Regina Igel é professora titular de Literaturas e
Culturas em Língua Portuguesa no Departamento de Espanhol e Português da
Universidade de Maryland. Nascida em São Paulo, ela se formou em Letras
Neolatinas na Universidade de S.Paulo. Transferindo-se para os Estados
Unidos, ela obteve os títulos de Mestrado em Literaturas Hispano-Americanas
(University of Iowa) e Doutorado em Literaturas em Língua Portuguesa
(University of New Mexico). É autora de inúmeros artigos, publicados em
diversas revistas especializadas nos Estados Unidos, Europa e Brasil. A Profª.
Dra. Regina Igel é também encarregada da seção "Brazilian
Novels"(Romances brasileiros) do Handbook of Latin American Studies, uma
publicação da Biblioteca do Congresso, em Washington, D.C. - Ela colabora
para esta publicação com cerca de 70 resenhas de romances publicados num
período de dois anos no Brasil. É autora de dois estudos: "Osman Lins,
uma bibliografia literária"(1978) e "Imigrantes Judeus, Escritores
Brasileiros - O Componente Judaico na Literatura Brasileira (1997). Mora em
College Park, no mesmo bairro onde se localiza a Universidade de Maryland,
onde trabalha há mais de 20 anos. Viaja constantemente para o Brasil,
mantendo-se sempre em contato com colegas, professores e escritores.
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Luiz - Como a senhora tem
acompanhado a Literatura Brasileira? Há, a seu ver, conseguido a nossa
Literatura algum destaque internacionalmente?
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Regina - Acompanho e convivo com a literatura brasileira ao longo de dois
caminhos profissionais: como professora no Departamento de Espanhol e
Português na Universidade de Maryland (Estados Unidos) e como responsável
pela seção ‘Brazilian Novels’ (Romances brasileiros) da publicação da
Biblioteca do Congresso, o Handbook of Latin American Studies. Por estas duas
ocupações, além do meu interesse e prazer em ler ficção produzida no e sobre
o Brasil, considero-me uma pessoa relativamente atualizada com a nossa
literatura. A respeito de destaque internacional, eu não diria que a
literatura brasileira tenha um destaque internacional de contínua relevância,
mas sim que certos representantes da nossa literatura, escritores e
escritoras, têm sido reconhecidos, tanto entre estudiosos universitários como
pelo público leitor em geral, como genialidades criativas. Entre os mais citados
e apreciados, estão Machado de Assis, Jorge Amado, Clarice Lispector, Osman
Lins, Cecília Meireles, Haroldo de Campos, Raquel de Queirós, Helena Parente
Cunha, Moacyr Scliar, Euclides da Cunha, Milton Hatoum... Já dei cursos de
leituras sobre todos esses, em semestres diferentes, e sempre com uma
aceitação muito boa por parte dos estudantes. Às vezes sou agradavelmente
surpreendida por alguém, em casa de amigos ou depois de dar uma palestra fora
do ambiente universitário, alguém que quer conversar sobre um desses
escritores, porque leu alguma obra de um deles e precisa falar de suas
descobertas. Isto me mostra que a literatura brasileira está penetrando,
ainda que sem a barulheira feita pelas hispano-americanas, pela conscientização
do público norte-americano.
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Luiz - Quem estuda LIteratura
constata que a comunidade crítica internacional encontra dificuldade
ou desconhece ou mesmo insiste em desconhecer a Literatura Brasileira no
contexto da Literatura latino-americana. Continua, a seu ver, maior interesse
pela literatura latino-americana de língua espanhola?
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Regina - Não há a menor dúvida que a literatura hispano-americana é muito
mais conhecida do que a literatura brasileira, pelo que vejo nos Estados
Unidos e em outros lugares. Pois há muito mais cátedras especializadas nas
literaturas dos países sul-americanos em espanhol, do que há cursos a
respeito da literatura brasileira. Por que este contraste? Posso falar, em
tese, sobre o que percebo nos Estados Unidos, onde leciono há mais de vinte
anos – a língua espanhola tem sido o grande condutor do interesse
norte-americano pelos países hispanos, começando pelo México. Os
norte-americanos começam a estudar espanhol desde crianças. Se saem falando
ou não, depende sempre da qualidade do ensino e do interesse do estudante.
