dos Martelos de Trupizute.