PASSANDO A LIMPO
Lembro bem, mas nem tanto que foi um dia lá de não
sei quando dos anos 1970 – na verdade, cá pra nós, eu não tinha tirado ainda a
catinga do mijo -, do momento em que se deu a minha primeira arteirice pública
no palco da quadra do Colégio Diocesano.
Foi neste espaço que eu me apresentei na III Feira
de Música, promovida pelo Fernando Pinras, cantando duas tranqueiras que
denominei de músicas e que ousei ser da minha própria autoria: Escalavros e
outra que nem sei nem mesmo o título que tinha, nem me peçam pra tocar por que
eram garranchuras de tons e versos que nem eu mesmo sei como tive coragem de
inscrever e, ainda, me apresentar. Valha-me.
Pronto, foi nesse exato momento que bati o centro
levado por toda bola cheia que eu estava pela publicação dos meus poeminhas
fajutos de infância, todo sábado no suplemento infantil Junior, do Diário de
Pernambuco.
Na minha cabeça eu era o autor mais famoso do
planeta, hehehehe, quando não passava de um ilustríssimo desconhecido que não
era nem levado em consideração nem mesmo dentro de casa, avalie.
Entretanto, esse foi o momento que me consagrou
para mim mesmo. Verdade.
Até então, eu só tocava de fato uma guitarra
invisível no bucho, vociferando sucessos do momento e solando ao mesmo tempo,
enquanto desafinava na música e rasgava os solos vocais como se fosse o mais
exímio dos guitarristas.
Nesse tempo a plateia era grande: a namorada e uns
dois ou três gatos pingados pacientes e mangadores.
Ah, lembrei da Biuzinha, uma já senhora que servia
na casa da namorada, que ficava batendo palma e apoiando as minhas baboseiras
artísticas. Na verdade, ela era muito paciente para ver no que ia dar aquele
despropósito e depois caía na maior das gargalhadas.
Enquanto eu pensava comigo mesmo que estava
abafando, imaginando estar num palco engalanado e cheio do glamour para uma
plateia duns dois milhões de gente (tudo isso na minha cabeça, ora), a namorada
se ria, a Biuzinha mangava e outros iam embora mandando eu me lascar.
Mesmo assim, isso tudo era um incentivo.
Tanto que aprendi na marra amontado no meu bigodin
ralo de dez anos de idade, a mandar ver blem-blem telengotengo no violão, até
compondo algumas coisas que eu chamava de música sem mesmo ainda saber dominar
o instrumento.
A determinação foi tanta que aprendi os acordes,
saí ajeitando um ao outro numa coisa que se podia chamar de ritmo e danava-me a
abrir o peito e soltar a voz de qualquer jeito. Dias, tardes e noites até ficar
rouco mesmo. Mas, tá!
Quando eu via o Marco Ripe tocando no banco da
praça, eu ficava de mutuca espiando cada detalhe dos dedos dele em cada corda
do violão. Filei, copiei, imitei, fiz de tudo e na minha cabeça eu já era um
astro quando, pra meu desencanto, era um dos mais estrondosos desastres em
qualquer hora que eu quisesse mostrar que eu sabia tocar violão.
Por meus próprios esforços, enfim, tropeçando nas
notas, desafinando na voz, trejeitando o tempo todo, aos trancos e barrancos,
vai que ia, voltava que não fui, meio lá e meio cá, enfim, dei por composta a
primeira música.
Oxe, fiquei mais que envaidecido e queria mostrá-la
de qualquer jeito. Ninguém queria ouvir, pois quando eu começava a trastejar no
violão e destabocar a voz, a turma botava o rabo entre as pernas e se danava para
conversar, nem aí pro meu grandioso sucesso universal. Destá.
Não me abati e dessa mesma atrapalhada forma,
compus a segunda coisa que denominei de música. Juntei palavras mesmo que
desarrumadas, ajustei tons mesmo que jamais harmônicos, e disse pra mim mesmo:
- Essa está melhor que a outra. Um horror.
Foi aí que ouvi o anúncio no som volante de Help
Baterista, dando conta da abertura de inscrições para uma Feira de Música que
iria acontecer dali uns dias. Na hora corri para encontrar o parceiramigo
Fernandinho Melo e o primartista Marquinhos Cabral que me deixaram a par de
tudo. Oxe, era a hora.
Apois, providenciei tudo e como não tinha banda com
coragem suficiente para se apresentar comigo (claro, os caras não eram bestas
de levar vaia na cara assim de graça), acertei na inscrição que seria
apresentação solo. Arrepara só.
Na minha cabeça eu era um violonista maior que
Paulinho Nogueira e Laurindo Almeida juntos. Também era um cantor maior que
Nelson Gonçalves e Luis Gonzaga. Claro, depois que ouvi João Gilberto e o
estouro do sucesso de Roberto Carlos, nossa, eu disse pra mim mesmo: - Oxe,
isso eu também faço. Chegou a minha hora. Insana ignorância.
Na verdade, o que me deu mais entusiasmo foi ouvir
Desafinado com João Gilberto. Não sabia eu, na minha mais aguda ingenuidade de
bestão do mijado fedido, que pra arte precisa ser bom. E eu me tinha como o bom
dos bons, danou-se! Pois inventei de tentar executar essa música Desafinado,
resultado: fui pro palco sem ainda saber nem pra onde iam os acordes dessa
magistral canção.
Mas como desafinado descarado que se preze não
corre da raia, chegou o dia da apresentação e eu lá: sozinho no palco, violão
na caixa dos peitos (imitando, claro, Chico Buarque), tremendo que só vara
verde, abri a boca, mandei no recado e num instante terminei. Pronto: esperei a
vaia comer no centro. A minha surpresa foi que aplaudiram, claro, plateia
generosa, todo mundo conhecido. Mesmo assim, saí mais vermelho que morango
maduro no galho do pé do quintal. Queria era me esconder, mas tinha que esperar
para a segunda apresentação. Ué, nunca fui covarde!
Lá estou eu de novo sendo anunciado, subindo ao
palco, sem nem olhar pro júri nem pra plateia, tasquei os dedos na corda e abri
o berreiro. Tão rapidamente começou, assim mesmo terminou. Outros aplausos e eu
procurando um buraco no chão pra me socar de morto de vergonha.
Pronto, tirei o cabaço. Nem esperei o resultado nem
sei até hoje que classificação ficaram as músicas (acredito que viraram
lanternas na lista, arengando as duas músicas para qual ficaria no último
lugar). O que valia de mesmo era que eu tinha tirado o cabaço e a culpa é do
Pinras que permitiu que músicas tão trejeituosas fossem apresentadas, e da
plateia que ainda tiveram o desplante e a complacência de aplaudir o que não
deveria ser nem executado. O júri está poupado do meu escárnio porque, claro,
devidamente deram a nota acertada para que eu desistisse de ter a cara de pau
de inventar de cantar um dia. Mas como não tomei conhecimento da manifestação
do júri, sigo incólume até hoje abusando da paciência e da boa vontade alheia.
Ainda hoje passo por esse vexame.
Depois disso, todo dia é uma surpresa para mim. Até
mesmo hoje, a querida Meimei Corrêa acha de fazer um registro de comemoração
desses meus trinta e dois anos de tentativa, contando, ainda, com a
generosidade dos amigos Ricardo Machado e da Mônica Brandão. Mesmo sabendo quem
sou, obrigado. Minha gratidão eterna procês.
Veja detalhes da homenagem aqui.