Mas isto eles compensam pelas viagens. Sempre foi muito facilitado viajar
para a Espanha, para o México, e alguns outros países da América do Sul. Há
muitas escolas que registram seus cursos nesses e outros países, assim seus
alunos podem ir aprender no próprio ambiente do país escolhido. – Outros
elementos vieram ajudar, e muito, a difusão do espanhol, como os prêmios
Nobel a escritores como García Marques, o que foi bastante cultivado pela
imprensa em geral. (Mas não fizeram nem um terço do barulho em relação a
Saramago – sem nenhuma dúvida, porque o português sempre demonstrou um ar
desafiador em relação aos norte-americanos, claramente declarando sua
filiação socialista). Também o ‘boom’ da literatura, igualmente explorado e
extrapolado pela imprensa, teve um impacto benéfico para a difusão da
literatura feita em vários países de língua espanhola. No entanto, se nossos
escritores, em sua maioria, não são tão conhecidos do público ledor em geral,
podemos dizer que a crítica internacional já não ignora nossa literatura.
Pelo contrário, tem acompanhado nossa produção ficcional e poética com um
interesse que não havia até há uns dez anos atrás. A projeção de autores como
Jorge Amado e, mais recentemente, o polêmico Paulo Coelho, colocaram nossa
escrita, em tradução principalmente, ao alcance do cidadão ou da cidadã dos
Estados Unidos que entra numa livraria e quer comprar um livro traduzido de
autor estrangeiro. Esses dois são os primeiros a ser recomendados pelos
vendedores... Mas o problema maior, a meu ver, é que as editoras não reeditam
as obras brasileiras traduzidas. Fazem uma primeira edição e ficam nisto.
Nós, professores de literatura brasileira nos Estados Unidos, sofremos muito
com a falta de reedições. E apelamos para as cópias xerográficas – correndo
até o risco de nos ver ameaçados por processos, por infração dos direitos
autorais. É um beco sem saída.
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Luiz - Quem, a seu ver, tem se
destacado na Literatura Brasileira nos Estados Unidos?
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Regina - Entre leitores em geral e os chamados ‘especializados’, que estudam
a literatura brasileira, há diferenças de preferências e, claro, de
nível de leitura. Mas de forma geral, entre os autores atuais, traduzidos
para o inglês, os que mais se têm destacado são Moacyr Scliar (entre os mais
vendidos durante um certo tempo), Helena Parente Cunha (que foi muito lida
nos cursos pró-feministas – eu a adotei em vários cursos que dei), Lygia
Fagundes Telles, Ignacio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo (principalmente os
romances que versaram as conseqüências da ditadura), Osman Lins (dos poucos
escritores chamados ‘difíceis’ que caiu na apreciação de leitores em geral),
Milton Hatoum (que deu cursos nos Estados Unidos e veio bater um papo com
meus estudantes, em Maryland, ainda antes de ficar tão famoso), Rachel de
Queiroz (já vão para trinta anos que As três Marias foi traduzido, mas ainda
é muito apreciado); também lêem muito a Carolina Maria de Jesus, mas
principalmente em cursos de sociologia e história da América do Sul, e menos
em cursos literários. Na verdade, outro grande problema agora, ao ensinar
literatura brasileira em inglês, é a ausência de obras traduzidas. Para
satisfazer à demanda de estudantes ainda não habilitados a ler no original
português, somos obrigados a tirar cópias das velhas edições (e únicas) em
inglês, algumas datando da década de 80, quando houve um grande movimento de
traduções de obras brasileiras nos Estados Unidos. Infelizmente, este
movimento não se renovou até hoje. Nos cursos oferecidos em português, sempre
apresentamos Machado de Assis, Graciliano Ramos, seleções de Euclides da
Cunha, José Lins do Rego, Antonio Olinto, Mário de Andrade e, entre poetas,
Carlos Drummond, Oswald, Manuel Bandeira, João Cabral, Vinícius... no
original.
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Luiz - A
senhora tem conseguido encontrar novos escritores que possam estar renovando
a Literatura Brasileira?
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Regina
- Ah, claro que sim! – O que mais faço, na seção de "Romances
brasileiros" da publicação da Biblioteca do Congresso, que mencionei
atrás, é dar as boas-vindas a novos escritores. Claro que isto não implica
numa aceitação tácita de tudo o que aparece rotulado de ‘novo’. Mas fico
muito feliz, pessoalmente e como crítica literária, ao perceber uma atmosfera
nova, renovadora e independente, no momento atual da nossa literatura. Por
exemplo, só para citar o que me occore no momento em que estou respondendo à
sua pergunta: o romance policial é uma novidade que recém-desabrocha entre
nós. O mesmo com o romance esportivo, com tramas versando o futebol, as
manipulações atrás dos jogos, o diálogo jogadores-público, e assim por
diante. E o romance urbano-social, cujos temas tratam da miséria, da
desigualdade social, das injustiças, da indiferença das classes dirigentes;
e, ultimamente, o ressurgimento do romance histórico que, aliás, nunca
desapareceu do nosso cenário cultural, mas voltou com uma roupagem nova junto
às celebrações dos 500 anos, com saudáveis provocações a uma auto-análise
crítica, construtiva e não-aderente ao coro de ‘Parabéns a você". São inovações
temáticas como essas que trazem nossa literatura e nossos escritores para um
reconhecimento interno e externo, de sua força criativa.
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Luiz - A
senhora destaca alguma tendência de relevo no processo de desenvolvimento
atual da Literatura Brasileira?
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Regina
- Destaco duas coisas: uma, negativa: uma atitude de negligência em relação à
prática da língua portuguesa. Aqui não me refiro às influências estrangeiras
nem a qualquer aspecto mimético do falar popular – estas e outras ocorrências
são parte integrante da narrativa, de acordo com as precisões dos quadros
ficcionais. Refiro-me ao descaso que alguns escritores têm com a voz
narrativa, com sua representação no decorrer do romance, do conto. Essa
tendência de menosprezar a estética do nosso idioma em favor de umas
caricaturas que se propõem como inovações, me entristece. Vejo que a beleza
da língua portuguesa como praticada no Brasil vai ficar enterrada sob uma
camada de contorções que se dizem modernas, mas que não passam de um atestado
de ignorância. Lembro-me de um escritor que escreveu (e isto passou
despercebido pelo editor) "eminente" quando ele queria dizer
‘iminente’. Tratava-se de um perigo iminente, que estava para se materializar
a qualquer instante; em vez disto, virou um perigo excelente, importante,
sublime... Pensei que fosse erro digital, ou coisa que o valha, mas apareceu
mais duas vezes no decorrer do texto. Aí percebi que o escritor não sabia
escrever sua própria língua. Uma pena. Mas, do lado positivo, percebo uma
tendência muito boa, a de se tentar criar uma maneira nova de dizer as
coisas. Pois as histórias contadas são iguais, o que difere é a maneira de
contar, de escrever, de narrar. Quem não sabe das injustiças sociais no
Brasil e em quase todo o mundo? Pois não haveria nenhuma novidade em contar
isto. Mas é o modo de contar que faz a diferença, é o que mostra
criatividade, originalidade, até genialidade. – Quem está em contato com a
literatura sabe que ciúmes, traição, amores sublimes e espúrios, e demais
tragédias são temas desenvolvidos em qualquer literatura. Mas quem leu os
contos e casos de reconhecimento universal como os de Machado de Assis,
Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Tabajara Ruas, Rui Tapioca, Antonio Assis
Brasil, sabe que somente eles poderiam contar suas histórias do jeito que
contam ou contaram. Há uma definição inerente ao grande escritor: ele ou ela
não só escreve bem, como narra bem. E o que define este ‘bem’? Eu diria que
este é definido por um sexto sentido, apurado pelo sensibilidade e pelo reconhecimento
de que o que se tem à frente dos olhos é nobreza verbal.
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Luiz - Como a
senhora vê a influência da cultura de massa na Literatura Brasileira atual?
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Regina
- Socorro, que estamos nos afogando na cultura de massa... nossa bóia de
salvação, no meu entender, seria o cultivo da cultura popular. Se nos
agarrarmos na cultura popular, fazendo dela nosso apanágio, nossa brasilidade,
sem patriotadas, mas com a conscientização das nossas tradições, então
poderemos nos salvar da cultura de massa. A massificação cultural é um
amortecimento da sensibilidade, do conhecimento, é paralizante. Daí nosso
espanto, os que ainda não se afogaram, com programas na TV que parece terem
sido retirados de casas messalinas, com a ascensão de autonomeados escritores
em academias antes freqüentadas pelos olímpicos literários... uma banalização
sufocante e assustadora, afogando o que temos de culturalmente genuíno e, por
isto, de foro universal. Não digo que vamos nos livrar da indústria cultural,
como também denominam a massificação da cultura, pois a força da enchente é
avassaladora – mas podemos conviver com ela, ‘protegidos’ pela nossa cultura
popular. Acho até que, felizmente, uma boa parte da nossa população, pelo
instinto ou por um receio bem infundado, está se refugiando no folclore, na
nossa vida caipira, em certos hábitos tradicionais, para enfrentar este
arrombamento de comportas como parece ser a intrusão da cultura de massa. A
literatura só tem a perder quando embarca por este rio sem margens e sem
fundo, que a massificação cultural. Quero distinguir aqui, dentro dos limites
de uma resposta breve, que, do meu ponto de vista, a cultura de massa é uma
forma de ópio, um entorpecimento da sensibilidade; e que a cultura popular é
a parte sadia, viva, atuante, genuína da nossa cultura, é o povo – com
mamulengos ou ‘bota aqui o seu pezinho’, com as cavalhadas e os bois de
Parintins, com os festejos em Alagoas e em Alter do Chão, com o teatro de
rua, com os corais escolares – esta cultura, popular e arraigada na nossa
história, corre o perigo de ser afogada pelas enxurradas diárias da cultura
de massa – esse rolo, esse trator da industrializaçao, da banalização, que
nos afasta das nossas raízes e das nossa dimensões criativas.
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Luiz - Em sua
avaliação, como a senhora avalia a Literatura portuguesa e a espanhola?
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Regina
- Gosto muitíssimo da literatura portuguesa moderna, mas não conheço tanto
assim a espanhola para poder formular uma opinião. Dos meus autores
prediletos, lembro aqui o Saramago. Quando o li pela primeira vez, há muito
tempo, fiquei perplexa com a habilidade que ele tem em contar coisas – de
modo diferente. Pensei até, como será que ele está sendo recebido em
Portugal? Logo vi que não estava sendo nada recebido, antes bem rejeitado...
principalmente por uma parte da população que estava sendo guiada... Bom,
depois que ele recebeu o Nobel, ficar comentando o Saramago é
redundante...
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Luiz - O que a
senhora diria aos nossos escritores que estão começando agora?
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Regina
- O que eu diria? Que continuem escrevendo, apesar de todas as dificuldades
em publicar, em serem recebidos por uma editora, etc. Que não desanimem se um
editor nem sequer lhes enviar uma carta acusando recebimento de seus
originais... Que tenham fé em si mesmos. Que prossigam. E que prestigiem
nosso idioma.
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Entrevista concedida em 2009 pro Guia de Poesia.